Houve certa vez que...

Do quarto em que morei era possível ver do outro lado da rua, na esquina oposta a do meu prédio, um bar em cujas noites durante um certo período, grupos de jovens freqüentavam. Faziam coisas que se faz em bar, como beber, conversar... Num dos grupos só se via homens, ou melhor, rapazes com vinte e poucos anos. Talvez fossem uns cinco, ou quem sabe seis, não sei ao certo. Acho importante frisar que eles eram todos muito parecidos entre si. Em relação a um outro grupo, só que de meninas, eu tinha a mesma impressão de que se assemelhavam, o que me dificulta agora dizer ao certo quantas pessoas eram, pois além de suas roupas e formato do corpo, em seus rostos poucas diferenças eu podia ver. Quando hoje me recordo de todos eles para tentar saber o seu número exato tenho a sensação de que repito alguns durante a contagem, o que compromete com a dúvida o resultado final. Mas não importa! Havia grupos, não só esses dois mas muitos outros, espécie de células não totalmente independentes pois às vezes ocorria de um ou dois de um grupo conhecerem um ou dois do outro, propiciando uma aproximação e uma mistura das turmas.

Embora eu não tivesse aquela ânsia própria da juventude pela vida noturna, desci lá algumas vezes também para beber e ver mais de perto os autores dos burburinhos que embalavam o meu sono, mas em nenhuma hipótese na esperança de amizades novas. A presença auditiva deles dentro de meu leito não me incomodava de forma alguma, muito pelo contrário, dava-me antes a impressão de que o mundo para além das minhas paredes funcionava a todo o vapor, o que me confortava.

Contrariando a minha primeira impressão, com o tempo fui notando que todos eles interagiam entre si, que os membros de um grupo não eram de todo "fiéis" a este mesmo grupo a que pertenciam e que por vezes uns iam gozar das graças "inéditas" de alguém da outra turma. Ao cabo de um determinado período, desmentindo o que inicialmente achara, notei que cada grupo não era desconhecido absolutamente dos outros e que seus integrantes se conheciam de longa data, pois a maneira como se portavam entre si e a intimidade que demonstravam fez cair por terra a hipótese primeira de que cada pessoa se limitava ao que eu erroneamente havia interpretado como grupo. Para resumir, o bar inteiro era freqüentado por uma gente só, mesmo que por vezes eu flagrasse alguém mais isolado ou conversando com um número menor de pessoas, bastava-me insistir com a atenção nele por um tempo mais demorado para dissipar o equívoco: via-o rodeado de pessoas, todas conversando e rindo à sua volta tal como velhos camaradas.

Antes de continuar a narrativa daquelas noites enfrente à minha janela será preciso esclarecer algumas coisas. O meu tempo de moradia naquele apartamento foi de pouco menos que um ano. No primeiro mês, no exato local do bar não havia nada, ou melhor, nada mais que apenas o espaço do estabelecimento com as suas portas fechadas, dando-me inclusive a impressão de que naquela cidade com não mais do que treze mil habitantes ser dono de um determinado tipo de comércio talvez fosse algo bastante difícil. O que quer que se pretendesse vender que não fizesse parte das necessidades mais básicas estaria fadado ao fracasso. Portanto lá se via apenas algumas escolas primárias, padarias, botequins, postos de gasolina e uma coisa ou outra mais. A cidade mais perto de razoável porte ficava a aproximadamente cento e cinqüenta quilômetros de distância. E era justamente para esta cidade que praticamente todos aqueles que atingiam determinada idade iam trabalhar ou estudar, este último para os que tinham alguma condição financeira, algo bastante raro lá. No meu caso, na direção oposta, o motivo de minha ida para aquele lugar fora justamente um trabalho numa importante construção que estava sendo realizada pelo governo federal. O rápido perfil que tracei daquela gente assim que cheguei fez com que pensasse que a cidade fosse povoada basicamente por pessoas velhas.

Depois de um mês no apartamento, as noites na esquina oposta à minha onde o estabelecimento as portas se abriram pessoas e tipos que até então não tinha visto por aquelas bandas apareceram de repente. Otimista diante do que via, aquilo fora para mim um alento importante à minha estada ali onde eu imaginava não ter muita coisa. A presença dos rapazes e das moças conferiu à imagem que eu fizera do lugar uma figura nova. Mesmo sem planos de freqüentar a esquina como eles o faziam, sabê-los já me era o bastante. No lugar de velhos e de pessoas restritas ao claustro do trabalho nos sujos estabelecimentos uma população nova com uma sede diferente. Que novas vidas e estilos poderiam resultar dali, quem sabe uma chance de rejuvenescimento das gerações anteriores a deles acostumados à pacata rotina! As esperanças renovaram as minhas forças. Observando que não havia muitos carros estacionados e já tendo notado que o sistema de transportes do lugar não era lá essas coisas (quanto mais nas altas horas da madrugada, que era a hora que fechava o bar), isso me fez pensar que os freqüentadores da minha esquina fossem moradores dali de perto.

Durante o tempo de funcionamento do bar (menos de um ano), eu via sempre as mesmas pessoas, todas aparentemente da mesma idade e classe social. As noites eram de tal ordem que chegava mesmo a tomar a rua, chegando às vezes a fechá-la pela quantidade de gente, com isso obrigando os carros que passavam por ali a pararem e esperarem liberarem a rua, o que acreditava ser um transtorno. Nessa época imaginei que tanto os moradores do meu prédio quanto dos outros ao redor pudessem se incomodar com o barulho e com outros problemas mais. Mas o que parecia é que eles, como eu, não se incomodavam com aquela rapaziada. As poucas palavras que troquei com alguns dos meus vizinhos nas raras ocasiões em que os encontrei no corredor ou na portaria nunca sequer uma referência ao que ocorria na rua à noite. À primeira vista pareceriam se incomodar com aquilo, pois no geral eram pessoas de idade. E no entanto, nenhuma repreensão. É verdade que os garotos não brigavam, da mesma maneira que a música que ouviam estava sempre num volume razoável. Eu os notava bebendo e fumando, conversando e gesticulando, outros se abraçavam: demonstravam um grande desejo de comunicação e de inteiração.

Quando certa vez entediado em meu quarto desci, com o intuito mesmo de uma interação, iniciei uma conversa com um cara encostado à parede vestindo roupas simples perguntando-lhe acerca de um jogo de futebol passado ao vivo na televisão entre dois grandes times de outra cidade maior que havia acontecido naquela mesma tarde.

– Não sei. – Respondeu-me. – É raro por aqui alguém que goste de esportes. Preferimos cinema.

Pareceu-me um pouco pedante a sua resposta, a qual retruquei perguntando-lhe onde era o cinema que freqüentavam.

– Não temos um.

Ele era curto nas sentenças e não abria brecha para uma maior aproximação. Mas insisti, com certa ironia:

– O cinema de vocês são os filmes da televisão?

Ignorando-me por completo, ele se vira para o lado e ascende seu cigarro com o isqueiro de um outro camarada seu de aparência muito semelhante. Depois de aceso, mantém-se virado para o amigo e inicia com ele uma conversa que soava para mim como murmúrio; além de ignorar o assunto de que tratavam eu não distinguia bem as palavras que proferiam. Pareceu-me que naquele momento o som do ambiente se tornara mais barulhento que o usual. Caminhando, notei que as mesas eram meladas e grudavam a mão quando encostava nelas. O bar visto de perto tinha um aspecto bastante sujo. A música que saía das caixas era de um estilo desconhecido para mim, talvez algo como um rock com elementos do jazz misturados com música eletrônica. A parte rítmica era sem dúvida marcada por uma bateria eletrônica, isso era notável. O que nela me lembrava o jazz talvez fosse a dissonância de alguns de seus acordes, uma seqüência que mal se podia acompanhar a lógica harmônica. E finalmente rock porque havia uma agressividade nos timbres distorcidos, no limite mesmo do barulho. Mas o que digo daquelas músicas é bastante incerto, principalmente porque se durante a minha estada naquele lugar uma ou várias músicas foram tocadas eu nem poderia dizer. Depois de certo tempo simplesmente andando por entre aquele pessoal resolvi voltar ao apartamento.

Na noite seguinte voltei lá. Os dois rapazes da noite anterior estavam no mesmo lugar, parecendo até que fumavam o mesmo cigarro e conversando o mesmo assunto da noite anterior sem ter notado a minha presença. Era estranho, mas a noite parecia muito com a anterior em vários aspectos. Aliás todas as noites naquele lugar pareciam ser a mesma noite. Mas era apenas uma impressão, embora suficiente para começar a negar o meu otimismo primeiro em relação àquele espaço. Disso conclui, com a empolgação inicial já desmentida, que nem estilos novos muito menos tipos de vida inusitados pudessem resultar daquelas noites no bar.

Antes de ir embora tentei mais uma vez uma conversa, desta vez com uma garota sentada sozinha à mesa perto da entrada lateral. Sem nenhuma vergonha, perguntei-lhe:

– Posso me sentar?

A sua "resposta" à minha pergunta foi um acintoso gesto de se levantar para tomar o rumo de um grupo ao lado da mesa onde estava sentada. Vendo isso, engoli à seco a grosseria, e puto me levantei para tomar o caminho da rua e sair dali o quanto antes cruzando com o grupo dos cinco ou seis rapazes que vi no início da temporada do bar. Nutri certo ódio contra todos pela invisibilidade a que me relegavam com o menosprezo.

As noites no bar continuaram por alguns meses sem que eu descesse. No início deste período de ausência, logo depois do episódio de minha ida até o bar, ficava da minha janela olhando e ao mesmo tempo observando como funcionava aquilo, por exemplo que regras seguiam para que se relacionassem uns com os outros, que sinais emitiam sem saber que o faziam mas condição do reconhecimento mútuo. Ao cabo de alguns dias, um semana talvez, passei a ignorá-los não indo mais nem à janela. Ouvia-os apenas, alguns gritos agudos do gênero feminino, risadas e o som confuso de dezenas de conversas simultâneas.

Mas em certo momento algo de novo aconteceu. Às segundas-feiras o bar fechava, voltando a abrir no dia seguinte. Depois de um final de semana bastante movimentado e, em contraste, de uma segunda-feira bastante quieta, uma terça-feira com as portas fechadas. Estranhei quando lá pelas seis da tarde, já em casa de volta do trabalho, não vi a rotineira movimentação dos funcionários do bar preparando o espaço para mais uma jornada de venda de bebidas e diversão. À noite, nenhuma alma viva. Dormi e estranhei o silêncio, como quando vamos à serra e respiramos o ar limpo nos faz sentir nossas narinas arderem. Dormi mal com a novidade da ausência de ruídos, tendo eu a impressão de um congelamento do mundo. Aconteciam coisas além do mero funcionamento de um corpo vivo que chamo de meu sobre uma cama mole? As notícias que a televisão me trazia naquela hora da madrugada pereciam ser sombras de um mundo fantástico e irreal. Ir à janela e olhar a rua para ver as luzes das janelas dos prédios vizinhos era como olhar para o céu, ver as suas estrelas mas apenas imaginar que em cada uma outras vidas existem embora sem a plena certeza. A solidão se instaurou e o mundo me pareceu velho.

No dia seguinte, recém chegado do meu exaustivo trabalho demorei-me na janela com a esperança de um recomeço de movimentação a que me havia acostumado, mas todo o tempo gasto foi em vão. Olhando tanto para a esquina próxima quanto para a outra mais distante não via absolutamente ninguém. À noite, num discurso mental que fiz a mim mesmo, uma série de perguntas, por exemplo, se tinha havido alguma espécie de consentimento entre aquelas pessoas para que não mais saíssem por lá. Seriam todas elas tão unidas que combinaram algo como o boicote do lugar a que tanto gostavam de ir não o freqüentando mais? E o que fariam agora, tão acostumadas que estavam à boemia dos últimos meses? Ficariam em casa com seus pais ou parceiros ou sozinhas? Mas isso não implicaria num afastamento entre elas, causando no grupo um desmembramento, pondo em cheque o suposto consentimento de não freqüentarem mais o bar? Se gostavam de beber, se gostavam de sair de casa e se divertir, não havendo mais pressão do grupo do qual imaginavam fazer parte, por que não voltar lá às noites e continuar a fazer o que faziam? E os que trabalhavam vendendo as bebidas, contabilizando o dinheiro dos fregueses? Estariam eles também envolvidos? Estes últimos, o dono e os freqüentadores não pertencem todos a um grupo só no interior do qual pudesse haver algum acordo de acabarem com as noites. Eis o meu raciocínio que naquela madrugada confortou o meu coração, pois ele me revelava como certeira a volta daquele pessoal todo, que, mesmo eles tendo me rejeitado e os meus poucos esforços no intuito de uma interação com eles tenham sido inteiramente malogrados, sabê-los já me tranqüilizava. O que eu extraía do que via neles era: "pessoas se divertem!"

Naquelas noites que se seguiram, quem resolvesse andar por lá na exata hora que o rebuliço começava nunca teria imaginado que naquele exato ponto há até algumas noites atrás funcionava um bar com enorme movimentação. Se imagino um indivíduo que ande por lá numa dessas noites ermas depois dos tempos de alvoroço ele certamente veria uma cena parecida com a que se vê em filmes de mortos-vivos. A sua sensação na esquina vazia se aproximaria da do inexistente, e todas as coisas com que esse homem se depararia pertenceriam como que a um limbo: longe da luz do dia que confere luminosidade e brilho, estariam elas mergulhadas num sono que é próprio da realidade dos objetos quando dormem os homens. A paisagem seria a mesma, todas as suas coisas na inércia de seu lugar, mas esvaziadas. Nas janelas em torno da esquina ele veria dentro de uma e outra variações do azul da televisão ainda ligada, ela sussurrando baixo nos ouvidos daqueles que dormiam as distâncias de outras realidades. Alguns carros estacionados, portas fechadas e as pedras da calçada compartilhariam a monotonia de um solo lunar. Enfim, com o bairro todo dormindo, talvez somente os ratos se ocupassem com o roer de restos e copulassem nos buracos sob a superfície áspera do asfalto. As cores pareceriam a este indivíduo restritas agora somente às horas do dia. Levando ainda mais longe a imaginação, pensemos este indivíduo com a capacidade de ampliar a potência de seu ouvido e se deitando ao chão, na lenta transformação do silêncio em ruídos ensurdecedores produzidos por bichos inimagináveis... Uma paisagem sonora nova se abriria diante dele, pois estando o tímpano deste homem a poucos centímetros da pedra da calçada ou do asfalto perceberia a vida em abundância e em sua mais plena atividade. Quanto as fracas luzes artificiais dos postes, se eram um convite extra para o esquecimento do que ocorre lá durante o dia não seriam elas ainda mais danosas para com aquelas noites de grande movimentação? Àquela hora da madrugada portavam a perigosa calma que arrasta consigo as coisas na direção do ... E fariam o mesmo com o que tenha ocorrido nas noites de festa com todos os seus detalhes. O meu passeio imaginativo através deste indivíduo igualmente fruto de minha imaginação talvez possibilite um rápido – porém marcante – vislumbre deste terrível e voraz retorno ao nada daquilo que nunca fora coisa alguma senão para mim e para quem o testemunhou.

Nos dias seguintes às seis da tarde ia até a janela tentar ver alguma movimentação que indicasse a volta do funcionamento do bar na noite que se aproximava. Trinta, quarenta, cinqüenta minutos se passavam e nada. Era incrível também que ninguém em nenhum daqueles dias que se seguiram, nenhum desinformado retardatário das novidades tenha ido por engano ao bar achando que o encontraria aberto. Eu só pensava comigo como aquilo era possível.

Movido pela curiosidade, no final de semana seguinte resolvi procurar alguém que freqüentasse o local para conversar e entender o que se passou, como e porque que de um dia para o outro as noitadas cessaram de maneira tão inusitada e aparentemente ensaiada por todos os seus envolvidos. Andei pela cidade tentando encontrar alguém que eu tivesse visto. De início pensei que seria fácil, pois não sendo a cidade grande em extensão e com relativamente pouca quantidade de gente, bastava andar por algumas ruas e quarteirões e atravessar seus bairros que sem dúvida encontraria alguém. Como já tinha observado, ninguém ia de carro, o que me permitiu pensar que eram moradores ou do meu bairro mesmo ou dos bairros vizinhos ao meu. Naquela tarde de sábado, com o dia estava bastante ensolarado saí procurando pelas ruas alguém que pudesse reconhecer. Depois de algumas horas, já prestes a anoitecer, desisti. No domingo saí para fazer a mesma coisa, voltando tarde para casa frustrado porque só tinha visto, além de transeuntes desconhecidos, velhos, um grupo de crianças num parque pouco cuidado e outro de crianças com mais idade sentadas na calçada de uma das avenida. Ao chegar ao meu prédio perguntei a um vizinho nascido na cidade se havia alguma universidade perto.

– Não temos universidade. – Respondeu. E continuou num nítido esforço de prolongar a conversa. – O pessoal quando quer estudar pra valer se vê forçado a sair daqui. Os que ficam trabalham com os negócios da família ou então não fazem nada mesmo. Aqui, como o senhor já deve ter percebido, não tem muita coisa para se fazer. Aqui as coisas são devagar.

– Mas, a...

– Nem notícia chega direito nessa cidade lerda. Pro senhor ter uma noção, até o nosso jornal é fraco. Para quem quiser ler alguma coisa e saber o que se passa nos Estados Unidos tem que pedir pra alguém trazer da cidade...

Desistindo de perguntar mais, agradeci pelas informações sem esperar que terminasse e subi rápido as escadas pulando os degraus de dois em dois.

Daquele dia em diante passei a caminhar atento tentado ver alguém daquela gente. Talvez isso tenha até se tornado uma obsessão, não tanto mais pela busca dos motivos que resultaram no fim das atividades, mas agora pelo inesperado e misterioso aparecimento e desaparecimento daquela rapaziada. Cheguei por um momento a duvidar daquelas noites, se eu não as tinha sonhado ou mesmo delirado. Mas era óbvio que não; eu gozava de plena saúde mental. Certa vez ouvi uns moradores do bairro comentando o assunto, aliás estavam reclamando do fato de que era diversão demais. Ouvi tal coisa na padaria a duas esquinas daqui. Tratava-se de um casal de velhos que conversavam algo sobre o quanto estavam felizes por ter terminado toda aquela "farra obscena".

No dia anterior à minha volta para a cidade de onde viera a uma distância de mais de mil quilômetros, sentado à mesa de casa com alguns documentos relativos a algumas pendências, ouço entrando pela janela alguns sons. Primeiro ignorei, imaginado ser de algum carro fazendo manobra ou algo do tipo. Mas a coisa persistiu. Fui até a janela e eis que vejo as portas do bar abertas e o pessoal, o mesmo dos meses de quando funcionava o bar, trazendo para fora as mesas e cadeiras e arrumando o espaço de onde todos ficavam para consumir bebidas. Vendo aquilo lá embaixo, desci imediatamente. Na entrada um dos garçons se vira e me pede para que eu saia e espere o estabelecimento abrir para o público. Respondi dando alguns passos para traz. Fiquei ali mesmo assistindo de perto até a noite a chegada de todos os meus desconhecidos "amigos". Dentro de mim lamentava o retorno da movimentação somente na noite que antecedia o meu retorno à minha cidade. Bar aberto, pegava cerveja no balcão, mexia o corpo entusiasmado, tentava sem a menor vergonha participar de conversas e sorrir para determinadas mulheres. As pessoas eram as mesmas que as dos meses anteriores usando até as mesmas roupas.

Já alta madrugada, exatamente às quatro e meia da manhã e estando com a cara cheia, notei que a rua se esvaziara. No bar ainda restavam alguns remanescentes bebendo sentados. Havia mais homem que mulher naquele exato momento. Uma pessoa, mais precisamente uma mulher, à minha esquerda, me chama e pergunta o meu nome. Enfim um contato de fato com alguém dali. Sentei ao seu lado e respondi dizendo a ela o meu nome. E continua.

– Você gosta daqui, não gosta?! Seu rosto te denuncia.

Enquanto falava com uma voz mole, esforçava-se em me olhar por baixo das pálpebras caídas que tapavam a metade dos seus olhos esbugalhados. Ela perecia estar entorpecida por alguma substância. E quando terminou de pronunciar aquelas palavras, ela reclina a cabeça para trás no intuito de continuar em manter-me à sua vista. Respondi em seguida.

– Gosto sim. Você também gosta?

A minha pergunta não obteve resposta. Ela não falou mais nada como eu também não tinha nada mais o que dizer. Levantou-se da mesa com certa dificuldade e foi na direção do banheiro. Quando novamente achei-me só, olhei ao meu redor e notei que muitos já tinham ido embora sem que eu percebesse e que agora somente algumas mesas estavam ocupadas. Nenhum rosto me era desconhecido àquela altura. Já vira cada um deles. Enquanto a mulher não voltava eu segurava a minha vontade de ir ao banheiro, em parte por preguiça e em parte porque queria esperar o último freguês sair. Eu não queria perdê-lo de vista. Mas não teve jeito. Vi-me obrigado a levantar da cadeira e ir mijar. Demorei um pouco antes de sair de lá porque me senti levemente enjoado quando diante do vaso. Na volta, da perspectiva que tive a partir da porta do banheiro do espaço onde estavam as mesas, pude ver que todas as mesas, inclusive a que eu estava sentado, haviam sido retiradas, com exceção de uma em que se sentava um camarada qualquer. Tratava-se de um homem estranho, de alguém que eu nunca vira antes mas que demonstrou certa hora intimidade com o último garçom restante.

Como que para desvendar o mistério do repentino aparecimento e desaparecimento daquele pessoal, inclusive dos próprios funcionários, e da sincronia que eu percebia existir entre eles – quando por uma temporada resolviam todos sair à noite para lá para de repente não irem mais, do nada reaparecendo todos novamente – tudo isso causara em mim uma enorme curiosidade, e para satisfazer-me seria necessário não apenas me aproximar mas segui-los, pelo menos um de seus exemplares diante do qual eu agora me achava. Era aquele que cara sentado na cadeira que me revelaria seus "esconderijos". Viviam mesmo em esconderijos ou não passavam de pessoas comuns? Se eu não os encontrei quando saí à sua procura isso não dizia muita coisa.

Faltavam algumas horas para a minha viajem de volta à minha cidade natal longe daquela a uma distância de quase um continente. Posicionei-me do outro lado da rua à sua espera, e não demorou muito para que se levantasse e fosse para a rua (se ele pagou alguma conta para o garçom ou não eu não reparei). Assim que saiu do bar, virou à esquerda. Fazendo o mesmo, mas depois de alguns segundos para que não me notasse, iniciei o que se revelaria uma esquisita jornada. Na rua que entrou ele seguiu reto talvez uns quatro quarteirões. A alguns metros atrás e no lado oposto da rua eu não o perdia de vista. Ele vira à esquerda, numa rua bastante iluminada. Com receio de ser visto, parei na esquina e esperei com que avançasse bastante. Quando já estava bem adiantado segui pelo mesmo caminho, agora não mais na calçada oposta à dele. Andamos cerca de uns dez minutos. O quarteirão seguinte era grande, não havendo ruas transversais em que pudesse entrar. Mas ao cabo desse tempo, ele atravessa para o outro lado e continua seguindo. Com passos firmes nem olhava para trás. Surge um beco por onde desce. Acelerei os meus passos. Àquela altura já estávamos bastante longe da minha esquina. Como as minhas malas já estavam prontas eu não tinha porque ter pressa de voltar. O beco era escuro e de curta extensão e a rua onde o beco desembocava era igualmente escura e silenciosa, embora fosse bastante larga. Era curioso eu não conhecer aquele lado da cidade: passando por casas construções nunca antes vistas, não era difícil imaginar estar em outra cidade. A escuridão daquelas últimas horas começava a ceder para a luminosidade anunciadora da manhã do dia que ao poucos iria se instaurar. O resultado visual era um azul muito escuro, o que me deixou impaciente com aquele que não chegava a lugar algum. Os minutos iam passando e o camarada ainda com o seu passo em direção sabe-se lá para onde. Comecei a duvidar de que iria para casa. Comecei a duvidar de que tivesse casa. Novamente ele entra à direita numa avenida. Passa um carro por nós. A avenida onde agora nos encontrávamos não me era de toda desconhecida. Alguns de seus traços me permitiam identificá-la. Depois de mais de meia hora andando, eu sorrateiramente indo atrás, ainda a luz que antecipava a entrada do sol já tendo agora praticamente inaugurado o dia e transformado o céu à sua maneira, cruzava com um ou outro trabalhador, donas de casa e alguns carros, e eis que me deparo com uma rua que (embora estivéssemos longe) desembocava novamente na esquina comum ao meu prédio e ao bar. O tal fulano resolve entrar nela, o que me fez ter certeza de que ele andava em círculos. E continuamos a andar. Cruzamos a minha esquina e o dia enfim se fez: de um lado o bar, do outro o meu prédio e sobre nós o belíssimo céu. E continuamos. Desta vez, ao invés de ir para a esquerda, como fizera antes, virou ele para a direita. Continuei mas não muito. A exigência de ter que devolver a chave do apartamento ao seu dono obrigou-me a abortar o plano.

Pois bem, o que para mim era apenas curioso transformou-se em algo misterioso. Quando se sai de um lugar para ir a outro, nesse meio tempo, no caminho que se percorre a pé, sob o olhar de um desconhecido se é apenas um transeunte. Aquele sujeito indo não sei para onde era um transeunte, mas de tipo diferente. Eu o tinha visto saindo de um lugar mas não ia para nenhum outro. Seriam todos os freqüentadores das noites da minha esquina como aquele cara? Entre uma noitada e outra ficariam eles caminhando ao léu como eternos transeuntes? Depois de entregar a chave, parti rumo ao aeroporto para a tão esperada volta. Depois de então nunca mais fui àquele lugar. Ouvi muito pouco qualquer referência de lá por parte de uns colegas de trabalho daqui.

BHChads
Enviado por BHChads em 12/11/2012
Reeditado em 12/11/2012
Código do texto: T3981347
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