Demônios Pálidos
E de repente, o curumim atravessou a aldeia correndo e gritando feito louco, como se estivesse possuído por Guaixará. Tamanho era o medo refletido em seus olhos infantis.
Ainda era manhã, o sol enchia a floresta com sua luz e calor, e os cantos dos pássaros eram acompanhados pelo canto das índias que trabalhavam na horta. Os homens andavam pela tribo despreocupadamente, cuidando de suas mulheres e ajudando em algumas tarefas; as outras crianças, que eram muitas, corriam soltas a brincar com os bichos, ou com qualquer coisa que servisse de brincadeira. Tudo estava em perfeita paz até que o desespero do curumim quebrasse a confortável monotonia.
As mulheres foram as primeiras a tentar acalmar a criança que buscava desesperadamente ser compreendida, mas logo toda a tribo estava atenta as suas palavras atropeladas:
- Anhanga! São demônios! Por Tupã, são demônios! Anhanga! Anhanga!
Todos se assustaram. Poucos entenderam exatamente o que a criança queria dizer, mas sabiam que havia perigo. Não lhes ocorreu em momento algum que o curumim pudesse estar mentindo, que pudesse estar pregando uma peça, ou fazendo alguma brincadeira estúpida típica das crianças. Não se podia brincar com assuntos sérios como a segurança da tribo. Logo, vinte guerreiros se reuniram em direção ao local do perigo, apontado pelo menino. Marcharam prestando muita atenção nos ruídos da floresta, e ao chegarem à praia, quase sofreram de infarto, tamanho foi o susto pelo que lá encontraram.
Por Tupã, e por todos os espíritos da Terra, o menino estava certo! Que os olhos do Guarani não deixassem aqueles guerreiros se enganarem, pois aquilo que viam naquela praia eram mesmo demônios. Vários deles!
Demônios de cabelos engraçados, cor de bananas; panos grudados no corpo, feito animais que se cobrem de pelo para enfrentar o frio; e peles brancas, tão brancas que chegavam a lembrar a pele dos mortos. Esses estranhos seres cor de morte desciam em um pequeno grupo de uma enorme e magnífica ilha de madeira flutuante. Ou talvez fosse uma canoa gigante, não se soube dizer ao certo. Apenas concluiu-se que era tão grande que chegava a prender duas nuvens branquinhas em um tronco que ficava no meio.
Os guerreiros não sabiam se ficavam encantados ou com medo. Entre a confusão, preferiram ficar com medo, e foi tanto que nenhum teve coragem de fazer nada de imediato. Até que um deles, o mais jovem e inexperiente, atirou sem pensar uma flecha desajeitada e nervosa, que não atingiu coisa alguma, mas chamou a atenção dos caras pálidas.
Eles pareceram se alarmar, e os índios perceberam que se assustaram tanto quanto eles próprios, mas logo procuraram sensatamente saber o que os havia atingido. Foi quando um desses anhangas, que parecia ser uma espécie de chefe, levantou as mãos ao alto, como para mostrar que não estava armado. Começou a falar em uma língua estranha, acalmando os nativos, como se dissesse:
- Viemos em paz.
Mas nada daquelas palavras adiantou muito. O que realmente fez os guerreiros abaixarem as flechas, que a essa altura já estavam erguidas e miravam na cabeça dos demônios, foi um simples gesto cheio de intenções: Um sorriso, seguido do abrir de uma caixa bonita de madeira, que guardava coisas exóticas e encantadoras, e que foram oferecidas como presentes.
Eram de todas as formas e cores, muitas desconhecidas, outras parecidas com algo que já tinham visto pela floresta. Os presentes eram coisas como panos, pedaços afiados de metal (facas), vidros que refletiam a imagem (espelhos) como fazem os rios, comidas, enfeites... Os nativos se esqueceram por instantes daquela história de demônios. Estavam curiosos e temerosos, é claro, mas encantados, de fato.
Logo, era como se já não houvesse tanto perigo assim. Logo, os caras pálidas eram mais engraçados do que assustadores. Logo, os olhares de medo foram se entregando a curiosidade. Logo, os índios já serviam os visitantes de mulheres e cauim.
Talvez, bem lá no fundo, a voz da consciência ainda alertasse: “Por Tupã, e por todos os espíritos da Terra! Que os olhos do Guarani não deixassem aqueles guerreiros se enganarem, pois aquilo que viam naquela praia eram mesmo demônios. Um demônio chamado Homem, ganancioso e encantador...”.
Sim, talvez aquela voz estivesse alertando o mais alto que conseguia. Mas ela já não podia ser mais ouvida...