A Solidão e A Cidade
"Findava o dia, e a sombra, mansamente,
os seres aliviava cá na terra
das fadigas comuns..."
Dante, O inferno
Desfilam, à minha frente, as dores humanas. A finitude salta aos olhos com a graça de uma bailarina triste... É a hora da vida, que perde o futuro a cada instante. O pôr-do-sol que se aproxima faz sangrar as mais doces almas com a crueldade de um deus que tortura sob o véu do desespero. Olho ao redor e vejo que perante a noite o mundo é covarde, não há nada, nem ninguém que possa encarar a noite, sua nudez é agressiva a qualquer existência, e ao pôr-do-sol essa covardia se apresenta com uma nitidez ofuscante. Uma noite é uma experiência de vida pulsante que abala a realidade visível, a indiferença se torna impossível. A consciência e a lucidez tão sólidas que todos tinham enquanto o sol brilhava vai se dissipando e escurecendo com o cair da noite, surge a incerteza do homem, travestida de alegria e embriaguez. Aqui nos tornamos humanos.
Saí pela porta dos fundos para passar despercebido a qualquer um (é sempre bom não chamar a atenção). Tranqüilamente desci a rua que dava para a pracinha do bairro como se caminhasse no jardim de algum mundo perdido no tempo. Ouvi meu nome. Era um conhecido. Cumprimentei-o e continuei minha caminhada, mesmo sem saber pra onde iria. Não existia um "onde", só uma infinidade de rotas vãs que não chegariam nunca a lugar algum. Pensei em voltar pra casa, mas não! Havia acabado de anoitecer e eu precisava escapar do tédio, mesmo que fosse para, em seguida, cair na melancolia. Àquela hora, ninguém estava nas ruas, os bares estavam fechados, ainda era cedo, a cidade pertencia a mim. Eu reinava absoluto sobre aquele amontoado de "nadas" e me sentia também parte daquele gigantesco "nada" que se assemelhava a uma espécie de refúgio para quem já não tem nada a perder. Um amontoado de seres que juntos eram nada.
Só é possível existir sozinho. Era nesse refúgio que eu me perdia e me sentia ameaçado. Havia chegado agora a uma grande avenida onde encontrei algumas pessoas tão perdidas e ameaçadas quanto eu. Uma garota, bonita até, olhou nos meus olhos quando passei, tinha um rosto triste e um olhar de quem ainda não se deu conta de que pode enxergar. Passei por ela, assim, sem dedicar-lhe maior atenção. Era finalmente o existir. Sentia-me impressionantemente feliz. A alegria de quem se sentia livre e a angústia da consciência do limite, eram as causas da singular felicidade que sentia.
Perdia-me em devaneios sob os olhos ocultos da realidade, amava aquele mundo que parecia tão pouco meu, tão distante de minha compreensão. Sentia-me como alguém que perdeu todos os sentidos, que não podia reconhecer nada, mas que ainda era capaz de amar... amar desesperadamente a solidão, amar o próprio desespero de estar só. Solidão... uma palavra com um gosto amargo que está sempre na boca de todos, pronta para ser pronunciada e se espalhar como uma peste noite adentro. Mas não a pronunciam; embriagam-se para escapar dela, encontram outras pessoas para esquecê-la, ou simplesmente se matam. No entanto, toda fuga é inútil e tudo o que se consegue é perder, visceralmente, a dignidade.
Cheguei a um cruzamento e parei para esperar que o sinal abrisse, enquanto isso, percebi que a noite já reinava soberana sobre a cidade, e desta só restavam escombros. Ninguém mais se reconhecia, eram todos estrangeiros, que só não se matavam por um estranho senso mútuo de cumplicidade e dependência. Por que? Como é possível que vivam assim, os homens? Será que só eu tinha a consciência de que todos se odiavam e queriam acabar com o primeiro que cruzasse seus olhares? A cidade parece ter um mecanismo invisível que impede tal coisa, o império de um imperador que não existe, um império que se sustenta sobre o vazio e que não tem razão de existir, mas, nem por isso se entrega a própria ruína. Era nessa impressão de real que eu estava me afogando, me consumindo como se tragasse um cigarro ... era a lei da noite, e eu não podia fazer nada que não resultasse vão. Os olhos do eterno suprimiam toda coragem e toda nobreza, o porvir era tudo e o presente se perdia como algo inatingível. Angustiado, olhei para o nada e decidi rir...
Janeiro de 2007
Publicado em http://www.camarabrasileira.com/acol15-011.htm