Vinte e quatro tons de rosa
“Na curva perigosa dos cinqüenta,
derrapei neste amor, que dor...”
(“Quarto em desordem”, Carlos
Drummond de Andrade)
derrapei neste amor, que dor...”
(“Quarto em desordem”, Carlos
Drummond de Andrade)
Era um destes fevereiros que fizeram parte de nossas vidas. O supermercado, na praia, estava lotado. Meu carrinho cheio das coisas básicas que cabem a um homem solteiro de cinqüenta anos num fim de semana solitário: filé de salmão, alcaparras, azeite de oliva, um chardonnay uruguaio e um espumante nacional que estava disputando páreo corrido com os franceses.
Na minha frente, atrás de uns dez outros carrinhos, uma menina, aparentando pouco mais de vinte anos, observava os produtos que guarnecem as filas de caixa até se deparar com o conteúdo do meu carrinho.
- Alcaparras. É o que está escrito ali. Nunca provei. Que gosto tem?
Na minha frente, atrás de uns dez outros carrinhos, uma menina, aparentando pouco mais de vinte anos, observava os produtos que guarnecem as filas de caixa até se deparar com o conteúdo do meu carrinho.
- Alcaparras. É o que está escrito ali. Nunca provei. Que gosto tem?
- Alcaparras, balbuciei, espantado com a beleza e doçura da menina, que já não me pareceu tão menina assim. Bem, alcaparra tem um gosto muito particular, diferente de qualquer outra coisa que conheço, assim como rúcula, radiche, alcachofra...
- Rúcula eu conheço, mas não gosto muito. É amarga. Alcachofra não conheço. É gostosa?
- Eu gosto. Não tenho muita habili- dade para descrever sabores. Aliás, sabores devem ser experimentados, não descritos. Cada legume, assim como as frutas, possui identidade própria, com aromas, consistências, aparências e formas de se consumir que não se confundem.
Esperava com isso ter encerrado a conversa, pois seu jeito sedutor estava me deixando extremamente perturbado e eu fazia um esforço enorme para olhar apenas para os olhos dela.
Mas ela insistiu no diálogo.
- E as alcaparras, usa como?
- Gosto de colocá-las num prato com peixe, acompanhado de arroz branco cozido com um pouco de vinho branco e levemente impregnado com requeijão e rúculas frescas picadas.
- Ah! Por isso esse peixe vermelho.
- É, um salmão. Combina muito bem neste prato.
- Parece delicioso. Gostaria de provar um dia.
- Ah, por certo um dia ainda vais provar, pois é um prato comum nos restaurantes atual-mente.
- Mas duvido que nos restaurantes ele seja preparado como senhor descreveu.
- É, talvez não encontres exatamente assim, mas será, acredito, muito parecido.
A conversa ia aumentando minha perturbação, a ponto de já não saber mais para onde olhar. Mexi no conteúdo do carrinho, como se algo precisasse ser organizado, virei-me para olhar a fila atrás de mim e percebi que estava me sentindo como um adolescente. Quando olhei para a frente de novo, ela estava me olhando com os olhos castanhos amendoados brilhando e um sorriso maroto. Baixei os olhos. Sentia-me ridículo, sem saber o que fazer com as mãos, coração acelerando. Precisava fazer alguma coisa para me recompor: olhei para a fila, que já havia se adiantado na frente dela e fiz-lhe um sinal com a mão, indicando o espaço que se formara. Ela então se virou e deu alguns passos à frente. Só neste momento ousei olhar para o resto do corpo dela e um arrepio me percorreu a espinha. Nas costas, pude perceber dois pares de cordão que se uniam num tope. Descendo os olhos, vi a bermuda jeans, tão justa que se amoldava à curva das nádegas e tão curta que deixava ver boa parte de cada curva. O cabelo castanho esparramava-se pelas espáduas e o corpo tinha as dimensões que eu diria perfeitas. A pele estava bronzeada na intensidade certa, mostrando um aspecto sedoso, com o viço próprio da idade e o cuidado de evitar a exposição excessiva ao sol.
Absorto em apreciar aquele espetáculo, fui surpreendido pelo súbito movimento dela ao se virar e me olhar, com a boca preparada para dizer-me algo. Juro que devo ter enrubescido, pelo menos foi a idéia que tive ao sentir uma onda de calor perpassando meu rosto. Quase desviei o olhar, mas, para disfarçar encarei firme os olhos dela, como a dizer “fala, me tira deste embaraço e me faz pensar, pensar, pensar, para não sentir”.
- O Senhor poderia me dar a receita por escrito?
- Claro, balbuciei de uma forma qua- se inaudível. Claro, repeti, já com a voz mais empostada e já mais seguro.
- Legal.
- Eu tenho papel e caneta no carro. Na saída anoto a receita.
Ela deu um sorriso e se dirigiu ao caixa, que, nesse momento tinha ficado livre. Enquanto ela providenciava a passagem das compras, pude examinar-lhe novamente o corpo. A parte de cima do biquíni era feita de pequenos triângulos de tecido que mal cobriam as auréolas dos mamilos e amarrados pelos cordões que eu já havia observado quando estava de costas. A parte de baixo do biquíni deveria estar escondida pela bermuda jeans, que, na frente, mergulhava, a partir das ancas em direção ao centro, numa curva que se completava próxima ao início do que eu imaginava estarem os pelos pubianos. Grosseiramente e por estar tão absorvido apreciando-a, nem me ofereci para ajudar na retirada das compras do carrinho.
Quando me desvencilhei dos trâmites de pagamento de minhas compras, encontrei-a me esperando para descermos juntos ao estacionamento. No caminho, nos dissemos os nomes e comentamos algumas banalidades que não lembro, pois meus sentidos estavam comprometidos em absorver todas as emanações que vinham dela: a sonoridade da voz, o jeito gracioso de ajeitar o cabelo, a discreta umidade que se depositava em seus lábios carnudos e bem delineados, o perfume do creme hidratante que exalava da pele, a forma como andava, quase flutuando.
Ao chegarmos no carro, sentia-me plenamente tranqüilo e extasiado. Acionei o destrava- mento da porta e, quando ia pegar meu bloco de anota- ções e caneta, ela segurou meu braço levemente e me su- geriu:
- Quem sabe, ao invés de anotar a receita, tu me dás teu endereço e me ensina a fazer o prato pessoalmente? Que tal?
Gostei de ouvir “tu” ao invés de “se- nhor” e gostei mais ainda da idéia de reencontrá-la, mes- mo que duvidasse de que pudesse acontecer alguma coi- sa a mais do que um encontro de amigos. Não que eu não a desejasse, mas a diferença de idade me dizia ser improvável qualquer outra coisa.
- Bom, acho bom. Legal. Que tal hoje à noite? É que o peixe é fresco e não é conveniente deixá-lo muito tempo na geladeira, menti.
- Combinado, hoje à noite. Eu passo na tua casa. Vou cedo para não perder nenhuma parte da preparação.
Anotei o endereço e o número do celular numa folha do bloco e fiz um resumo de como chegar à casa. Ela pegou o papel, me deu tchau e foi em busca do carro. Depois de olhá-la desaparecer numa curva do estacionamento, terminei de colocar as compras no porta-malas do carro e voltei ao supermercado para comprar mais uma garrafa de espumante.
Eram oito horas quando ela chegou. Abri o portão e ela estacionou o carro na garagem.
Eu estivera esperando, ajeitando pra- tos, panelas, a mesa, tudo o que fosse precisar para a preparação da receita. Os espumantes estavam devidamente resfriados ao ponto ideal e o cd rodava uma seleção especial, com mistura de bossa nova, blues, jazz, samba-canção e baladas românticas.
Ela vestia uma túnica estilo roma- na, de cor branca, com decote acentuado, amarrado na cintura por um cinto trançado de algodão e que mantinha a parte de baixo da túnica como uma mini-saia. A delicadeza do tecido deixava transparecer a brancura da calcinha e o volume dos bicos dos seios discretamente salientes.
Mais uma vez senti que enrubescia diante daquele quadro de beleza que pousara de forma inusitada no meu fim de semana prenunciado de solidão.
Acho que ela percebeu o impacto que me causara e novamente esboçou aquele sorriso mesclado de malícia e prazer que eu já começava a imaginar fosse um detalhe de personalidade. Quase me deixei levar por fantasias desastrosas do tipo “ela faz parte de uma gangue e o resto da turma chega daqui a pouco para me assaltar”, mas resisti ao pensamento. Também resisti à idéia de fazer uma pergunta do tipo “afinal, o quê tu estás realmente querendo, vamos falar abertamente, que assim é melhor para evitarmos frustrações futuras, blá, blá, blá...”. Embora os pensamentos desfilassem em alta velocidade pelo cérebro racional, a visão dela ocupava integralmente meu cérebro emocional. E, quando ela se aproximou e me beijou na face, o cheiro dela me entorpeceu. Digo cheiro, porque havia algo mais do que um perfume. A pele dela rescendia algo que vem depois da primeira percepção e fica batendo na cabeça como um martelo de uma forma quase inconsciente, mas perturbadora.
- Bom, vou servir um espumante e podemos começar a cozinhar, disse, de início num sussurro que depois consegui firmar em tom quase natural.
- Ok, vamos aos trabalhos, respon- deu de forma jovial.
Servi o espumante, brindamos e a- cendi o forno. Coloquei o salmão na forma, por cima da camada de sal grosso, espremi um limão sobre a carne avermelhada e levei ao forno. Pus o arroz a cozinhar e comecei a picar a rúcula para acrescentar quando o arroz estivesse cozido. À medida que ia preparando o jantar, explicava a técnica, procurando me concentrar no que estava fazendo. Ela parecia escutar atentamente, até o momento em que encostou discretamente o corpo em mim e pediu para ver se tinha aprendido como cortar a rúcula. Foi como se um fio de luz desencapado tivesse me tocado. Vacilei, mas entreguei a faca e recuei do balcão. Já encorajado por duas taças de espumante, arrisquei tocar os ombros dela e comecei uma leve massagem, descendo pelas espáduas e voltando para a nuca desnuda. Ela parou de cortar a rúcula e se deixou ser massageada, movendo lentamente o pescoço e deixando ressoar discretos suspiros na respiração mais acelerada.
A partir daquele momento senti que pelo menos vinte anos haviam sido sacados do meu corpo e, de posse de minha juventude reconquistada, fiz uso do que havia aprendido com as mulheres ao longo da vida.
Consegui levar tudo com calma: terminamos o jantar e a segunda garrafa de espumante de forma sensual, mas contida. O resto não consigo descrever.
Quando acordei, amanhecia. Estava só na cama. Fui até a sala e notei que ela havia levado o controle extra do portão. Deitei na rede da varanda e fiquei recordando o que acontecera. Lembro tivesse ela falado em vinte e quatro anos, mas por mais que tentasse, não consegui lembrar o nome. O cheiro de fêmea, no entanto, estava ali, grudado em mim de tal maneira que imaginei jamais sairia. Ainda inebriado pelo espumante e pelo cheiro, voltei a adormecer na rede.
Naquele ano, passados alguns meses sem conseguir tirá-la da lembrança, escrevi um poema:
- Rúcula eu conheço, mas não gosto muito. É amarga. Alcachofra não conheço. É gostosa?
- Eu gosto. Não tenho muita habili- dade para descrever sabores. Aliás, sabores devem ser experimentados, não descritos. Cada legume, assim como as frutas, possui identidade própria, com aromas, consistências, aparências e formas de se consumir que não se confundem.
Esperava com isso ter encerrado a conversa, pois seu jeito sedutor estava me deixando extremamente perturbado e eu fazia um esforço enorme para olhar apenas para os olhos dela.
Mas ela insistiu no diálogo.
- E as alcaparras, usa como?
- Gosto de colocá-las num prato com peixe, acompanhado de arroz branco cozido com um pouco de vinho branco e levemente impregnado com requeijão e rúculas frescas picadas.
- Ah! Por isso esse peixe vermelho.
- É, um salmão. Combina muito bem neste prato.
- Parece delicioso. Gostaria de provar um dia.
- Ah, por certo um dia ainda vais provar, pois é um prato comum nos restaurantes atual-mente.
- Mas duvido que nos restaurantes ele seja preparado como senhor descreveu.
- É, talvez não encontres exatamente assim, mas será, acredito, muito parecido.
A conversa ia aumentando minha perturbação, a ponto de já não saber mais para onde olhar. Mexi no conteúdo do carrinho, como se algo precisasse ser organizado, virei-me para olhar a fila atrás de mim e percebi que estava me sentindo como um adolescente. Quando olhei para a frente de novo, ela estava me olhando com os olhos castanhos amendoados brilhando e um sorriso maroto. Baixei os olhos. Sentia-me ridículo, sem saber o que fazer com as mãos, coração acelerando. Precisava fazer alguma coisa para me recompor: olhei para a fila, que já havia se adiantado na frente dela e fiz-lhe um sinal com a mão, indicando o espaço que se formara. Ela então se virou e deu alguns passos à frente. Só neste momento ousei olhar para o resto do corpo dela e um arrepio me percorreu a espinha. Nas costas, pude perceber dois pares de cordão que se uniam num tope. Descendo os olhos, vi a bermuda jeans, tão justa que se amoldava à curva das nádegas e tão curta que deixava ver boa parte de cada curva. O cabelo castanho esparramava-se pelas espáduas e o corpo tinha as dimensões que eu diria perfeitas. A pele estava bronzeada na intensidade certa, mostrando um aspecto sedoso, com o viço próprio da idade e o cuidado de evitar a exposição excessiva ao sol.
Absorto em apreciar aquele espetáculo, fui surpreendido pelo súbito movimento dela ao se virar e me olhar, com a boca preparada para dizer-me algo. Juro que devo ter enrubescido, pelo menos foi a idéia que tive ao sentir uma onda de calor perpassando meu rosto. Quase desviei o olhar, mas, para disfarçar encarei firme os olhos dela, como a dizer “fala, me tira deste embaraço e me faz pensar, pensar, pensar, para não sentir”.
- O Senhor poderia me dar a receita por escrito?
- Claro, balbuciei de uma forma qua- se inaudível. Claro, repeti, já com a voz mais empostada e já mais seguro.
- Legal.
- Eu tenho papel e caneta no carro. Na saída anoto a receita.
Ela deu um sorriso e se dirigiu ao caixa, que, nesse momento tinha ficado livre. Enquanto ela providenciava a passagem das compras, pude examinar-lhe novamente o corpo. A parte de cima do biquíni era feita de pequenos triângulos de tecido que mal cobriam as auréolas dos mamilos e amarrados pelos cordões que eu já havia observado quando estava de costas. A parte de baixo do biquíni deveria estar escondida pela bermuda jeans, que, na frente, mergulhava, a partir das ancas em direção ao centro, numa curva que se completava próxima ao início do que eu imaginava estarem os pelos pubianos. Grosseiramente e por estar tão absorvido apreciando-a, nem me ofereci para ajudar na retirada das compras do carrinho.
Quando me desvencilhei dos trâmites de pagamento de minhas compras, encontrei-a me esperando para descermos juntos ao estacionamento. No caminho, nos dissemos os nomes e comentamos algumas banalidades que não lembro, pois meus sentidos estavam comprometidos em absorver todas as emanações que vinham dela: a sonoridade da voz, o jeito gracioso de ajeitar o cabelo, a discreta umidade que se depositava em seus lábios carnudos e bem delineados, o perfume do creme hidratante que exalava da pele, a forma como andava, quase flutuando.
Ao chegarmos no carro, sentia-me plenamente tranqüilo e extasiado. Acionei o destrava- mento da porta e, quando ia pegar meu bloco de anota- ções e caneta, ela segurou meu braço levemente e me su- geriu:
- Quem sabe, ao invés de anotar a receita, tu me dás teu endereço e me ensina a fazer o prato pessoalmente? Que tal?
Gostei de ouvir “tu” ao invés de “se- nhor” e gostei mais ainda da idéia de reencontrá-la, mes- mo que duvidasse de que pudesse acontecer alguma coi- sa a mais do que um encontro de amigos. Não que eu não a desejasse, mas a diferença de idade me dizia ser improvável qualquer outra coisa.
- Bom, acho bom. Legal. Que tal hoje à noite? É que o peixe é fresco e não é conveniente deixá-lo muito tempo na geladeira, menti.
- Combinado, hoje à noite. Eu passo na tua casa. Vou cedo para não perder nenhuma parte da preparação.
Anotei o endereço e o número do celular numa folha do bloco e fiz um resumo de como chegar à casa. Ela pegou o papel, me deu tchau e foi em busca do carro. Depois de olhá-la desaparecer numa curva do estacionamento, terminei de colocar as compras no porta-malas do carro e voltei ao supermercado para comprar mais uma garrafa de espumante.
Eram oito horas quando ela chegou. Abri o portão e ela estacionou o carro na garagem.
Eu estivera esperando, ajeitando pra- tos, panelas, a mesa, tudo o que fosse precisar para a preparação da receita. Os espumantes estavam devidamente resfriados ao ponto ideal e o cd rodava uma seleção especial, com mistura de bossa nova, blues, jazz, samba-canção e baladas românticas.
Ela vestia uma túnica estilo roma- na, de cor branca, com decote acentuado, amarrado na cintura por um cinto trançado de algodão e que mantinha a parte de baixo da túnica como uma mini-saia. A delicadeza do tecido deixava transparecer a brancura da calcinha e o volume dos bicos dos seios discretamente salientes.
Mais uma vez senti que enrubescia diante daquele quadro de beleza que pousara de forma inusitada no meu fim de semana prenunciado de solidão.
Acho que ela percebeu o impacto que me causara e novamente esboçou aquele sorriso mesclado de malícia e prazer que eu já começava a imaginar fosse um detalhe de personalidade. Quase me deixei levar por fantasias desastrosas do tipo “ela faz parte de uma gangue e o resto da turma chega daqui a pouco para me assaltar”, mas resisti ao pensamento. Também resisti à idéia de fazer uma pergunta do tipo “afinal, o quê tu estás realmente querendo, vamos falar abertamente, que assim é melhor para evitarmos frustrações futuras, blá, blá, blá...”. Embora os pensamentos desfilassem em alta velocidade pelo cérebro racional, a visão dela ocupava integralmente meu cérebro emocional. E, quando ela se aproximou e me beijou na face, o cheiro dela me entorpeceu. Digo cheiro, porque havia algo mais do que um perfume. A pele dela rescendia algo que vem depois da primeira percepção e fica batendo na cabeça como um martelo de uma forma quase inconsciente, mas perturbadora.
- Bom, vou servir um espumante e podemos começar a cozinhar, disse, de início num sussurro que depois consegui firmar em tom quase natural.
- Ok, vamos aos trabalhos, respon- deu de forma jovial.
Servi o espumante, brindamos e a- cendi o forno. Coloquei o salmão na forma, por cima da camada de sal grosso, espremi um limão sobre a carne avermelhada e levei ao forno. Pus o arroz a cozinhar e comecei a picar a rúcula para acrescentar quando o arroz estivesse cozido. À medida que ia preparando o jantar, explicava a técnica, procurando me concentrar no que estava fazendo. Ela parecia escutar atentamente, até o momento em que encostou discretamente o corpo em mim e pediu para ver se tinha aprendido como cortar a rúcula. Foi como se um fio de luz desencapado tivesse me tocado. Vacilei, mas entreguei a faca e recuei do balcão. Já encorajado por duas taças de espumante, arrisquei tocar os ombros dela e comecei uma leve massagem, descendo pelas espáduas e voltando para a nuca desnuda. Ela parou de cortar a rúcula e se deixou ser massageada, movendo lentamente o pescoço e deixando ressoar discretos suspiros na respiração mais acelerada.
A partir daquele momento senti que pelo menos vinte anos haviam sido sacados do meu corpo e, de posse de minha juventude reconquistada, fiz uso do que havia aprendido com as mulheres ao longo da vida.
Consegui levar tudo com calma: terminamos o jantar e a segunda garrafa de espumante de forma sensual, mas contida. O resto não consigo descrever.
Quando acordei, amanhecia. Estava só na cama. Fui até a sala e notei que ela havia levado o controle extra do portão. Deitei na rede da varanda e fiquei recordando o que acontecera. Lembro tivesse ela falado em vinte e quatro anos, mas por mais que tentasse, não consegui lembrar o nome. O cheiro de fêmea, no entanto, estava ali, grudado em mim de tal maneira que imaginei jamais sairia. Ainda inebriado pelo espumante e pelo cheiro, voltei a adormecer na rede.
Naquele ano, passados alguns meses sem conseguir tirá-la da lembrança, escrevi um poema:
PECADO MORTAL
Apareceu-me como um anjo,
Desses que, nas noites de verão,
Descem das torres mais altas
Das igrejas medievais.
Ficou exatos três dias.
Deixou segredos.
Muitos.
Um deles eu já posso, hoje, revelar:
ela não era, exatamente,
um anjo...
“...e esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.” (“Quarto em desordem”,
Carlos Drummond de Andrade)
a passear o peito de quem ama.” (“Quarto em desordem”,
Carlos Drummond de Andrade)