A mulher que se curou
Havia uma intensa necessidade de viver de ilusões. Minha fuga do real consistia em crer nessas ilusões históricas. Havia em mim certa urgência em projetar a imaginação sobre tais sonhos coletivizados. Vivi boa parte de minha vida ligada a inúmeras fantasias consoladoras sobre o único medo. O medo primitivo de todos. A primeira célula da imaginação criadora: a morte. Sobre ela toda espiritualidade é recurso imaginário para prover a vida de um colorido perdido. Mas o que perdemos de tão importante? O contato simples da ternura, cuja única invenção consiste em conceber poesia ou ser devorado pelas crenças. Mas na medida em que conhecemos a história o sangue começa a verter do caminho religioso para domínio social. Deste modo comecei a perceber claramente o erro subjetivo de minha escolha. Teria sido escolha ou herança de hábitos?
O dia em que Deus perdeu sua existência em minha ilusão de Ser, comecei a ver a humanidade de fato como ela é. Eu me tornara uma mulher somente humana e minha gravidez permitia explorar sensações místicas. Estava disposta a jamais reproduzir este engano. A guerra religiosa havia secado minhas lágrimas e entrevado uma realidade cruel em meus olhos permanentes de espanto. Sem Deus estava livre de todas as subjugações. Comecei a fazer anotações das fraquezas e pude observar com clareza o quanto às mulheres são oprimidas pela própria capacidade de ilusão espiritual. A percepção ilusória está no leite materno que acaba por secar cismando em se reproduzir através do desejo da perpetuidade. O fato de parir, ovular, guardar os homens protege-os de sua fraqueza; torna a mulher um perfeito objeto de domínio religioso. E por incrível que pareça somos nós, mulheres, quem perpetuamos em nossas crianças as visões fantásticas da idolatria. A mesma idolatria que se transformará em objeto de guerra no estandarte do horror. Fizemos isto sem nenhuma preocupação para com os destinos organizados destas escolhas.
Então compreendi o quanto o apoio da mulher oprimida garante aos homens o tempo necessário para organização do poder. Para desfrutar desse domínio representativo através da silenciosa luta moral que termina em perversa batalha. Toda verdade coletiva é engano que acaba esmagando o indivíduo na história. Como afirmar “eu sei” quando “ninguém sabe?” A humildade é privilégio dos ateus porque é impossível mantê-la em condições de crença superior.
A inexistência de Deus agora é um alívio. Posso compreender melhor as sangrentas notícias ligadas ao sectarismo destas escolhas que sempre pretendem diminuir os espaços de convivência com outras divindades. Jamais haverá conciliação religiosa. A conciliação religiosa é lenda impossível. Quem cria divindades, cria conflitos. Mas como compreender esse recurso para se salvar do pranto, da dor? Tudo não passa de insuficiência poética sobre o azar da solidão humana. Primado de ocultação de tanta miséria real. Só a razão é luz.
Mas e o mistério? É melhor que fique submerso no silêncio como indica a incerteza imorredoura. Mas e a morte? Os mortos apodrecem certificando a distância necessária indicada pela natureza. Somos apenas o meio de dois mistérios: Desconhecemos o início, desconhecemos o fim. Essa liberdade da consciência sobre o produto fantástico reconhece com clareza o efeito político dessas organizações misteriosas. Viver sem Deus é a única maneira de ser exatamente um homem.
E todas as representações? Vaidade. Medonha vaidade. A verdadeira humildade é a ausência de todas elas. O que se faz para mostrar aos outros em conjunto nas religiões não passa de imensa vaidade humana. É apenas modo de dominar os bravos, organizá-los brutalmente através da consciência abstrata que eles tanto temem. É estágio mental e uma ordem para o domínio.
Livre de cultos e credos... Assim conhecemos o alívio digno da plenitude porque passamos a coexistir com a poesia. Pude ver jorrar de minha barriga o sangue da vida porque assim nos tornamos mortais e reais diante da humanidade. Eis o filho banhado em sangue que me sucederá... Ele será alguém até reconhecer o afeto finito das relações humanas... Poderá escolher diante da cultura idealizada para construção de mitos. Agora compreendo que minha felicidade não é ilusão.
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