Capítulo 5

...Com o mesmo ímpeto da segunda fase do testamento, abdicou do gosto pela vida sofisticada amealhada pela herança corrupta nos públicos negócios de seu pai. Naquele tempo o vento continha almas, pássaros falavam aos homens, divindades lançavam raios para afugentar qualquer subtileza. “Sombra, a atriz que faz o espanto, já estava perdida no céu diurno quando terminou sua dança ”. Terminado o trabalho desejou fugir como a sombra da luz no dente da âncora, exausto do processo contra a descoberta final da origem. Viver o drama original é bem pesado em nossos dias de mesmices padronizadas. Estava autorizado a fuga para o pensamento, todavia era preciso compreender a liberdade para exigi-la. Havia assimilado esse contexto remotíssimo e diverso, portanto gozava de um novíssimo horizonte mental de gênero delfico.

Por dentro, gratificado. Por fora, absurdo: o defunto da sereia em nada se parecia com o que compreendiamos como morte. Mais do que antes compreendia o quanto apenas a morte é humana. Mais alguns anos e decifraria os grunhidos da nova criatura descoberta em nome do juízo e do discernimento. Uma comissão de velhos marinheiros, calejados lobos do mar, poderiam afirmar a veracidade da descoberta. Ora, vociferaram, avistar uma sereia jamais pôde ser tão fácil quanto a visão de um rêgo na lavoura. Entornavam rum de quinta nos bares enluarados do cais. (Acreditavam piamente nele, mas não poderiam ficar muito tempo em terra para lhe subsidiar a defesa). Suma indireta ao homem agrícola que para eles pareciam filhos bem cuidados da vida sem perigos ou riscos.

Talvez um pouco de amor nas veias de mármore desses homens fixasse lógica na imorredoura vontade de conhecimento das origens. Razão para o qual, subverter o casulo de mariposa em largarta de sentimento, era um dever de ofício. Versões distorcidas do fato concreto surgiram imediatamente, próximo demais das risonhas fontes cujo significado se constituiram em detalhado exame resultando em psicose de gênio. Delírio dentro do topázio. Egomania compulsiva de verão alucinado pelo excessivo sol nos olhos. Enquanto subornam sentidos na condição de vento enfunado nas velas do barco abstrato, ondas de imaginação febril criam a feira do ilusório. Mágico da veemência, ser impreciso e sensivel. Patético, todavia respeitável. Seria ele mesmo o senhor das sereias o próprio homem de vento? Disse cinicamente a mulher de ocasional leito, debochando de sua loucura. Também sou a sereia que tira o vinho da palmeira doando sedento lirismo aos perdidos de rumo? Mais ainda empedernida de ciúme humano: tens o lirismo acorrentado a coleção de coisas raras. (Sereias jamais viram um caco de espelho sequer em suas vidas, são sempre receptivas ao esplendor...) Ocupava sua vida entre o conjunto de cintilâncias e a constelação de notas vivas e inaudíveis. Sabia de um lugar oculto e rubiáceo em que mergulhamos a felicidade tal e qual a conhecemos. Tais ideais despertavam algo ainda irregular na tarefa de participar da realidade inédita.

Detinha os restos da criatura na cúpula de vidro. Havia ouvido de perto seu canto, compreendera sua lingua cunhada de côres, ouviu seu destino obtido pelo ovo quebrado de certa gema cor de marmelo da primeira mutação. Reconheceu a longevidade intocável, fruto de viagens imensas pelo gigantismo do mar abissal. Compreendia demais o gosto da pele até o sentido do sal. (Sereias jamais envelhecem. Seguem flutuando em ondulações que ocupam seus olhos grandes em fruições soberbas, cobertas de plenitude marinha, além de visões do infinito reverberado na profunidade azul. Segundo uns, espetáculo de pirilampos num ornato excessivo da imaginação... Nada demais ainda para simbolizar a voz do desprezo.

Por bem que abandonastes as amizades torpes! Essas almas de pedra para o qual até a dança é desonesta. Sabes tão bem quanto eu que aquele que luta pela riqueza, busca a idolatria como sentimento. Semeia idolatria perdida em artifícios. Sua riqueza consistiu em produzir uma nova verdade sobre a verdade única. Portar esse medonho peso da distinção resultaria em dobrados números vergados ao peso da mesmice insana.

Essa criatura desconhecida do qual sempre ouvimos falar empregava sons inaudíveis, que podiam em algum momento, ser captado pela frequencia humana, semelhante ao nível do sussurro; porém com a profundidade de um gemido sensual. Ouviu com atenção uma mensagem: “seu Deus aparece sorrindo sobre o anelzinho do cabelo da mulher que por honesta preferiu a solidão...” Mas isto é uma sentença!

Ofensa ou enigma?

Seus braços rogavam abraço acorrentado ao afeto mortal. Quando se compreendeu aprisionada começou a utilizar a rede que lhe aprisionou como espécie de manto. Eu lhe emprestaria forças, se tivesse.

Depois a insonia fez dele uma noite feita de duas.

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