Anotado em uma apostila da oficina de "Criação Literária"
Foi numa noite que a memória não consegue nomear. Pode ter sido na virada de sexta-feira para sábado ou de terça para quarta-feira. Mas isso não importa. O que se reteve foi o grito que varou a madrugada, acordando toda a vizinhança. Ou pelo menos...
Corre o ano de 1985. Na sala, a televisão ligada transmite o jornal das 20h. O destaque é um comício da campanha das Diretas Já. A trilha sonora é "Coração de Estudante", de Milton Nascimento. Alheia a tudo isso, uma senhora se senta na cozinha de sua casa e espera ferver a água do angu.
Até há pouco, antes de pegar na janta, esteve traçando palavras num caderno que, anos mais tarde, será manuseado por seu neto e este, entre maravilhado e nostálgico, tentará compreender os motivos por que sua avó escreveu certas passagens de sua vida e não outras e como pode reunir todos os fragmentos de vida que estão ali e deles fazer algo que, se não será artístico, ao menos iluminará a trajetória de sua família.
Seu maior desafio: o material de que dispõe é muito diáfano e muito disperso. A avó trata de fatos distantes no tempo e aos quais o neto esteve ausente porque nem sequer habitava este mundo. Como conhecerá ele o resto? Que será o resto? O resto não existiu. Essa é a premissa que rege seu trabalho. E uma vez que o resto não existiu, ele pode ser criado ou imaginado.