HUMMMM!... CHEIROSA!...
Há pouco tempo fiquei sabendo que existem cartórios "registrais" neste país, e me lembrei da Berthy.
(...)
..1..
A criança seria chamada Berthe Olga; no entanto, por um desses "acidentes registrais" não muito raros, seu prenome foi grafado Bertioga, no livro público.
Como bons cidadãos, iguais a tantos, seus progenitores não prestaram mínima atenção à certidão de nascimento, quando esta lhes foi entregue. Guardaram-na numa caixa de papelão branco com tampa verde (embalagem de camisa social, transformada em arquivo-morto com etiqueta "Documentos", para nada se esquecer) onde já havia outros papéis importantes (!) protegidos das traças por duas bolinhas de naftalina magricelas e próximas à falência vital. Nem se deram ao trabalho de reforçar a proteção com novas bolinhas.
Dias depois guardaram, no provisório/definitivo arquivo, o batistério da filha, tendo verificado, num relance muito, muito rápido, que o prenome constante do certificado era mesmo o da pequerrucha levada à pia batismal. Estava lá, certinho: Berthe Olga.
(...)
Que amor de criança, que candura, que felicidade lhes dava!
(...)
Berthinha (assim chamada pelos familiares) viveu tranquila enquanto não chegou o tempo da escola. A partir de então, não o inferno, mas, o purgatório se instalou em sua vida - por culpa dos pais! que, depois de enfiarem o batistério na caixa naftalinada, não mais a abriram.
...Uns descuidados!
...Se tivessem remexido o tal arquivo num momento não ocupado pela costumeira preguiça mental (mesmo já decorridos dois, três, seis meses, ou um ano do arquivamento) , eles talvez se deparassem com o erro e talvez providenciassem a correção. Então, apresentariam a certidão de casamento do casal, a certidão de nascimento errada, o batistério certo, os comprovantes de vacinação contra todo tipo de doencinhas, arrolariam testemunhas, etc., etc.; entrariam com um procedimento judicial mais ou menos simples e (pronto!) estaria resolvido o problema. Isto é o que se esperaria de pais minimamente interessados no futuro de uma filha.
...De lambuja, ainda poderiam culpar o desinfeliz notário que cometera aquela verdadeira afronta às inteligências das pessoas envolvidas (deles, pais, principalmente), com direito a xingamento: " - Um mulo surdo, aquele escrivão!" - diriam, desabafando.
Tudo seria resolvido com uma "Súplica para retificação de nome"...
...- se a fizessem.
...Mas não fizeram! E o estrago se iniciaria no jardim da infância.
(...)
Bertioguinha! - era como a tia 'fessora a chamava, não imaginando os desconfortos que adviriam do carinho devotado à pupila. Bertioguinha também para os angelicais colegas primevos, carinhosamente; mas provocando bisbilhotice das outras mães: "- Não teriam encontrado outra 'denominação' para a coitadinha?!"
(...)
Constatado o processo de crescimento da Bertioguinha no ventre do jardim da infância, era o momento de se tentar desvirar a pobrezinha, para não nascer de fiofó pra Lua; era a segunda oportunidade para se corrigir o rumo da história do pequenino ser. Entretanto, os papais ronceiros mantiveram a coisa como sempre estivera: "- Não, não. Pra que mudar?" - opunham-se aos questionamentos que lhes faziam, embora lhes custasse explicar a origem do nome.
Se em casa ela atendesse pelo diminutivo Olguinha, talvez o mundo cá fora esquecesse o Bertioguinha. Mas o diabo é que os familiares continuaram no arraigadíssimo Berthinha!
...Então, veio à luz a criança duas-em-uma.
(...)
O problema se agravou no ginasial, onde não só de antigos amiguinhos a classe se constituía. Aí, o inusitado nome avivou a banda maldosa das cabeças, com a alunada piorando a história da mocinha. Para provocá-la, as vozes se avolumavam no pátio de recreio, fazendo soar um desesperador " - Alguém viu a Bertinha por aí?"...
(...)
Não mais Bertioguinha, não mais Bertinha: era Abertinha...
..2..
Durante anos a menina tentou livrar-se do pejorativo, enquanto ia acumulando complexos. Vãos eram os esforços para retirar a pecha, que permanecia inamovível, mais difícil de ser derrubada que político useiro e vezeiro em tramóias.
Finalmente percebeu que, quanto mais se amofinava, maior se tornavam as zombarias; daí tratou de se autopreservar, aceitando os escárnios e transformando-se num "tambor de guerra", num "hímen complacente": passou a rechaçar as crueldades lançando deboches a ela mesma - estratégia que, afinal, resultou na cessação paulatina dos ataques de que era vítima.
Quase ao tempo de a turma do colégio se desfazer, cansados da insistência sem retorno, desapontados com a nova postura da moça, as "tralhas ruíns" deixaram-na sossegar; não havia mais graça no atormentá-la.
...Entretanto, as marcas ficaram.
(...)
Terminado o curso normal, queimou pestanas, esmerou-se para o exame de ingresso ao magistério e foi aprovada com excelentes notas.
Bem classificada, não se aproveitou disso para lecionar numa escola próxima; ao contrário; escolheu trabalhar na zona rural de município distante, para o qual ir ou voltar era necessário um dia inteiro de viagem. Fez de propósito; queria se libertar do jugo das maldades que, embora esquecidas, temia voltassem mais adiante. Assim, quem quisesse visitá-la (se acaso alguém tivesse vontade de fazê-lo), teria que se submeter à longa viagem. Isto lhe garantiu distância dos "malfeitores" que tanto atormentaram sua vida.
Quando em férias, passava-as quase todo o tempo em casa, junto à familia, engordando.
...(Desde o último ano do curso normal tornara-se presa de ansiedades causadas pelas lembranças do inclemente bulir, apesar do recurso da autoflagelação que descobrira e de que já usara, ou seja, "fazer pouco" de si mesma).
A forma encontrada para livrar-se das ansiedades foi a costumeira: empanturrar-se de doces, variados doces, batatinhas fritas, pipocas - tudo acompanhado de refrigerantes e programas de televisão das mais diversas más qualidades. Televisores? tinham-nos; na escola rural e na casa dos pais; aparelhos antiquados, sem controles remotos (naqueles tempos eles não existiam); então, o único exercício fisico que praticava era o de levantar-se para mudar de canal e de novo sentar-se.
Mas, apesar de preferir ficar "recolhida ao anonimato", não havia como evitar as saídas de casa. À noite, as antigas "carrascas" iam-na sempre tirar do sossego, para as andadinhas nas ruas. Tinha receio de tornar-se antipática aos olhos das outras; se não saísse poderia ser pior, ocorrer um revertério daquilo que procurava esquecer e que, afinal, as danadinhas de outrora já haviam esquecido. Chamavam-na agora Berti; de o que acabou gostando: quando, com certa satisfação, escrevia frases, pensamentos seus em guardanapos de papel, mostrando-os às companheiras, ela grafava: BERTHY. Nessas ocasiões, procurava evitar os refrigerantes e os costumeiros acepipes: "- Não! Eu tenho controle sobre minhas vontades! Gosto sim, mas evito!"... - como se o corpo não evidenciasse os excessos da gula incontida.
(...)
Numas férias de verão em que resolveu sair da mesmice e visitar algumas praias do nordeste (" - Pelo menos uma vez na vida; eu mereço!" - dissera às companheiras, antes da partida) ela conheceu por lá um estrangeiro; gente fina; suiço; solteirão maduro, mais velho que ela quinze anos, empresário, bem situado na vida, que se encantou pela moça gorduchinha socada (de belas formas, ainda assim); que veio conhecer seus pais, suas amigas, sua cidade; que expressou vontade de com ela se casar e constituir família; que a incentivou a mudar de nome (soube de todo o drama por ela sofrido e gostou de como vinha sendo chamada agora: Berthy. Que ela, sua amada brasileira, esquecesse Bertioguinha, Bertinha, Abertinha; que esquecesse tudo o que passara por causa daquele animal de orelhas e rabo compridos, aquele mulo que lhe causara tantas amarguras! - o coitado do escrivão).
(...)
Assim, Berthe Olga, registrada por engano como Bertioga, finalmente teve sua vida regularizada através do mesmo procedimento judicial que deveria tê-la livrado dos sofrimentos, anos atrás: passou a ser Berthy.
...E como Berthy, casou-se, indo morar na Suíça.
..3..
Duas vezes ao ano voltava à terra natal: uma, para visitar os pais, acompanhada do casal de filhos nascidos nas estranjas, crianças simpáticas que frequentavam boas escolas e ainda novinhos se tornaram versados em idiomas; alegrias imensas dos avós, a quem eles, os netos, tratavam com igual carinho.
...A outra viagem era para desfrutar das praias nordestinas onde, numa delas, conhecera seu adorável companheiro. Este, que a acompanhava nessa estada praiana, sempre fazia questão de reservar uns dias para visitar os sogros no sudeste, não obstante as centenas de quilômetros entre as duas regiões. Um gentleman, o homem; rico, mas simples; desses que colocam sandália de borracha, bermuda, compra pão para fazer sanduíche de mortadela, bebe guaraná e bate papo na esquina, quase perdendo a hora de ir buscar os filhos no sítio do vizinho de sô Perácio e dona Memeca, seus sogros.
(...)
Generosa, coração mole, Berthy nem se lembrava mais das torturas por que passara na juventude, e toda vez que vinha em visita aos pais, trazia presentes para as antigas torturadoras, presentes caros, geralmente perfumes de marca.
...É que, de certa feita, as bandidinhas ficaram tão inebriadas com o "cheiro" que ela usava que todas, absolutamente todas, se expressaram do mesmo modo:
- Hummmm!... Cheirosa!...
- Chanel (...) - respondeu-lhes, inocentemente. Sem nenhuma arrogância. Sem arrotos de grandeza.
No ano seguinte, trouxe para todas, para absolutamente todas elas, o Chanel em questão.
O ato se tornou rotineiro. Não se definindo, o dito, como sinceridade ou ponta de despeito, a cada ano, a cada " - Hummmm!... Cheirosa!..." ganhavam todas, absolutamente todas, o parfum, a eau de toilette correspondente ao elogio: ou Rabanne, ou Yves, ou Gucci...
...A cada ano as meninas iam enfileirando frascos das melhores essências nas respectivas penteadeiras.
(...)
Tudo corria bem; os dissabores pareciam ter desaparecido, definitivamente,
...até que a ingênua, a pacífica, a limpa de coração Berthy e o gentil marido Franz resolveram mudar o itinerário das férias: vieram desfrutá-las numa praia conhecida do sudeste, juntamente com sô Perácio e dona Memeca. Não fizeram estardalhaço, não anunciaram pra ninguém, pois desejavam reunir a família, e descansar, sem badalações.
...Porém, as danadas ficaram sabendo - talvez por uma inconfidenciazinha escapada, um descuidinho, por parte de dona Memeca ou sô Perácio.
De bocas costuradas, as amigas combinaram seguir o mesmo roteiro, descobrir onde eles se refugiavam, e fazer-lhes surpresa. Achá-los não seria difícil; teriam uma semana de sol prometida pelo serviço de meteorologia, tempo suficiente para cumprimento do desígnio. Caso não acontecesse o intento, ora!, ao menos iriam gozar dum bom período de relaxamento junto ao mar, coisa que não faziam com frequência.
Estavam trocando ideias de o que levar de vestuário quando uma delas disse:
- Vocês se lembram das palavras da... da... "Abertinha"?...
Ouvindo a "senha" que tanto as divertira nos tempos do pátio do colégio, soltaram uma gargalhada uníssona, barulhenta, longa, que as fez se retorcerem com espasmos nos ventres, os esgares lhes provocando caretas.
..."- Ela disse: "Pelo menos uma vez na vida; eu mereço!"... - concluiu a chacoteira.
- É! A "Abertinha" se deu bem! - acrescentou outra.
- Nós também merecemos ficar lagartixando ao sol por uns tempos! - rematou uma terceira.
(...)
Na manhã seguinte seis amiguinhas da plácida Berthy partiram em busca da "aventura", cheias de bons propósitos.
...Porém, seus pensamentos já haviam retroagido à época das devastadoras "implicâncias juvenís".
..4..
No quarto dia de praia as curiosas viram que não era tão fácil encontrar pessoas num mundaréu de gente. Suas peles, queimadas e ardidas, estavam a ponto de se despregarem, como a de amendoim torrado, pois queriam ficar moreninhas rapidamente e, ao invés de protetores solares, usavam bronzeadores baratos, tão ineficientes quão as tinturas de urucum que preparavam naquela época em que ainda eram "brotinhos".
De tudo riam, de tudo faziam chacota, sem prestar atenção a elas mesmas, camarões fritos expostos ao sol rigoroso, do meio dia (que era a hora em que chegavam à areia) às cinco da tarde.
- Vocês viram a gorducha com roupa de mergulhadora, lá, nas pedras aonde fomos? Que coisa ridícula, aqueles cabelos avermelhados!
- Eu vi! De longe, com aquele "colant", ou sei lá o quê, parecia um chouriço!
- Ou morsa!
- Ou mero gigante!
- Pra mim, era um olho-de-sogra com recheio de doce de abóbora!
- Quem sabe era a "Abertinha"? Estava com jeito de ser!...
(...)
Quem sabe era a Abertinha?!
Cada qual fez, à mergulhadora desconhecida, uma "lisonja".
A partir daí as fofoqueiras não mais seguraram a vontade de ridicularizar a vítima ausente, e antegozavam os próximos acontecimentos. A mulher de cabelos avermelhados... Elas nem mais torciam para que fosse; elas tinham certeza de que era a Berthy!...
...Ah! Quando a encontrassem!...
Realmente, estavam cheias de boas intenções...
...............................................................................................
Alguém em quem vemos qualidades de santo, dizemos dele: "- É muito humano".
Sendo o único animal racional, o homem faz, acontece, tem vontades e prazeres satisfeitos: desrespeita, escarnece, espezinha, maltrata, rouba, mata!...
...Então, que é ser "muito humano"? É ser mais do que já é? Afora a raça humana, existe alguma que pratique vilezas tais, nesta bola solta no Universo?
(...)
O sadismo está enraizado até nas "pequenas maldades sem maldade" - como essas que os "algozes renascidos" pretendiam infligir à Berthy, aplicando-lhe pequenos castigos com seus látegos impiedosos, suas línguas sem rédeas.
................................................................................................
Encontraram Berthy quando procuravam por outra coisa, que não ela: procuravam onde fazer xixi.
(...)
Estavam apertadinhas e não queriam ir à água fria para se aliviarem. Ademais, o fato de todos aqueles "lagostins" entrarem e, imediatamente, sairem do mar, chamaria a atenção dos banhistas, que perceberiam a causa de tanta rapidez dos "crustáceos" para... se refrescarem.
...(As matutas ficariam envergonhadas... Não fariam papel de bobas)...
O quartinho salvador poderia estar num daqueles quiosques próximos. Para lá se dirigiram e foram informadas, à entrada, de que o sanitário se localizava pouco mais adiante, ali mesmo, na areia; era só andarem uns dez metros.
Foram, resolveram a aflição, saíram fazendo barulho maior que revoada de maitacas, coisa não apropriada para suas idades (afinal, umas senhoras, ainda que as rugas não se evidenciassem a ponto de fazê-las acharem-se velhas) e, exatamente defronte ao quiosque onde tiveram a informação, deram de cara com Berthy e os familiares, que ali foram se alimentar, e já se ausentavam.
- ABERTINHA! - gritaram todas, à distância de uns passos - Há quatro dias estamos a sua procura, gorda balofa!
(...)
...(Era duro, mas era verdade: ali se achavam seis criaturas diabescas, seis figurinhas torradas de sol, as quais, se olhadas com cuidado, poder-se-iam encontrar em suas cabeças as semelhanças de chifrinhos - em que, de fato, os anéis dos cabelos, levantados aos lados das testas, se transformaram, devido ao ressecamento causado pela quentura do sol).
(...)
Pareceu um coro; pareceu terem ensaiado tal a precisão do grito. Pareceu mesmo coisa arrumada para perturbar.
...Abertinha!
...- desrespeitando a presença do marido, dos pais, dos filhos da coitada. Mas ainda bem que eles tinham se distanciado, iam mais à frente, envolvidos numa conversação, nem percebendo bem o que se passava. Apenas voltaram meio corpo, cumprimentaram as conhecidas e continuaram adiante, enquanto Berthy parou, para atender as vilãs.
- Estão me procurando por quê, para quê? - perguntou-lhes.
- Para nada. Apenas por procurar - respondeu uma. E lembrando-se da mulher de cabelos vermelhos, virou-se para as outras: - Não é ela, gente! Não é ela a mulher de ontem! Que pena! Eu estou frustrada!
- Nós também!
Berthy deixou transparecer uma interrogação no olhar lançado às "meninas", sem saber de que se tratava.
Riram dela.
- É que nós vimos uma "coisa" vestida de mergulhadora... - começou a primeira...
- ...que era... como posso dizer... era assim... estofada, volumosa... - continuou a segunda...
- ...com os cabelos vermelhos - seguiu a terceira...
- ...e achamos que fosse você! - completou a quarta.
Riram novamente. Estava divertida, a sessão.
- A "coisa" era enorme, um chouriço enorme...
- ...uma morsa...
- ...um mero gigante...
- ...um olho-de-sogra com doce de abóbora...
- ...Lembrava você!
(...)
"- Então, agora vocês mostram quem vocês são... aliás, quem vocês sempre foram! Eu já esperava; não me surpreendo!" - pensou Berthy. Esboçou um sorriso; que depois se abriu num riso maior, e exclamou: - É isto aí, garotas! Mas, como veem: eu não tenho cabelos vermelhos!
(...)
Conversa de mulher é meio diferente. Muitas vezes elas se encontram, fazem uns longos prolegômenos e só depois vão se abraçar e beijar. Assim aconteceu neste encontro...
... - duplamente desagradável para Berthy, por terem-na descoberto, e por terem resolvido (aquelas ervas daninhas!) infernizar sua vida.
...Mas não! Elas nao iriam conseguir isto! Nem infernizar, nem mantê-la no purgatório, como no passado.
Só depois de todas aquelas demonstrações de "consideração" pela colega é que as bem intencionadas garotas se dignaram em abraçar e beijar Berthy. A última delas se encarregou do golpe final:
- Hummmm!... Cheirosa!...
Berthy se surpreendeu, pois não se perfumara para ir à praia.
... - Não precisa dizer; eu já sei: "Bolinho de bacalhau e cerveja!!!" - arrematou a maldosa. Então, seis criaturas diabescas sofreram espasmos ventrais e contorções faciais, devido aos violentos esgares provocados pela "ótima" piada.
Berthy não se abalou. Riu da pobreza de espírito delas.
- Que bom, vocês lembrarem! Vocês já comeram alguma coisa? - perguntou.
Não, disseram (haviam andado o tempo todo, perambulando pela praia, sem um tostão, nem para beberem água de coco).
- Então, vão todas comer bolinho de bacalhau e beber cerveja. Eu pago! - resolveu, levando-as ao quiosque.
Chamou o garçon, fez o pedido, pagou e disse às outras:
- Aguardo vocês aqui pertinho. Não precisam correr.
Elas agradeceram. Tinham fome.
- 'Tá bom, amiga. 'Té já, então!
(...)
Meia hora depois procuraram, mas não encontraram Berthy.
Foram à praia nos dois dias seguintes, e na manhã do sétimo dia de permanência no balneário fizeram as despedidas das areias. Viajaram à tarde, de volta pra casa, sem saber onde Berthy e os familiares se enfurnaram.
.................................................................................................
Berthy vem duas vezes ao ano à sua pátria: uma exclusivamente para visitar os pais; outra para se dourar ao sol.
Os frascos de perfume enfileirados nas penteadeiras das companheiras são recordações dos tempos das vacas gordas. Estão secos; só servem de ornamento. Não mais houve "reposição de peças".
...As últimas lembranças perfumosas de Berthy para as amigas foram as seis porções de bolinhos de bacalhau e seis latinhas de cerveja, de que elas usufruíram rapidamente, de uma vez, num único piscar de olhos. Tinham fome e sede.
(...)
...Berthy não quis mais passar pelo purgatório.
(...)
Sô Perácio e dona Memeca estão bem. Nunca perceberam os transtornos que causaram à filha. Continuam desligados; mas têm casa e corações onde cabe todo mundo. São santos; daqueles a quem queremos nos igualar quando os qualificamos de "muito humanos": justos, incapazes de fazer mal .
(...)
- Berthy está estranha! Vem, visita os pais e não nos procura! 'Tá se sentindo rica, a balofa!
- ...É mais uma "new rich", dessas que nunca tiveram nada na vida e agora nem sabem gastar o dinheiro do maridão!
- ...É uma "munheca"!
- ...E pensar que nós ganhamos todas aquelas queimaduras por causa dela!...
(...)
---<<)){o}((>>---
Nov.09, 2012
(...)
..1..
A criança seria chamada Berthe Olga; no entanto, por um desses "acidentes registrais" não muito raros, seu prenome foi grafado Bertioga, no livro público.
Como bons cidadãos, iguais a tantos, seus progenitores não prestaram mínima atenção à certidão de nascimento, quando esta lhes foi entregue. Guardaram-na numa caixa de papelão branco com tampa verde (embalagem de camisa social, transformada em arquivo-morto com etiqueta "Documentos", para nada se esquecer) onde já havia outros papéis importantes (!) protegidos das traças por duas bolinhas de naftalina magricelas e próximas à falência vital. Nem se deram ao trabalho de reforçar a proteção com novas bolinhas.
Dias depois guardaram, no provisório/definitivo arquivo, o batistério da filha, tendo verificado, num relance muito, muito rápido, que o prenome constante do certificado era mesmo o da pequerrucha levada à pia batismal. Estava lá, certinho: Berthe Olga.
(...)
Que amor de criança, que candura, que felicidade lhes dava!
(...)
Berthinha (assim chamada pelos familiares) viveu tranquila enquanto não chegou o tempo da escola. A partir de então, não o inferno, mas, o purgatório se instalou em sua vida - por culpa dos pais! que, depois de enfiarem o batistério na caixa naftalinada, não mais a abriram.
...Uns descuidados!
...Se tivessem remexido o tal arquivo num momento não ocupado pela costumeira preguiça mental (mesmo já decorridos dois, três, seis meses, ou um ano do arquivamento) , eles talvez se deparassem com o erro e talvez providenciassem a correção. Então, apresentariam a certidão de casamento do casal, a certidão de nascimento errada, o batistério certo, os comprovantes de vacinação contra todo tipo de doencinhas, arrolariam testemunhas, etc., etc.; entrariam com um procedimento judicial mais ou menos simples e (pronto!) estaria resolvido o problema. Isto é o que se esperaria de pais minimamente interessados no futuro de uma filha.
...De lambuja, ainda poderiam culpar o desinfeliz notário que cometera aquela verdadeira afronta às inteligências das pessoas envolvidas (deles, pais, principalmente), com direito a xingamento: " - Um mulo surdo, aquele escrivão!" - diriam, desabafando.
Tudo seria resolvido com uma "Súplica para retificação de nome"...
...- se a fizessem.
...Mas não fizeram! E o estrago se iniciaria no jardim da infância.
(...)
Bertioguinha! - era como a tia 'fessora a chamava, não imaginando os desconfortos que adviriam do carinho devotado à pupila. Bertioguinha também para os angelicais colegas primevos, carinhosamente; mas provocando bisbilhotice das outras mães: "- Não teriam encontrado outra 'denominação' para a coitadinha?!"
(...)
Constatado o processo de crescimento da Bertioguinha no ventre do jardim da infância, era o momento de se tentar desvirar a pobrezinha, para não nascer de fiofó pra Lua; era a segunda oportunidade para se corrigir o rumo da história do pequenino ser. Entretanto, os papais ronceiros mantiveram a coisa como sempre estivera: "- Não, não. Pra que mudar?" - opunham-se aos questionamentos que lhes faziam, embora lhes custasse explicar a origem do nome.
Se em casa ela atendesse pelo diminutivo Olguinha, talvez o mundo cá fora esquecesse o Bertioguinha. Mas o diabo é que os familiares continuaram no arraigadíssimo Berthinha!
...Então, veio à luz a criança duas-em-uma.
(...)
O problema se agravou no ginasial, onde não só de antigos amiguinhos a classe se constituía. Aí, o inusitado nome avivou a banda maldosa das cabeças, com a alunada piorando a história da mocinha. Para provocá-la, as vozes se avolumavam no pátio de recreio, fazendo soar um desesperador " - Alguém viu a Bertinha por aí?"...
(...)
Não mais Bertioguinha, não mais Bertinha: era Abertinha...
..2..
Durante anos a menina tentou livrar-se do pejorativo, enquanto ia acumulando complexos. Vãos eram os esforços para retirar a pecha, que permanecia inamovível, mais difícil de ser derrubada que político useiro e vezeiro em tramóias.
Finalmente percebeu que, quanto mais se amofinava, maior se tornavam as zombarias; daí tratou de se autopreservar, aceitando os escárnios e transformando-se num "tambor de guerra", num "hímen complacente": passou a rechaçar as crueldades lançando deboches a ela mesma - estratégia que, afinal, resultou na cessação paulatina dos ataques de que era vítima.
Quase ao tempo de a turma do colégio se desfazer, cansados da insistência sem retorno, desapontados com a nova postura da moça, as "tralhas ruíns" deixaram-na sossegar; não havia mais graça no atormentá-la.
...Entretanto, as marcas ficaram.
(...)
Terminado o curso normal, queimou pestanas, esmerou-se para o exame de ingresso ao magistério e foi aprovada com excelentes notas.
Bem classificada, não se aproveitou disso para lecionar numa escola próxima; ao contrário; escolheu trabalhar na zona rural de município distante, para o qual ir ou voltar era necessário um dia inteiro de viagem. Fez de propósito; queria se libertar do jugo das maldades que, embora esquecidas, temia voltassem mais adiante. Assim, quem quisesse visitá-la (se acaso alguém tivesse vontade de fazê-lo), teria que se submeter à longa viagem. Isto lhe garantiu distância dos "malfeitores" que tanto atormentaram sua vida.
Quando em férias, passava-as quase todo o tempo em casa, junto à familia, engordando.
...(Desde o último ano do curso normal tornara-se presa de ansiedades causadas pelas lembranças do inclemente bulir, apesar do recurso da autoflagelação que descobrira e de que já usara, ou seja, "fazer pouco" de si mesma).
A forma encontrada para livrar-se das ansiedades foi a costumeira: empanturrar-se de doces, variados doces, batatinhas fritas, pipocas - tudo acompanhado de refrigerantes e programas de televisão das mais diversas más qualidades. Televisores? tinham-nos; na escola rural e na casa dos pais; aparelhos antiquados, sem controles remotos (naqueles tempos eles não existiam); então, o único exercício fisico que praticava era o de levantar-se para mudar de canal e de novo sentar-se.
Mas, apesar de preferir ficar "recolhida ao anonimato", não havia como evitar as saídas de casa. À noite, as antigas "carrascas" iam-na sempre tirar do sossego, para as andadinhas nas ruas. Tinha receio de tornar-se antipática aos olhos das outras; se não saísse poderia ser pior, ocorrer um revertério daquilo que procurava esquecer e que, afinal, as danadinhas de outrora já haviam esquecido. Chamavam-na agora Berti; de o que acabou gostando: quando, com certa satisfação, escrevia frases, pensamentos seus em guardanapos de papel, mostrando-os às companheiras, ela grafava: BERTHY. Nessas ocasiões, procurava evitar os refrigerantes e os costumeiros acepipes: "- Não! Eu tenho controle sobre minhas vontades! Gosto sim, mas evito!"... - como se o corpo não evidenciasse os excessos da gula incontida.
(...)
Numas férias de verão em que resolveu sair da mesmice e visitar algumas praias do nordeste (" - Pelo menos uma vez na vida; eu mereço!" - dissera às companheiras, antes da partida) ela conheceu por lá um estrangeiro; gente fina; suiço; solteirão maduro, mais velho que ela quinze anos, empresário, bem situado na vida, que se encantou pela moça gorduchinha socada (de belas formas, ainda assim); que veio conhecer seus pais, suas amigas, sua cidade; que expressou vontade de com ela se casar e constituir família; que a incentivou a mudar de nome (soube de todo o drama por ela sofrido e gostou de como vinha sendo chamada agora: Berthy. Que ela, sua amada brasileira, esquecesse Bertioguinha, Bertinha, Abertinha; que esquecesse tudo o que passara por causa daquele animal de orelhas e rabo compridos, aquele mulo que lhe causara tantas amarguras! - o coitado do escrivão).
(...)
Assim, Berthe Olga, registrada por engano como Bertioga, finalmente teve sua vida regularizada através do mesmo procedimento judicial que deveria tê-la livrado dos sofrimentos, anos atrás: passou a ser Berthy.
...E como Berthy, casou-se, indo morar na Suíça.
..3..
Duas vezes ao ano voltava à terra natal: uma, para visitar os pais, acompanhada do casal de filhos nascidos nas estranjas, crianças simpáticas que frequentavam boas escolas e ainda novinhos se tornaram versados em idiomas; alegrias imensas dos avós, a quem eles, os netos, tratavam com igual carinho.
...A outra viagem era para desfrutar das praias nordestinas onde, numa delas, conhecera seu adorável companheiro. Este, que a acompanhava nessa estada praiana, sempre fazia questão de reservar uns dias para visitar os sogros no sudeste, não obstante as centenas de quilômetros entre as duas regiões. Um gentleman, o homem; rico, mas simples; desses que colocam sandália de borracha, bermuda, compra pão para fazer sanduíche de mortadela, bebe guaraná e bate papo na esquina, quase perdendo a hora de ir buscar os filhos no sítio do vizinho de sô Perácio e dona Memeca, seus sogros.
(...)
Generosa, coração mole, Berthy nem se lembrava mais das torturas por que passara na juventude, e toda vez que vinha em visita aos pais, trazia presentes para as antigas torturadoras, presentes caros, geralmente perfumes de marca.
...É que, de certa feita, as bandidinhas ficaram tão inebriadas com o "cheiro" que ela usava que todas, absolutamente todas, se expressaram do mesmo modo:
- Hummmm!... Cheirosa!...
- Chanel (...) - respondeu-lhes, inocentemente. Sem nenhuma arrogância. Sem arrotos de grandeza.
No ano seguinte, trouxe para todas, para absolutamente todas elas, o Chanel em questão.
O ato se tornou rotineiro. Não se definindo, o dito, como sinceridade ou ponta de despeito, a cada ano, a cada " - Hummmm!... Cheirosa!..." ganhavam todas, absolutamente todas, o parfum, a eau de toilette correspondente ao elogio: ou Rabanne, ou Yves, ou Gucci...
...A cada ano as meninas iam enfileirando frascos das melhores essências nas respectivas penteadeiras.
(...)
Tudo corria bem; os dissabores pareciam ter desaparecido, definitivamente,
...até que a ingênua, a pacífica, a limpa de coração Berthy e o gentil marido Franz resolveram mudar o itinerário das férias: vieram desfrutá-las numa praia conhecida do sudeste, juntamente com sô Perácio e dona Memeca. Não fizeram estardalhaço, não anunciaram pra ninguém, pois desejavam reunir a família, e descansar, sem badalações.
...Porém, as danadas ficaram sabendo - talvez por uma inconfidenciazinha escapada, um descuidinho, por parte de dona Memeca ou sô Perácio.
De bocas costuradas, as amigas combinaram seguir o mesmo roteiro, descobrir onde eles se refugiavam, e fazer-lhes surpresa. Achá-los não seria difícil; teriam uma semana de sol prometida pelo serviço de meteorologia, tempo suficiente para cumprimento do desígnio. Caso não acontecesse o intento, ora!, ao menos iriam gozar dum bom período de relaxamento junto ao mar, coisa que não faziam com frequência.
Estavam trocando ideias de o que levar de vestuário quando uma delas disse:
- Vocês se lembram das palavras da... da... "Abertinha"?...
Ouvindo a "senha" que tanto as divertira nos tempos do pátio do colégio, soltaram uma gargalhada uníssona, barulhenta, longa, que as fez se retorcerem com espasmos nos ventres, os esgares lhes provocando caretas.
..."- Ela disse: "Pelo menos uma vez na vida; eu mereço!"... - concluiu a chacoteira.
- É! A "Abertinha" se deu bem! - acrescentou outra.
- Nós também merecemos ficar lagartixando ao sol por uns tempos! - rematou uma terceira.
(...)
Na manhã seguinte seis amiguinhas da plácida Berthy partiram em busca da "aventura", cheias de bons propósitos.
...Porém, seus pensamentos já haviam retroagido à época das devastadoras "implicâncias juvenís".
..4..
No quarto dia de praia as curiosas viram que não era tão fácil encontrar pessoas num mundaréu de gente. Suas peles, queimadas e ardidas, estavam a ponto de se despregarem, como a de amendoim torrado, pois queriam ficar moreninhas rapidamente e, ao invés de protetores solares, usavam bronzeadores baratos, tão ineficientes quão as tinturas de urucum que preparavam naquela época em que ainda eram "brotinhos".
De tudo riam, de tudo faziam chacota, sem prestar atenção a elas mesmas, camarões fritos expostos ao sol rigoroso, do meio dia (que era a hora em que chegavam à areia) às cinco da tarde.
- Vocês viram a gorducha com roupa de mergulhadora, lá, nas pedras aonde fomos? Que coisa ridícula, aqueles cabelos avermelhados!
- Eu vi! De longe, com aquele "colant", ou sei lá o quê, parecia um chouriço!
- Ou morsa!
- Ou mero gigante!
- Pra mim, era um olho-de-sogra com recheio de doce de abóbora!
- Quem sabe era a "Abertinha"? Estava com jeito de ser!...
(...)
Quem sabe era a Abertinha?!
Cada qual fez, à mergulhadora desconhecida, uma "lisonja".
A partir daí as fofoqueiras não mais seguraram a vontade de ridicularizar a vítima ausente, e antegozavam os próximos acontecimentos. A mulher de cabelos avermelhados... Elas nem mais torciam para que fosse; elas tinham certeza de que era a Berthy!...
...Ah! Quando a encontrassem!...
Realmente, estavam cheias de boas intenções...
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Alguém em quem vemos qualidades de santo, dizemos dele: "- É muito humano".
Sendo o único animal racional, o homem faz, acontece, tem vontades e prazeres satisfeitos: desrespeita, escarnece, espezinha, maltrata, rouba, mata!...
...Então, que é ser "muito humano"? É ser mais do que já é? Afora a raça humana, existe alguma que pratique vilezas tais, nesta bola solta no Universo?
(...)
O sadismo está enraizado até nas "pequenas maldades sem maldade" - como essas que os "algozes renascidos" pretendiam infligir à Berthy, aplicando-lhe pequenos castigos com seus látegos impiedosos, suas línguas sem rédeas.
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Encontraram Berthy quando procuravam por outra coisa, que não ela: procuravam onde fazer xixi.
(...)
Estavam apertadinhas e não queriam ir à água fria para se aliviarem. Ademais, o fato de todos aqueles "lagostins" entrarem e, imediatamente, sairem do mar, chamaria a atenção dos banhistas, que perceberiam a causa de tanta rapidez dos "crustáceos" para... se refrescarem.
...(As matutas ficariam envergonhadas... Não fariam papel de bobas)...
O quartinho salvador poderia estar num daqueles quiosques próximos. Para lá se dirigiram e foram informadas, à entrada, de que o sanitário se localizava pouco mais adiante, ali mesmo, na areia; era só andarem uns dez metros.
Foram, resolveram a aflição, saíram fazendo barulho maior que revoada de maitacas, coisa não apropriada para suas idades (afinal, umas senhoras, ainda que as rugas não se evidenciassem a ponto de fazê-las acharem-se velhas) e, exatamente defronte ao quiosque onde tiveram a informação, deram de cara com Berthy e os familiares, que ali foram se alimentar, e já se ausentavam.
- ABERTINHA! - gritaram todas, à distância de uns passos - Há quatro dias estamos a sua procura, gorda balofa!
(...)
...(Era duro, mas era verdade: ali se achavam seis criaturas diabescas, seis figurinhas torradas de sol, as quais, se olhadas com cuidado, poder-se-iam encontrar em suas cabeças as semelhanças de chifrinhos - em que, de fato, os anéis dos cabelos, levantados aos lados das testas, se transformaram, devido ao ressecamento causado pela quentura do sol).
(...)
Pareceu um coro; pareceu terem ensaiado tal a precisão do grito. Pareceu mesmo coisa arrumada para perturbar.
...Abertinha!
...- desrespeitando a presença do marido, dos pais, dos filhos da coitada. Mas ainda bem que eles tinham se distanciado, iam mais à frente, envolvidos numa conversação, nem percebendo bem o que se passava. Apenas voltaram meio corpo, cumprimentaram as conhecidas e continuaram adiante, enquanto Berthy parou, para atender as vilãs.
- Estão me procurando por quê, para quê? - perguntou-lhes.
- Para nada. Apenas por procurar - respondeu uma. E lembrando-se da mulher de cabelos vermelhos, virou-se para as outras: - Não é ela, gente! Não é ela a mulher de ontem! Que pena! Eu estou frustrada!
- Nós também!
Berthy deixou transparecer uma interrogação no olhar lançado às "meninas", sem saber de que se tratava.
Riram dela.
- É que nós vimos uma "coisa" vestida de mergulhadora... - começou a primeira...
- ...que era... como posso dizer... era assim... estofada, volumosa... - continuou a segunda...
- ...com os cabelos vermelhos - seguiu a terceira...
- ...e achamos que fosse você! - completou a quarta.
Riram novamente. Estava divertida, a sessão.
- A "coisa" era enorme, um chouriço enorme...
- ...uma morsa...
- ...um mero gigante...
- ...um olho-de-sogra com doce de abóbora...
- ...Lembrava você!
(...)
"- Então, agora vocês mostram quem vocês são... aliás, quem vocês sempre foram! Eu já esperava; não me surpreendo!" - pensou Berthy. Esboçou um sorriso; que depois se abriu num riso maior, e exclamou: - É isto aí, garotas! Mas, como veem: eu não tenho cabelos vermelhos!
(...)
Conversa de mulher é meio diferente. Muitas vezes elas se encontram, fazem uns longos prolegômenos e só depois vão se abraçar e beijar. Assim aconteceu neste encontro...
... - duplamente desagradável para Berthy, por terem-na descoberto, e por terem resolvido (aquelas ervas daninhas!) infernizar sua vida.
...Mas não! Elas nao iriam conseguir isto! Nem infernizar, nem mantê-la no purgatório, como no passado.
Só depois de todas aquelas demonstrações de "consideração" pela colega é que as bem intencionadas garotas se dignaram em abraçar e beijar Berthy. A última delas se encarregou do golpe final:
- Hummmm!... Cheirosa!...
Berthy se surpreendeu, pois não se perfumara para ir à praia.
... - Não precisa dizer; eu já sei: "Bolinho de bacalhau e cerveja!!!" - arrematou a maldosa. Então, seis criaturas diabescas sofreram espasmos ventrais e contorções faciais, devido aos violentos esgares provocados pela "ótima" piada.
Berthy não se abalou. Riu da pobreza de espírito delas.
- Que bom, vocês lembrarem! Vocês já comeram alguma coisa? - perguntou.
Não, disseram (haviam andado o tempo todo, perambulando pela praia, sem um tostão, nem para beberem água de coco).
- Então, vão todas comer bolinho de bacalhau e beber cerveja. Eu pago! - resolveu, levando-as ao quiosque.
Chamou o garçon, fez o pedido, pagou e disse às outras:
- Aguardo vocês aqui pertinho. Não precisam correr.
Elas agradeceram. Tinham fome.
- 'Tá bom, amiga. 'Té já, então!
(...)
Meia hora depois procuraram, mas não encontraram Berthy.
Foram à praia nos dois dias seguintes, e na manhã do sétimo dia de permanência no balneário fizeram as despedidas das areias. Viajaram à tarde, de volta pra casa, sem saber onde Berthy e os familiares se enfurnaram.
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Berthy vem duas vezes ao ano à sua pátria: uma exclusivamente para visitar os pais; outra para se dourar ao sol.
Os frascos de perfume enfileirados nas penteadeiras das companheiras são recordações dos tempos das vacas gordas. Estão secos; só servem de ornamento. Não mais houve "reposição de peças".
...As últimas lembranças perfumosas de Berthy para as amigas foram as seis porções de bolinhos de bacalhau e seis latinhas de cerveja, de que elas usufruíram rapidamente, de uma vez, num único piscar de olhos. Tinham fome e sede.
(...)
...Berthy não quis mais passar pelo purgatório.
(...)
Sô Perácio e dona Memeca estão bem. Nunca perceberam os transtornos que causaram à filha. Continuam desligados; mas têm casa e corações onde cabe todo mundo. São santos; daqueles a quem queremos nos igualar quando os qualificamos de "muito humanos": justos, incapazes de fazer mal .
(...)
- Berthy está estranha! Vem, visita os pais e não nos procura! 'Tá se sentindo rica, a balofa!
- ...É mais uma "new rich", dessas que nunca tiveram nada na vida e agora nem sabem gastar o dinheiro do maridão!
- ...É uma "munheca"!
- ...E pensar que nós ganhamos todas aquelas queimaduras por causa dela!...
(...)
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Nov.09, 2012