O Ovo nasce no escuro

Como estava caindo uma tempestade e quase toda a cidade estava sem luz, eu me vi ilhado no meio da escuridão. Óbvio que o verbo “ver” aqui possui um significado mais raro, pois eu não enxergava nada. Assentado num monte de quinquilharia na cozinha, perdia os limites do corpo: meu cérebro também era invadido pelo blackout e os pensamentos pareciam flutuar aleatoriamente naquela densa massa negra onde até respirar se tornava difícil. Sozinho, sem ninguém para conversar, era como se eu, aos poucos, me dissipasse naquele infinito breu. Levantei-me e saí tateando os móveis e as bugigangas espalhadas, arrastando os pés, adivinhando o mundo ao meu redor por meio das formas, temperaturas e texturas. Enfim, alcancei o armário, as velas e a caixa de fósforos. Acendi uma e segui em direção à sala, limitando meus passos à circunferência do clarão. Com a cera já queimando meus dedos, encontrei, na estante antiga de sucupira, o móvel mais organizado da casa, o castiçal de bronze da época do império, herança da minha bisavó. Pela força do hábito, segui a trilha entre os sacos, caixas e porta-trecos lotados e me sentei à escrivaninha; minha mente tentando se adaptar a um universo restrito ao diâmetro  que me circundava.  Quando pouco entra pelos nossos olhos, somos obrigados a encarar a substância sutil das coisas que formam o pensamento. E eu, que sempre considerei o inconsciente uma bobagem freudiana e por mais que me prescrevessem, sempre recusava ao tratamento psicoterapêutico, estava ali incomodado com algo indefinível que surgia dentro de mim, como quando jogamos uma pedra num lago límpido e o fundo de lodo e algas, aparentemente organizado e constante, vira um mundo imprevisível de barro e turvamento, caldo orgânico primitivo de onde algo pode sair: peixes cascudos, caramujos, serpentes, crocodilos, sapos ou seres ardilosos e miméticos, camuflados em raízes. Lembrei-me de uma viagem quando fui conhecer o manguezal, aquela vegetação labiríntica incrustada na lama. O guia enfiando o braço em buracos escuros à procura de guaiamus, verdadeiros cofres vivos, segredos em carapaças protegidos por pinças afiadas... Eu me sentia assim, na possibilidade de invasão de guaiamus etéreos que ameaçassem surgir sabe-se lá de que buracos do inconsciente. À minha frente, havia um bloco, em que eu começara a fazer umas contas pela manhã. Talvez, na tentativa de controlar esse movimento psíquico cuja forma eu desconhecia, e por isso me sentia amedrontado, comecei a escrever aleatoriamente algumas palavras na primeira folha branca. Escrever é uma forma de dominar as emoções imprecisas, concretizá-las e assim mantê-las no cárcere das palavras, como se estivéssemos desenhando espíritos. Então deitei o punho e deixei que a primeira frase fluísse pelos meus tendões e falanges, ganhando formas por meio da caneta esferográfica, quase uma psicografia, escrevi: “O ovo nasce no escuro...” Mal terminei de concluir o “o”, a luz voltou, uma claridade repentina invadia o mundo como um tsunami, acompanhada  de uma sinfonia de sons variados com os quais estamos acostumados e só nos damos conta da existência deles quando se calam com a ausência de energia. A escuridão e o silêncio abrigam uma multidão de seres. A luz e o som voltaram quase juntos. Este último mais estridente, com o coro de vizinhos saudando a volta da percepção das dimensões por meio de gritos e até aplausos. Importante ressaltar a sorte que tive em encontrar os móveis e os objetos, pois sofro do que os psiquiatras e psicólogos chamam de transtorno obsessivo compulsivo ou TOC, no meu caso, acumulador. O vazio das minhas lixeiras é explicado pelo acúmulo de coisas sobre quase toda a superfície da minha casa: descartar algo é tão sofrível para mim, que até no jogo de buraco, nenhum amigo ou parente quer ser meu parceiro. Quando me aproximo de uma lixeira com uma coisa na mão, encontro mil e um motivos para mantê-la comigo. Chego a guardar jornais e revistas puídos pelo tempo com a justificativa de que, quem sabe no futuro, eu ou alguém poderia utilizá-los para decifrar algum crime.  Como morava sozinho, minha compulsão era um segredo que guardava comigo, pois não permitia que ninguém entrasse em minha casa. Estranhamente, só depois dessas trevas vi o cúmulo da situação a que cheguei. A luz trouxera para dentro do meu lar a consciência das coisas que ajuntava desnecessariamente, sinais de destroços do maremoto. Andando pelos cômodos, chutando vasilhas, pegando vestígios de memórias representadas por coisas das quais eu nem me lembrava. Eu era um geólogo que estudava minhas camadas terrestres e percebia evidências de um dilúvio antigo que me causou muitos danos... Paleontólogo inexperiente, cavava sutil, pincelando com meus dedos, à procura do fóssil, do elo perdido entre mim e um eu que era uma quase evolução. Um processo estacionado antes de, um verbo transitivo sem objeto... Até que O encontrei. Entre umas folhas amareladas de uma revista Manchete cuja notícia principal abordava a inauguração de Brasília, um saco plástico cheio de imãs de geladeira (diversas propagandas de entrega de gás, pizzas e sanduíches) e um tabuleiro de xadrez apenas com o rei preto, encontrei: O Dinossauro de  Lego, que havia montado quando tinha sete anos. O acúmulo de poeira e talvez o abafamento sob aquele entulho domiciliar colaram as peças de forma que o réptil do Jurássico parecia todo uma só coisa. Acariciei a fera, limpando o pó com meus dedos já envelhecidos, os tendões protuberantes. A recordação de meu pai deixando a casa e minha mãe suplicando a sua permanência... eu fingindo que não me incomodava e concentrando minha atenção nas pequenas articulações de plástico, dando forma ao pequeno grande animal... a sobrevivência às custas de ovos e arroz... o machucado simulado no pé esquerdo com chinelo para poupar sapato e revezar com meu irmão... a porta se fechou e nunca mais vi meu genitor, palavra que usaria para me referir a ele durante o resto da minha vida.  Despertei-me do passado, assentado sobre o monturo, segurando minha criatura na qual escondi todo choro e angústia. As lágrimas vieram abruptamente, como uma cachoeira seca que de repente aparece e aumenta de volume por causa de um temporal. Minha dor aflorava sem nome e eu tentava captá-lo soletrando entre soluços uma palavra Co.. co.. var..de, covarde, covarde... Gritava procurando alcançar meu, meu, meu... Não, não mencionaria o vocábulo abençoado... Pai. Pai Covarde. A força que desprendi viera de uma forma tão intensa e imperceptível que, quando me dei por mim, as peças do brinquedo estavam todas desmembradas, algumas em minha mão, outras espalhadas em minha frente. Exalei um vendaval que expulsou todo o lixo da minha casa.

Com o Lego fiz um pássaro que voa feliz dependurado sobre a rede na varanda.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 24/10/2012
Reeditado em 30/12/2012
Código do texto: T3950698
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