Memórias Pústulas (genérico)

Lucio Valentim

Lucio Valentim é graduado em Letras (UFF), especialista em Literatura Brasileira (UERJ), mestre e doutor em Letras Vernáculas (UFRJ). Professor de línguas (Latina e Portuguesa) e literaturas (Brasileira e Portuguesa), é também poeta e contista, e tem no prelo o livro de contos “Memórias Pústulas”.

“A Gabriel Garcia Márquez, o Gabo, em memória de sus putas tristes...”

“Ao verme que primeiro roeu as carnes de Machado de Assis, estas memórias.”

INDICE

1. Conceição, Conceição

2. Fantasmas

3. Terça tardia

4. Panacéia 1

5. Ragazzo innamorato

6. Cenas

7. Nunca mais

8. Coteje com o original

09. ¡Loco!

10. Os ratos não tomam prozac

11. Sonhei que era o homem que jogava no jogo do bicho

CONCEIÇÃO, CONCEIÇÃO!

"Dico, che quando l'anima mal nata..."

(Dante, Inferno, Canto V)

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora - bem, não era propriamente o que se poderia chamar de senhora, tampouco uma donzela -, e isto não faz tantos anos assim. Entrava eu na casa dos "enta" (conheces, caro leitor, a contagem dos "enta", aquela que nos leva em seqüência até o fim do túnel?); ela, numa idade indefinida entre os quinze e os vinte. Vinte? Pois bem. Havendo combinado com uns amigos irmos à missa do galo (brincadeirinha: a verdade, hipócrita leitor, meu semelhante, é que íamos mesmo é para um embalo-de-sábado-à-.noite), foi aí que a conheci. Assim.

A casa onde ficaríamos hospedados (quanto eufemismo!), digo, a casa onde todos íamos cair naquela madrugada, quando voltássemos da farra, não era um cortiço, não era sequer um puteiro, tampouco chegava a ser de fato o que se identificaria como lar. Conceição, a dona da casa, (olha, este foi o nome que ela me deu para a ocasião, viu?, pois bem que poderia também chamar-se Laura, Eneida, Inês ou Beatriz) não era uma prostituta, nunca tinha ouvido a canção do Cauby, mas trazia no rosto traços de uma ingenuidade amarga; muita carência, talvez, sabe?, mas dissimulava - assim como já o fizera Capitolina, lembram? Conceição possuía um temperamento moderado, sem extremos: nem grandes lágrimas, nem grandes risos. Na verdade ela era o que costumamos definir neste final de século em que vos falo como garota de programa ou, no inglês de Copa, scort girl. Era para lá que iríamos, imaginando que Conceição pudesse saber de sexo como poucas - e isto para ela talvez equivalesse a amar. Eu me lembro muito bem.

Naquele dia era a primeira vez que ligávamos para aquelas mulheres. Queríamos a noite; alguma diversão, nada de stress. Quando chegamos, Conceição atendeu-nos com um roupão de seda, desses que vinham do Paraguai, entende?, mas chic; pela transparência, via-se: não veio sobre chinelinhas, mas também não trajava calcinhas - maravilha -, pisava era com uma sensual sandália de salto agulha, finíssimo e longo, como um punhal.

Não preciso dizer que ela era boa, muito boa. Perguntou se eu não conhecia sua amiga, apresentando-a, uma moreninha que sentava sapeca no sofá da sala deixando pendentes os seios e fazendo movimentos obscenos com os lábios. Não tardaram a aparecer pequenos e grandes também. A estas alturas todos se davam contam do que viéramos ali fazer - e de que Conceição preferiria a princípio dedicar-se a mim. De fato, cada qual tomou seu rumo e lugar.

Assim que a moça aproximou-se, comecei a dizer-lhe nomes infames, palavrões; ondas de beijos lascivos, beliscões e xingamentos levemente sussurrados ao ouvido - como manda o figurino -, pois afinal tudo era mesmo um grande mis-en-scène: fazia parte, percebe? E a moça não deixava por menos. Lembro: pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa (talvez não fosse mesmo de mármore, mas isso agora também não importava muito), o que vale é que com esse movimento eu, que estava numa privilegiada posição, via-lhe as duas metades em simetria do traseiro, muito claras, e menos magras do que se poderiam supor. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. (Não, leitor obtuso, não houve o prometido, tampouco o esperado, dadas as circunstâncias.) Porque, a certa altura da coisa, a moça desvencilhou-se e, como se tomada por alguma reminiscência, cismou de passar-me algo como um café, dizendo uma série de coisas ininteligíveis, papo de tirar tesão, sabe?, como diz o outro. Confesso: já me acontecera antes - e em episódios até menos rodrigueanos -, pensava. Passava da meia-noite e, agora, para matar a tensão, comecei a dizer o que pensava das festas da cidade e de outras coisas que me vinham à mente, talvez a sugerir com isto que já me fosse embora. Parecendo não entender, a mulher argumentava que todas as festas se pareciam, que não valeria a pena etc, para que eu ficasse, o café era quase fresquinho, havia também uns bolinhos: eu tenho um sobrinho que fez aniversário, sabia? Teve uma festinha etc etc etc. Não entendi.

Já vestida, deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado. Não, não era em um canapé, caro leitor; estávamos mesmo no chão. Lembro que, quando então a moça se debruçava para sentar, voltei-me, e pude ver, a furto, o bico dos seios; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se. As calcinhas, recordo-me, eram pretas, talvez até rendadas. Foi nesse mesmo instante que, a custo, fechei a boca para ouvir o que ela contava, enquanto sorvia sem gosto o tal café.

Saíra da periferia muito cedo; aos 11 já tivera seu primeiro homem; a chamada vida fácil veio na seqüência. Passou a gostar do que fazia, mas quando pensava em vingança, contudo, não era bem isso o que queria, percebe? À certa altura, a moça não tinha mais os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. Disse que foi barra, coisa feita pelo próprio pai - não pasme, leitor! - que a bolinava nas madrugas. A mãe fingia não saber sabendo; via mas calava; então o medo, e não só: o asco, o nojo, o ódio compunham sua macabra sinestesia. Enquanto dizia isso suas mãos tremiam - estranho - como se tivesse arrepios. Ela, que era até uma figura linda, perdia ali quase todo o brilho. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que a perseguia um pesadelo recorrente desde criança: despejava água fervente sobre as têmporas do pai e via-lhe sair dos ouvidos vermes que se multiplicavam aos bandos. Dizendo isto, ria-se como uma bacante, despejando o café, como se regasse uma planta maldita e etérea, sobre uma foto que jazia na pequena estante do quarto. Quem será?

Quando cansou do passado falou do presente. Disse que precisava representar seu papel, que precisava cuidar mais do filho que vivia com a mãe que ia fazer seis anos e que há dois anos não o via etc. Concordei, para dizer alguma cousa, isto é, coisa. Queria acabar logo aquela conversação, afinal, estava ali por propósito muito bem distinto (o cartaz nos classificados prometia - e pagamos um bom preço). Já amanhecia, talvez cinco ou seis da manhã.

Há impressões dessa noite, que me parecem truncadas ou confusas.

Que história louca. Depois de chorar baixinho disse que podia trabalhar de novo, se eu assim o quisesse. É claro que se havia perdido todo o tesão nos confins da manhã. Recusei Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto - inteiramente calados. Numa vitrola distante e imaginária Cauby gritava: Conceição, Conceição! Com um balanço de corpo, Conceição entrou sabe-se lá pra onde, batendo a porta - e eu saí na manhã sem destino.

Mais tarde descobri que Conceição morava no Engenho Novo e que a casa onde ficáramos (o que chamamos aqui de casa, leitor, em verdade não passava de um kitinete) pertencia ao homem que a patrocinava - e que (também descobri) era o mesmo da tal foto, lembram? Nunca mais a encontrei e nem a outras Beatrizes ou Eneidas ou Lauras.

O sol da manhã queimava, e não era o inferno de Dante.

FANTASMAS

“La mer, la mer toujours recommencée”

(Paul Valéry)

Lembro-me de que alguém gritava: salvem o cego! e de que o cego era Borges, confinado a uma cadeira de rodas, dessas tipo high tech, mas que nas horas de naufrágio de quase nada serviam. Como por exemplo agora, nesse instante em que a embarcação adernava junto a um monte de convivas ilustres. De fato: embora não visse a fúria das águas, Borges parecia ser o único ali a exigir o poder da visão, ainda que pela derradeira vez - talvez no ímpeto de assistir ao sinistro episódio de todas aquelas vidas, digo: a própria morte.

Porém, ao grito de salvem o cego, todas as atenções se voltaram para Borges que, de óculos escuros em plena luz da lua de Junho, parecia estar vivendo ali quem sabe apenas mais um de seus labirintos. Então, sentindo a vida se esvair - e o ar -,o cego ia desfalecendo em rodopios, enquanto seus óculos se perdiam no imenso mar-oceano e seus olhos recebiam pela primeira vez a luz. Antes de que sumisse por completo no redemoinho das águas, o que lhe vinham à mente senão antigas histórias: arrependimentos e pequenas frustrações; o não-vivido, o suportado, o feito, o rarefeito e mais um punhado de outras interrogações. Mas não houve salvação: a estas alturas o mar engolira por inteiro o cego, que só reapareceria três luas depois daquela – e em praias longínquas e inimagináveis.

Mas o que vira no fundo do mar o cego? Um castelo que continha uma biblioteca estranha, onde livros dependuravam-se como se vivos; ao invés de capas, efígies; ao invés de culpas, sorrisos – a despeito de seus olhos embotados esboçarem a mais louca alucinação. Um castelo cuja majestade fosse alguém que, à chegada de Borges, fazia-se parecer mais com um personagem de Virgínia Woolf. Talvez até a própria, flutuando ao largo de velhas lombadas, a fazer borbulhos estranhos, num triste esboço de respiração. Borges rapidamente absorvia o ritmo da cena, e então não era difícil vê-lo bailando como uma planta marinha, numa coreografia mesmo abissal, por entre olhares bizarros de edições ilustres que, perfiladas, vinham dar boas vindas ao seu mais recente par.

Lá estavam: o eterno marido, a convidada, o príncipe da Dinamarca. Os noivos, o bobo e o sofista; os moedeiros falsos. Olhavam-se com olhares líquidos e arregalados, como se algo houvesse a dizer – mas nada diziam. Sorriam apenas, como se dopados, neste mesmo instante em que o cego enxergava, perplexo, a entrada dos trabalhadores do mar. Vinham em várias línguas, de todas os cantos, sedentos: o ulisses, os lusíadas, os velhos marinheiros, vistos assim: fadados ao mar.

Claro que este intervalo breve de tempo mais pareceu uma eternidade, e Borges sem saber, entre o pavor e a certeza de que tudo não passaria de um sonho doido – ou a mais intensa viagem – sem saber, digo, naquele momento pareceu entender menos um pouco do mundo. Conforme pensava: a vida podia ser uma infinidade de loucuras: mas isto, aqui?

Lembro ainda de que depois estavam todos numa espécie de salão de cerimônias, onde o cego agora deveria contemplar a seguinte cena: um ritual marinho, cuja expressão mais profunda era o silêncio. Nela, uma a uma as lombadas perfilavam-se defronte a algo que poderia mesmo ser um altar em forma de pira e, resignadamente, lançavam-se ao fogo. Ali, o eterno marido (depois de tudo) vivia ainda seu desconsolo. Lembrava: a morta que o traíra. Mas a morte traíra a morta que traiu só porque - quem sabe - quisera o carpe diem e morrera antes do fim. Sede de viver? Para sempre. A convidada, ruminava mais uma vez seus ais, em dias de glória e sedução: ter provado do anfitrião-marido-da-amiga. Agora, bem feito! todos lá. Da Dinamarca o príncipe, conjecturando enfadonha cantilena, pensava mais longe: ser ou não ser? Sofrer ou insurgir-se contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer. Dormir. Nada mais! Pensamentos reais, posto que, proferidos, curvam-se as lombadas, silenciosamente, num misto de reverência e prostração. Mas foi só o tempo que Borges teve enfim de se recompor, pois logo lá os noivos, frente à frente à tal pira – totalmente pirados –, vivendo uma vez mais seu errare humanum est: para sempre. Em silêncio, como num balé marinho e telepático. Todos ao fogo. Por isto agora o sofista, fabricante de simulacros, regozija-se ao vislumbrar o universo de cópias e imitações, neste estranhíssimo cenário, onde todos os dias repete-se o espetáculo, sem fim.

Por isto – lembro – que o cego parecia refletir acerca deste mundo onde se fabricam aparências, clones e ilusões: ecce mundus! Disse. Daí seu sorriso de lado, posto que era isto mesmo a vida, enfim.

Nesta hora, Borges, em vista do fausto ocorrido, chegava-se ao centro do altar que mais parecia uma pira e, como se desdenhando de tudo, dizia (e o que disse foi apenas o seguinte): onde pode acolher-se o fraco humano, onde terá segura a curta vida, que não se arme e se indigne o céu sereno contra um bicho da terra tão pequeno? Pronto. Foi a gota. Daí pra frente, o cego então deu para misturar propositadamente as coisas. Arrombar com a festa, como se diz. Sabe-se lá porque, no maior descaramento. E mais – emendara, dirigindo-se à coluna dos filósofos, dedo em riste: jamais obrigarás os não-seres a ser, antes afasta teu pensamento deste caminho de investigação! (o que deixara o sofista chapado). E arrematou, voltando-se agora para a majestade que mais parecia Virgínia Woolf, cheio de descomposturas: que fantasmagoria é o espírito, ponto de encontro entre coisas dessemelhantes!

E então todos se voltavam para Borges, em protesto, indignados com tudo aquilo. No entanto o cego, agônico como um fauno afogado, ainda mandou essa: fiat lux!

Foi quando nesse mesmo instante o fundo do mar decompôs-se em ressacas sucessivas, num enorme redemoinho em que todos então, literalmente, soltavam em desespero o verbo – o que compunha uma apnética visão.

As águas, como estranhas páginas, se fechavam.

Só lembro de que, três luas depois, o cego fora visto em praias longínquas e inimagináveis, coberto de algas, as quais manipulava compenetrada e alucinogenamente, como se, por vezes, as pretendesse decifrar.

TERÇA TARDIA

“Para que nada nos separe

que nos una nada.”

(Neruda)

...hoje seria um dia em que fatalmente faríamos amor. Mas não rolou. De repente a tarde ficou cinzenta e uma chuva fininha meio neblinada caiu. Logo veio a noite e então, mais uma vez, algo encruou. E era domingo.

Na segunda, enquanto fazia a barba, notei que havia cabelos brancos. Cabelos brancos. Mas continuei, a averiguar o que poderia haver por detrás de tudo aquilo. Talvez o tempo. Ele o culpado. Foi a resposta adequada para o momento. Mas ponderei, quase de improviso. Seria?, ou apenas mais uma abstração.

Lembro ainda agora da terça tardia em que amamos pela primeira vez. Era verão e a cidade toda fervia. Ela vinha e tudo em volta parecia deserto: ruas carros lojas pessoas; e neste instante de epifania não havia mesmo de fato nem pessoas lojas carros ou ruas: só dava ela.

Digo que não era propriamente uma musa romântica, daquelas cantadas pelo spleen de Paris, e também não se poderia dizer que fosse uma dessas mulheres de ponta, essas totalmente afinadas com o mundo fashion. Mas certamente era uma mulher fin-de-siècle: os cabelos, falsamente em desalinho, deixavam mais enigmático ainda o rosto de falsa-menina-má, que se diz disposta a aproveitar de tudo. Não vou dizer dos seios dos olhos da boca dos braços dos pés nem da bunda. Não vou dizer da fala do cheiro: inenarráveis. Aliás não direi dela nada. Cadela. Danada. Cadê?

Primeiro foi o sorvete depois do cinema, a longa conversa e o encanto conforme convém a qualquer sedução. Nesse dia ela me disse de desertos desejos, e medos. Embora tudo nela parecesse espontâneo, não era exatamente dessas do tipo prèt-a-porter, ao contrário – ainda que sua história fosse pura ficção.

Na verdade inventava um passado que de algum modo desse sustento para toda a sua piração. Disse que foi de miss a hippie e, mesmo sabendo a princípio o exato significado do termo alienação, optou pelo desbunde: arembepe budismos woodstock e búzios. Foi um pouco no fundo de tudo – diz –, mas voltara.

Depois do sorvete, estávamos na grama e foi quando então pela primeira vez ela pegou-me nas mãos: i wanna hold your hand, dizia brincando. É claro que aproveitei o ensejo para enfeitar-lhe os cabelos com punhados de flores e ervas daninhas. Mão dadas, olhávamos nos olhos, alucinogenamente. Lembro de que agora andávamos no campo, numa cena antiga e banal. Embora não falássemos, posto que o sol estivesse a pino, tudo era sim – embora também o suor exposto no rosto pudesse supor o contrário.

Mais tarde o dorso o físico a pele pela primeira vez.

Pitonisa, sentenciou orgasmos múltiplos, só prá variar. Era assim, dizia: sexo tântrico aprendido em intermináveis retiros espirituais, em Paris.

Não digo do ato: dez!

Vagaba. Vadia. Que dizia que sexo é força louca, centrípeta e centrífuga, que une para depois separar, cadê?

Depois, não se sabe como, passávamos de Sócrates a Platão, sei lá, talvez um Nietzsche. Ela insistia em admitir que jamais decifrara muito bem o tal mito das cavernas; talvez mesmo tenha passado batida por um punhado de mitos intermináveis: a psicanálise a metafísica a ética a política a religião a patafísica. Quem sabe Sócrates?, repetia. Tudo uma grande interrogação. O mundo, uma só pergunta, dizia aos berros, e ria de um sorriso abismal e materno.

Malvada, fez que já partia quando atirei-me a seus pés (claro, tipo brincadeirinha, fazendo cena) dizendo eu te amo eu te amo etc., justo no momento em que, concentrada, conjecturava acerca do amor em Platão. Mil Perdões.

Depois, já conhecedora de seu todo poder e de minha total impotência no ramo, dizia que ficava, só um pouquinho. Demorou.

Mais tarde me abraçava como se a um filho, sussurrando sempre algo em meus ouvidos: só o amor volta para perdoar, dizia. É claro que, na seqüência, o enlace o cheiro o corpo. Como na primeira vez.

Na quarta, não recordo mais o que fizera, tampouco qual fora a desculpa. Só lembro de que na quinta disse que viera para ficar. Ficou. O tempo: a grande abstração...

Seria hoje um dia em que fatalmente faríamos amor. Mas de repente a tarde ficou cinzenta. Algo encruou.

E era Domingo.

PANACÉIA 1

Eu sobrevoava com o meu helicóptero os caminhões despejando areia no limite do imenso mar de gelatina verde. Sobrevoei a praia que estava sendo construída e o helicóptero passou sobre o caminhão de gasolina onde um negro experimentava o lança-chamas.

(PANAMÉRICA, Jose Agripino de Paula).

então eu estava lá e vi a luana piovanni se masturbando, e não era tarde, nem claro feito o dia -, mas tudo, porém, ia mais ou menos conforme o combinado. ela deveria deitar-se numa banheira de espumas e, ao primeiro sinal do contra-regras, sentar-se na borda com as pernas levemente escancaradas – como naquela cena da galisteu barbeando-se em playboy – e, vagarosamente, render homenagens múltiplas ao deus onan. ou não. hi, hi. quase tudo saía perfeito, porque a certo momento marcos palmeira, que já a tinha comido na vida real – e que, aqui, fazia o papel de quem nesse mesmo instante a iria ficticiamente de novo comer – adentraria o cenário, antes da hora, pois a moça ainda não havia de fato iniciado o take mais cobiçado pelo intrépido diretor, bem como por todos ali no set: um - digamos – preciosismo autoral: antes mesmo de apresentar aqueles pequenos e grandes lábios, a gostosa deveria vir vagarosamente nua, virar-se de costas – maravilhosamente nuas e em close – e... huum... abaixando-se como quem faz que vai pegar algo de repente que caíra no chão cenográfico, ofertar à plebe rude a esplendorosa bunda. talvez por isto palmeira tivesse se excitado mesmo antes do tempo, porque o homem entrara já no set totalmente em riste, decerto devido à intimidade off-set com a moça – e não se fez de rogado. perfeitos. sem cortes. nos intervalos, lembravam velhos dias em caras, na ilha. meninos vadios. tensões flutuantes. jetset meio jeca. mas todos lá. lili, huck, liege, safir. boni, gugu, vavá, etceterrá. gente da pesada. sertanejos de tudo, com circulação livre. por isso mesmo é que a certa hora zezé de viola já em punho começaria a entoar mais uma. e nessa loucura de dizer que não te quero servia então de fundo para a língua de palmeira em piovanni nos jardins palaciais de caras. e logo já o jet estaria a fazer corinho, sobretudo porque rondavam a nobre carniça paparazzis globais. mais um clip. é fantástico. na seqüência, aquela zinha do bigbrother, fazendo – claro – uma ponta, apareceria de coxas e seios, numa espécie de doméstica-fetiche, para logo dispersar o casal servindo algo como suco ou café – exatamente quando o tal diretor gritasse: corta. e todos então caíssem do transe astral voltando a si. a loura má – que estivera ali de intrusa apenas para gravar punhados de gafes de cenas para seu próprio brilho chinfrim, de súbito, alucina aos berros: onde foi parar meu baton e meu blush e meu pó? onde? onde? ela desatinou. desandou a dar frenéticos pulinhos. eu vi, meninos. que logo depois entrara o pai, na figura de um tarcísio sóbrio, mas decadente. e que deveria com seus cabelos e bigodes brancos convencer a moça de que transar assim não podia cair bem mesmo aos olhos da vizinhança. na banheira. à luz do dia. não que a vizinhança soubesse da banheira, mas os gritos. os gritos de lascívia. (porque tudo deveria se dar – não com sussurros –, mas aos gritos. porque valia o script. o escrito). em verdade vos digo que na volúpia da cena haveria momentos em que marquinhos pareceria roberto bonfim na dama do lotação, com uma sônia braga puro suco nas mãos na grade no bus, fazendo de tudo. todo dia toda hora toda madrugada: cheio de inferno e céu. e ela gemendo entre lábios carnudos sorriria, implorando já em desespero o delirante orgasmo que perpassasse a mente do neville de então. roberto virou velha celebridade. sônia foi para os estados unidos dar para redfords westwoods, de niros que nada tinham a ver com a estória. marquinhos táquitá. traçando tudo. neste instante sua tarefa árdua, posto que lá fora batesse um sol lancinante, era aquela. conforme dizia: - feijão com arroz . não seria mesmo a primeira vez do cara com a loura. claro que depois dele teve o fulano o cicrano o beltrano o fulano – e isto de alguma forma não lhe batia bem na mente agora. lembrava, sim, daquela entrevista do py no gugu. putz. mistura de realidade e ficção? esquizofrenia? trauma de macho? porque afinal ele também andara saracoteando por aí em capas e revistas, louras e morenas. fora visto em bandos em bares do leblon e do cosme velho. ia agora encanar? vixe, mas que nada. o homem era profissa. casca-grossa mesmo. canastrão – é vero -, embora nem estivera metido em coisas de terra nostra (aliás, cá pra nós, sem trocadilho: se diz por aí que o que menos se deu ali foi comilança. porque parece mesmo que um dos dois não é lá muito chegado, sssss). mas consta que marquinhos fizera o tal 21 inúmeras vezes. hi, hi.... luana alucinada queria era mais. tô nem aí. todo mundo é de ninguém. entre dentes vinha também nessas horas à mente a capa em que a beldade se declarava dadeira. ou a outra onde falara de sua doudeira, quero dizer doideira. no vão de gabeira e giba e zé quando perguntado sobre o que levaria para uma ilha deserta ou o que não esquecia de trazer na bolsa - ou alforje - quando saísse de casa: um tapinha não dói. e era de fato do que ela mais gostava. claro que só marquinhos tinha esse segredo de alcova. na bunda na bunda na bunda, como diria manuel bandeira trêbado em antigos carnavais: na boca na boca na boca. sessões sadomasô na mansão. diz que ela gostava sendo amarrada. gozava alucinogenamente. tipo assim, dizia: pra relaxar. piranha. pensava. por isso talvez é que palmeira entrara duro. de primeira. era a cena: olhos rijos na mina, cuja reação mais radical fora abrir-se em flor. rosada. pensava marquinhos. quem faz 21 vinte e dois faz. fartaram-se. vou te contar.

RAGAZZO INNAMORATO

"Amor mi mosse che mi fa parlare."

(Dante, Inferno, canto II)

Volto um pouco no tempo e recordo. Foi em meados de 1868, quando conheci o rapaz, jovem, bonito, atencioso. era ainda estudante de direito, na província. Claro que não imaginava apaixonar-me tão rapidamente.

Lembro que, àquela tarde, no café, trocamos graves olhares, e seu olhar era de uma magia incompreensível. À saída, reparei que caminhava ao meu lado e dirigia-me algumas palavras de cumplicidade. Tanto gostei que, ali, não poderia imaginar o que mais tarde seria de tudo - e de mim.

Sim. Logo chegamos ao amor. Como, não sei. Encontrávamo-nos com freqüência em lugares discretos e, numa daquelas tardes e noites de juras secretas de amor foi que - entre um e outro licor -, descobri ser Vilela noivo e que logo iria se casar. Naquele instante senti tudo muito próximo do fim. Eu que sempre me soubera isenta de enganos, que esperei um tempo enorme para entregar o melhor de mim a um só homem, àquele a quem viesse a amar de verdade. Eu, a tola!, transformada em vértice de um triângulo que mais tarde - veríamos - tornar-se-ia fatal.

Contudo, havia algo naquele homem que não me soava a enganos. Vilela realmente me amava. Sentia sua ternura, seu carinho. Havia respeito, sobretudo, aos meus sentimentos. A impressão era de que suas manifestações, a seu modo, eram sinceras. Mais tarde tudo isto viria a se confirmar. E de trágica maneira.

A moça com a qual Vilela deveria se casar era, sobremaneira, disputada pelos rapazes da província. Já a conhecia de nome quando, certa vez, após uma noite de infindável prazer, enquanto Vilela dormia, tirei-lhe de um dos bolsos da casaca o retrato: era realmente graciosa e viva, olhos cálidos, boca firme e interrogativa. Eu me questionava: por que um homem é capaz de abdicar ao amor sincero por uma questão de dotes?. Sim, pois todos sabíamos ser Rita - este é o nome da moça - herdeira de uma das mais tradicionais famílias da província. Sendo Vilela, a estas alturas, um magistrado em ascensão, nada mais justo no jogo dos interesses. Foram dias muito infelizes aqueles.

Vieram as núpcias num dia ensolarado de janeiro de 1869. Mês seguinte estaríamos os três, eu, Vilela e Rita instalados na corte: eu, num pequeno sobrado na rua da Guarda velha; o casal, numa casa arranjada por um velho amigo, lá pros lados de Botafogo.

Nesta época Vilela havia abandonado a magistratura para se dedicar à advocacia, na corte e, evidentemente, já estávamos combinados: continuaríamos a nos encontrar às escuras. Rita - dizia Vilela -, por tão boa, crédula e recatada que era, jamais de nada viria a desconfiar.

Mas, por esta época, algo já havia mudado em Vilela. Quando falava da mulher, umas rugazinhas lhe apareciam em redor dos olhos, ligeiramente apertados: sua face se transtornava e, assim, assumia uma fisionomia estranha, desconhecida. Alguma coisa sinistra povoava seu pensamento. Com o passar do tempo foram-se confirmando minhas suspeitas.

Entrávamos na primavera de 1869. Foi mais ou menos por aí que Vilela me descrevera o plano.

Tudo teve início numa tarde de setembro, quando o amigo fora visitar o casal. (Desculpe, nobre leitor, se até então não houvera dito que Camilo era o nome do velho e estimado amigo de Vileka.) Rita achava-se sozinha; o marido fora resolver problemas de trabalho. Julgo que Camilo certamente reparara a mulher, porém, faltava-lhe experiência e intuição, ademais a confiança de Vilela no amigo era empecilho às fantasias do rapaz.

Foi por aquela época também, lembro, que a mãe de Camilo havia morrido. Vilela logo dera provas inefáveis de sua amizade; Rita, que sem perceber colaborava, tratou-lhe o coração. E as visitas na casa de Vilela tornavam-se cada vez mais constantes, Vilela sempre ausente - a trabalho.

Com a primeira parte praticamente iniciada, deu-se continuidade ao plano, do qual agora faziam parte as conversações eventuais de Laura - comprovinciana de Rita, residente na rua dos Borbonos - com o jovem Camilo. A intenção era de povoar a mente do rapaz de desejo e medo - com maior ênfase no primeiro que no segundo componente -, insinuando um interesse da mulher de Vilela por ele, Camilo.

Quando em casa de Rita, Laura também despertava a jovem esposa para as reais intenções do rapaz: "ora, afinal não há amor verdadeiro mesmo entre você e seu marido!, ele não é homem para você! - dizia à mulher. Tanto foi feito que Camilo, um rapaz que constava apenas vinte e seis anos, ingênuo na vida moral e prática, deu por verdadeiramente se apaixonar.

Cada vez chegavam mais perto, Rita e Camilo. A paixão tomava, aos poucos, conta dos dois corações - sobretudo com a freqüência com que Vilela os deixava a sós...

Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Estava consumado o adultério!

Dava-se, então, início à terceira etapa da trama. Laura fez-se amiga e confidente do jovem casal adúltero e, sua casa, oferecida em consentimento, transformada em refinado ninho de amor.

Àquela altura eu já me via envolvida demais com a história. Nào haveria maneira de recuar. Vilela cada vez mais obcecado, aflito - rugazinha ao derredor dos olhos ávido para que se consumasse de vez aquele macabro plano. Era tarde demais para voltar atrás.

Laura - que se encarregara das cartas anônimas a camilo, lembram? - foi quem recomendara à Rita a "cartomante". (Abro aqui um parêntese para lembrar que a jovem Laura trabalhara muito bem, afinal - envergonho-me -, fora bem paga para fazê-lo). E no dia em que Rita resolvera ir pela primeira vez ao sobrado da rua da Guarda Velha, lá estava eu, tensa, mas perfeita no papel: -"a senhora gosta de uma pessoa...", disse-lhe em tom solene.

Daí em diante já não poderia envergonhar-me de nada mais do que fizesse ou dissesse. Havia-me contagiado a sandice de Vilela. Não se imagina até que ponto se pode chegar quando se perde o azimute dos escrúpulos.

Não há, porém, arrependimentos. Quase trinta anos passados já não me dou mais ao trabalho de tentar entender o que se passara pela cabeça de Vilela. Aquilo tudo - o amigo, a mulher - para depois matar-se...

Afinal, há tanta cousa, digo, coisa entre o céu e a terra que... procuro esquecer, como se nada houvesse existido?

Mas há - confesso - apenas uma ponta de orgulho do dia derradeiro e que definiria o desfecho da trama (se é que podemos nos ufanar de trabalho sujo, ainda que bem feito): aquele quando, inesperadamente, o rapaz viera ter comigo à casa da rua da Guarda Velha. E, enquanto eu recolhia as cartas, após a "sessão", Camilo dissera-me, confortado:

"- A senhora me restituiu a paz de espírito..."- e eu, levantando-me rindo, quase que possuída por estranho delírio, toquei-lhe a testa proferindo a frase lapidar:

"- Vá, vá, ragazzo innamorato.".

CENAS

“quero beber, cantar asneiras

no esto brutal das bebedeiras

que tudo transforma e torna

em caco...”

(Manoel Bandeira)

Na cena um o homem aparece sob a nuvem de fumaça que exala de seu cigarro barato e pela natureza das mãos via-se: era possivelmente um desses operários ou semi-operários – ou estudantes – talvez com o secundário completo, quem sabe, que nas noites de sábado saem de suas casas com a pura intenção de tomar todas, na própria expressão deles, a verem se de alguma sorte conseguem algumas mulheres especialmente baratas, para que num quarto vulgar, onde jazessem um jarro de flores, uma mesa decrépita com duas cadeiras idem, um espelho sem nenhuma luz e uma pequena cama, naturalmente em desalinho, de onde pendessem, como se de amores de outrora, lençóis, para que ali – como dizia – ali fizessem o amor.

Estranhamente este tipo de homem nunca parece ter pressa, porque suspeita saber que a noite é uma criança distraída, como num dia antigo cantou rita lee. Parece tenso porque pelo pouco de tempo em que ali estava fumava com estranha intensidade. Contudo, e em contrapartida, sorvia com gratidão a cerveja gelada que no local costumavam servir.

Poder-se-ia também por hipótese deduzir ser este um daqueles que eventualmente trocassem a obsessiva caça às mulheres nessas noites de sábado por alguma sinuca, qualquer um bar.

Resguardadas as proporções – e com licença pela insistência – também poder-se-ia compará-lo àquele tipo urbano que às vezes, pegando o metrô pelos lados de botafogo, viajasse soturno até a central do brasil para que ali, tomando rumos quase sempre avulsos e inesperados, escolhesse, via parador, do maracanã para lá o abismo disperso onde exercitasse possíveis nostalgias.

Ela estava ali parada – e era tarde. 3, 4 da manhã. Havia um blues ou jazz, quem sabe, como fundo para o cenário complexo onde se podia ver uma xícara sempre fumegante de chá, uma garrafa de gin, cigarros, livros e outros pequenos vícios que compõem a roda-viva-diária, caoticamente dispostos pelo chão, entre a mesa e o restante da pequenina sala.

Ela estava ali e não parecia haver nada de especial naquilo, exceto o fato de o som das teclas, as quais tangia com dedicada ansiedade, parecerem acompanhar note for note o tal jazz – ou seria blues. Pela natureza das mãos via-se: tratar-se-ia provavelmente de mulher de meia idade, mas não dessas que usam batom e unha escarlate, e que nessas noites de sábado recebem homens de cujas mãos pendessem flores – ou algum trocado – sabe-se lá claramente, para que num quarto vulgar, entre lençóis fizessem etc etc etc.

Por outro lado, quem sabe perfeitamente uma mulher de qualquer idade, ou fosse mesmo uma dessas obcecadas que não só nessas noites de sábado bebem enquanto escrevem, muito embora jamais parecesse haver nada de especial nisso. O fato é que esse tipo (pelo menos é o que se vê), pode assumir esporadicamente determinados perfis, como agora esse: o de alguém que se aproximasse daqueles personagens femininos de kundera ou clarice, flagrantemente em risíveis amores. Talvez por isto estivesse ali, risivelmente chapada, e anotando tudo – filigranas de cenas –, posto que àquelas alturas possuísse a clara visão do terceiro gin. Duplo.

Decerto não seria esta a primeira vez que ambos estivessem ali, enfim, e isto agora a perturbava, sobretudo porque ele sempre lhe aparecera, sem maiores explicações, disponível para ser como um daqueles que nessas noites de sábado nada mais pensam que: a) em uma boa sessão pornô-privê, ainda que sozinho; b) um porre; c) uma trepada – ou talvez falasse em outros termos, porque poderia ser, porque não?, este um do tipo daqueles que ainda fizesse o tal amor.

Pelo que se via havia ainda novidades na cena, algo de inédito, mesmo porque isto a excitava, ela que em dias idos já demonstrara ter sido um pouco bem mais segura de si. Talvez por isso tudo parecesse blues naquela madrugada cinzenta, por entre os telhados do bairro periférico, além da copa de cada árvore que rodeava a praça imensa, por cima do sino da torre da pequenina igreja, um pouco abaixo do céu.

Ele, que começara bem secundariozinho, veio ao longo do tempo ganhando corpo na trama – alguém que o visse assim agora nítido no espaço holográfico em que se tornava o cenário trazido pela madrugada diria. Talvez por aí se explicasse porque só agora ali, fumando seu baixo teor e viajando na antemanhã, a moça não temesse mais o encontro.

Cena dois. O cenário seria o mesmo, com raríssimas exceções, apenas a mulher, sem dúvida, já houvesse consumido meio litro a mais de gin ou uísque, eventualmente vinho – conclusão apriorística mas que, logo na seqüência, o papel quase em branco nos faria confirmar.

Sabe-se, por isto, que ela sempre o via sem ser vista, aliás só ela via – o que talvez não fosse a mesma coisa, apesar de que, com freqüência, estivessem sempre no mesmo ambiente onde a cama ou mesa decrépita em desalinho ou inadvertidamente o tal cenário complexo para sempre fumegante em que se podiam ver cigarros e livros etc.

Embora ao homem lhe parecesse normal estar ali sendo o que fosse, isto é: qualquer um daqueles tipos pelos quais viajasse a imaginação da mulher – sobretudo em se tratando dessa uma daquelas noites de sábado em que ela invariavelmente escrevia a uma dose acima – embora ao homem parecesse normal, a moça pressentia algo de mistério no ar que restava ao recinto.

Estavam ali, ainda que não fosse a primeira vez que isso acontecesse. E pela nuvem de fumaça sob a qual posteriormente ele sempre viria, ela não podia distinguir porque sempre seria assim.

O fato é que, talvez, quem sabe mesmo a moça não desejasse fosse repetidamente assim?, embora suas intenções por vezes nunca parecessem com algo como vez ou outra resvalar por mesas decrépitas, enfim, e sem nenhuma luz.

Talvez agora o figurante outrora semi-operário secundariozinho assumisse seu espaço no set. Fato é também que quase sempre era noite. E assim foi.

Estavam ali. E não estivessem, certamente não seria noite e muito menos sábado e ela não escrevesse e não existisse nada de mais nisso, mesmo ainda se ela, de agora em diante quase sempre soasse como uma dessas que em certos dias, exceto aos sábados, etc etc etc.

NUNCA MAIS

Then the bird said, nevermore.

(E.A. Poe – The Raven)

Naquela noite seria mesmo jogo comprar umas cervejas e ir para casa, não por nada, mas: 1o porque não havia mais lua, o tempo estava uma merda e não havia também muito saco; 2o que os amigos tornavam-se cada vez mais chatos e tediosos – uns porque absorviam demasiadamente a neurose, outros porque, não se conformando com ela, piravam, desnecessariamente; 3o: era tarde. E além do mais, àquelas alturas, tudo que alguém naquelas condições tivesse a fazer já haveria de ter sido feito, isto é: tomar umas, comer outras, praticar um ou outro delito, divertir-se enfim com o que restasse dos fragmentos da festa. Grande cidade. É fato que saía daquela noite sem ter comido ninguém, embora tenha se embriagado a cântaros e, como nunca, exagerado no fumo. É bem verdade, também, que nada disso teria importância não fosse o fato de, às vezes, como naquela noite, as coisas convergirem para o ponto ao que pareciam agora se encaminhar. Decerto, amanheceria como um pinto no lixo. E quando isto era assustadoramente notado, fazia como que não percebesse, numa tentativa vã de enganar a si mesmo, como se àquela altura dos acontecimentos isto fosse ainda possível. Jogo mesmo seria comprar umas cevejas e ir para casa. Depois de tudo, que mais restaria? Olhos embotados, abrir a porta, fechar, cuidar para não esquecer chaves de fora. Deitar. Rolava sempre reprise na tv. Cigarros, cinzeiros. Acordar, só quando o chiado estranho tirasse do ar. Deprê? Não agora. Viajar por remotos caminhos.

Onde as noites de outrora em que tudo era imenso: as pessoas, as coisas, as noites, o mundo e se era feliz para sempre? (parecia invocar nesse instante a infância e seus esplendores). Ali. Onde a dor era algo que dá e passa: cataporas que saram, será? Onde eros – que impulsiona à vida – vivia a todo vapor, e onde o outro (pai, mãe, tios, malucos, pamonhas e similares) serviam quase sempre como modelo - até que nos provassem o contrário. Provaram? Era quando quase tudo tinha do gosto o bom. Qual a saída agora que mais parecemos bichos? Mais uma dose? Claro que a noite ainda é uma criança. Lembrava. De fato: bebera bem mais que o necessário. Curioso agora, por exemplo, pensar que no bar (do bar era o que no momento lembrava), no bar, quem sabe aquele homem-da-lei que ali adentrara seguro em suas vestes e armas, quem sabe talvez apenas mascarasse um medo, embora jamais o expressasse: virulência. Violência como reação ao medo: de ser surpreendido, não sacar primeiro. Suspeitar. De não seguir Hollywood, de não ser Clint Eastwood, James Bond ou outro agente imaginário qualquer: o homem da lei. Sua viagem. A lei? Loucura. Bom mesmo era comprar umas cevejas e ir para casa. (Começava a imaginar besteiras). Deitar. Dormir. O tempo, esse mesmo não voltava atrás. Volta? Era quase sempre assim quando isto ocorria. Lembranças! Sabe-se lá. Chegasse em casa, haveria o álcool, meia dose, dose e meia. Saideira. Isto ao menos. Não que fosse alcoólatra – vocábulo longo: al-co-ó-la-tra -, mas àquelas alturas parecesse o mais sensato. Nada de estar mais exposto ao relento, ao vento, embora naquela noite tudo isso tivesse rolado. Porque assim ficava mais fácil o vendedor de bugigangas chinesas, sabe-se lá, tailandesas ou paraguaias, o churrasquim de gatos. Engolidores de facas. Traficantes de tudo. Amigos. Falsos. Profetas. Mais fácil, de fato nas noites de dom pixote em busca de intrépidos moinhos: música, dança, subversões. Nem sempre. Não agora. Fechara ali mesmo: comprar umas cervejas e ir para casa. Dormir. De fato, olhar bem alto a noite ainda uma criança. Mas. Sairia daquela assim? Tudo de novo? A velha história? Não foi fácil aturar o Outro. Inferno – l’enfer sont les autres. Observar atitudes humanas. Humanos: primatas que pensam que pensam. Doideira (era o que pensava). E, se assim fosse, então pensavam. O único animal que fala e que falando demonstra o animal que é – foi o que alguém dissera. Sempre assim nessas noites? Fazer como que não percebesse. Falar o quê? Do gol da bunda da puta da vida?. Qual, o mundo! O mundo? Esse não tem remédio. Nossa! Bebera mesmo o desnecessário! Engraçado agora o engraxate que chega a procura de pés depauperados. E o malucos, os intrusos, largados, frustrados: truques, tristes fardos da noite. O Outro. Melhor seria: umas cervejas. Dormir. Já. Farto da noite.

Aquele que deu o pé: sua cara, sua fisionomia fazendo valer seus trocados. Suas taras. Sua lavra de ouro. Dá o pé. Patético. Quem é? O médico? O advogado? O monstro? O professor? O especulador? Desocupado? Mentiroso? Qual a verdadeira face? Esta, que se debruça sobre o balcão em festa ou a submersa no que omite e pensa? Pensa. Apenas mais um. Assim fica mais fácil a moça que entra. Ousada. Juvenil. Danação. (Recomeçava a imaginar besteiras). Inútil dizer que é do vestido. Inútil olhar, fingir que não vê. Mas. À noite. Ainda uma criança. Conflitos da carne e do espírito: pecados, perdões: perversões. E daí? Tudo de novo? A velha história? Fácil o flagelo debruçado na esquina da noite. Quem é? Foi alguém? Já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode. Ri de tudo? É risível? Alienado? Comendo lixo. Fazer como quem não percebesse? É. As coisas de fato convergiam mesmo para o ponto ao que pareciam agora se encaminhar. Bebera? Qual? Não podia enganar a si mesmo.

Bom mesmo: cervejas. Dormir.

COTEJE COM O ORIGINAL

Coisas futuras! coisas futuras!

(Esaú e Jacó – M.A.)

foi assim que vilela matou camilo, bem assim. porém, antes, vejamos. cotejemos 1º com o original, a ver se não fora mais ninguém senão o próprio vilela quem estivera a propagandear em cartas e pilhérias de homem a gostosura da moça, povoando a mente do rapaz interiorano com a vontade de – quem sabe um dia? – poder provar também daquelas tenras delícias da corte. depois, outro detalhe: claro que fora vilela o autor dos tais bilhetinhos, até aqui por todos tidos como anônimos. claro, só um corno extremamente ferido tramaria cautelosamente aquele ardil. ou não. (conforme sempre dissera caetano). mas, ponderemos: se a lavagem da honra, naqueles idos do tempo, já era mesmo pressuposto básico para a correção desses males de adultérios com sangue, a atitude de vilela vista assim parece-nos mesmo um mimo, no mínimo a revelar algo mais em sua personalidade de macho, posto que, conforme também convinha ao tempo, provavelmente era ele um daqueles que mantinham a princesa em casa e viviam a comer marquesas duquesas e afins nas ruas – como bem fazia o menezes lá com suas comboças. (aliás, neste caso, as criadas riram à socapa naquele lance porque também, com nhônhô, compartilhavam às pampas, ambas, daquilo que a boa conceição – pelo menos na cena em que mostra ao rapazola os velhos quadros expostos na parede – dissera mesmo ser o melhor negócio de chiquinho). confiram. mas, e a fúria de pseudo-macho-ferido até os culhões por outro que por mais macho ainda era amigo – e mais, moço? não teria nem conversa! daí a artimanha feminil das lúdicas cartinhas, tipo: sei quem você é: sei o que você fez no verão passado. terror de segunda, mas que funcionara. não fosse a tal cartomante... já a moça, coitada, esta morrera de véspera, como se diz – sem trocadilhos: que nem peru, porque naquela tarde não era intenção mesmo do homem matá-la. senão? vejamos. enquanto o jovem camilo financiava regozijado passas à carcamana de dentes brancos e unhas negras, ou seria o contrário? (vá, paquidérmico leitor, coteje com o original!), enquanto isso, na mansão de botafogo, vilela que, diferentemente de outros tantos maridos machadianos, era chegado a uns cafunés, queria de ritinha era mesmo uns amassos, mas a moça, totalmente arredia, chispava deslizando por entre os canapés e as cômodas da luminosa sala de jantar, espanando por vezes este ou aquele objeto com o lencinho de mão e, meio desconcertada, trocando-os aleatoriamente de lugar. vilela, que bobo não era, esperava apenas o peixe morder a isca: a hora de a onça beber água, porque se o negócio dos bilhetinhos colara, a estas alturas o camarada já deveria estar a caminho, mas antes – e era nisto que ele pensava agora – queria dar umazinha, digo, fazer amor com a mulher, ainda que rapidinha. porém ritinha, que noite anterior já havia dormido de calça jeans – conforme se diz hoje em dia –, especialmente naquele tarde parecia demonstrar sua total inquietação: seu mea culpa. pressentimento de mulher? odor di femina? por isso que vilela não tivera dó: queria, mesmo à força, iniciando ali seu roldão de ofensas e xingamentos: tonta. velhaca. pulha. (aliás, sempre fizera assim, com seu quinhão de ódio e asco – sua tara, a tapas –, tipo em blues velvet, lembram?) e então? só dás pro franguinho? e como é que é? gozas? o que? vais fazer doce? e toma-lhe porrada. claro que não ia matar sua rita: linda, gostosa, discreta, dissimulada. comida pra todo-o-sempre. mas, muito embora não gostasse de apanhar pancada, ritinha resignou-se a não mais poder, assumindo eternamente a última palavra que ouvira antes de desfalecer de vez para sempre: puta. quando camilo chegou – bem, vá, coteje, caro leitor, e aí não precisarei mais dizer palavra.

¡LOCO!

"...Soltar um jegue no Aterro,

na hora do rush,

só prá variar..."

(Raul Seixas)

Consta que quando o ¡loco! foi solto nas ruas a cidade inteira jamais fora a mesma. E fazia um sol dos diabos, enorme, a varar a nuvem espessa que cismava tanto tentar encobri-los - ao sol e ao ¡loco! -, não respectivamente nesta ordem, porque para esta espécie de homem tudo é vão e vem mesmo à esmo - à culhão , conforme dizia -, e o sol não é nada bobo, sabedor dos segredos dos céus – entendedor de nuvens que é.

Varrido, parecia cada vez mais que um estilhaço; doído, farrapo mesmo, humano – o homem.

Diz que teve de tudo, e um triz nos desvãos da selva oscura o jogara ali, para sempre. Sarjeta da pura; puta que vida; punheta de dia de noite, são pedro são paulo são pedro são paulo, mas sem a tal da culpa cristã, posto mesmo que era quase um zé de drummond; um mané: sem mulher sem mulher, sem saúde – e logo agora.

Diz até que tivera: gostosa gostosa: serena, de pôr mellisas e ulisses nos pés. Nas mãos. Sem dó. Mas foi justo ali que de fato sentiu que perdera o de tudo, como se a primeira vez. Fraqueza mesmo de macho. Doudeira, digo, doideira a dar com pau. Nem mesmo estreava a manhã. Diziam, ¿quizás?, que 15 ou 20. Virgem, parece, de tudo ainda. Menina. E foi nessa então que, quando olhou e viu a vulva, digo, a uva e já era: a vida fez um zoom e tchau, levando em seu caudal de nuvens milhares, centenas de ilusões .

Consta mesmo que foi coisa feita: santerias, algaravias, vodoos - e o escambau. Leite com manga, talvez.

E que, por conta, já fizera um pouco de tudo: mendigo, coxo, cego, palhaço. Diz até que (por conta) deu de malabares atrás de um qualquer nos faróis, por aí.

Mas fazia agora era um sol dos diabos, e o ¡loco! parava e punha o pau de fora na porta do adro, bem quando o cura ladrava benedicta tu in mulieribus, para render – como de praxe sempre àquela hora do dia – homenagens múltiplas também às suas, dizia, milhares de mulheres que se foram, disseminando-se, literalmente, à porta do templo. Para, logo na seqüência, adentrar e afinar-se ao coro dos contentes, na louvação à virgem: dominus tecum! dominus tecum!, bradava consternado. Doido mesmo.

Consta que, com freqüência, comungava e partia, a fumar um com outros indigentes, por ladeiras e vielas – depois de embebido por toda a cachaça angariada nas encruzas da cidade.

Diz que, de madrugada, reivindicava asilo em puteiros, onde nada cobravam, apenas para que contasse estórias do seu tempo de menino de marinheiro de bombeiro de michê de piloto de pirata. Mentisse, mas que fizesse as tristes putas rirem à socapa na noite. Diz que algumas, as mais despudoradas, por vezes até pagavam-lhe em suculentos boquetes pelas horas impagáveis de desidério, ao cair da manhã.

Como sempre, nada de café ou escovar os dentes. Pinto no lixo, comia o que dessem, o que fosse. E saía, quase contente.

Morava sempre sabe-se lá para onde lhe batesse a veneta: becos, vielas, prédios, brejos. Sempre praquelas bandas. Porque não havia mesmo mais tempo para velhos sonhos, naquele tempo.

Consta que nada ficou no lugar, depois: sua coleção de latinhas, sua carie dentaria, sua incoerência. Porque quis atirar-se.

Diz que dum viaduto.

OS RATOS NÃO TOMAM PROZAC

“A avoa contáralle que había dúas clases de ollos que nunca choran: os do demo e os da cabra.”

(Manuel Rivas, in Os ollos da cabra non teñen bágoas)

I.

pensando direitinho, nunca poderia mesmo ter sido um sujeito de bem, e pensava isto enquanto enfiava um toco tosco – parte de uma geringonça chamada à época pau-de-arara – rabo adentro do outro, relembrando também naquele mesmo instante que desde menino gostava mesmo era de brincar roçando com uma vareta de piaçava fina os dentro da coluna vertebral de uma rã – depois de decepado e devidamente escalpelado o bicho.

II.

aliás, falando em rãs e araras, certa vez alguém sugeriu-lhe ratos e outros bichos, igualmente repugnantes (ou não) - mesmo porque (entendia) toda a repugnância daqueles atos se fazia ali, à hora; agora mesmo, por exemplo, logo após a sessão com o troço tosco, sentia-se que a simples presença do rato fazia do rosto do outro a própria máscara do medo – de munch.

III.

olhando bem, via-se mesmo o zelo na função, porque não se limitava(m) apenas a ofertar a dor; não se comprazia(m) do outro, deixando-se enredar nos mares de lamúrias, suores, chiados estranhos, odores, lágrimas, excrementos de toda ordem; fosse quem fosse o outro – mulher velho velha ou criança ainda – o sujeito e o rato destarte cumpriam seu quarto de hora.

IV.

(mesmo) roendo o que visse, embora sempre que alcançasse as partes pudentas e a cara causasse um maior pavor, o rato - também mandatário do estado - ali fosse talvez o mais razoável, porque lhe cabia apenas o rescaldo da cena, o pente fino, conforme diziam; ao homem: primeiro fazer com que o outro fingisse que dor é algo que dá e passa, assim como o peso do pecado ao cristão tão logo o mesmo confesse; ademais, confessasse ou não, haveria sempre um jeitinho de esquadrinhar (o outro), entrar pelos sete buracos de sua cabeça, ¿quiçá não fundar outros além dos mais ou menos nove que lhe há pelo corpo? esgarçar mesmo, porque era a senha.

V.

(naquele tempo) era permitido o correr de sangue; claro que para isto então não era suficiente apenas um telefone, dois; talvez de três em diante e em seqüências esparsas, posto que haveria tímpanos resistentes; depois, nos olhos, algo como gás lacrimogêneo, que causasse uma cegueirazinha de momento; mas não o suficiente, enquanto não se pudesse então prender a língua do outro ao magneto da maquininha e rodar, rodar a roletinha: inimaginável a dor; e é claro que a coisa não se dava necessariamente nesta seqüência, porque nessa hora mesmo também, segundo a cartilha, poder-se-ia estar submergindo vez ou outra o outro em água, no limite, posto que causasse efeito a conjunção: água e choque, água e choque.

VI.

fosse velho, dentadura ao largo, fazê-lo sorver o próprio excremento, como se volumosa sopa; fosse moça, o cabaço em lágrimas: à força, o sexo; fosse mulher e haveria além das humilhações gerais e das sevícias de praxe (estivesse grávida) o prazer de exterminar com a vida do outro, ab ovo: quase um gozo, para depois, olhos eclipsados, vê-lo se desfazer em ininteligíveis clemências, semi-morto, sem face: mercê do rato.

VII.

contudo (quando) em casa, o mais comum dos mortais: zoológico com a família aos domingos dar pipocas aos macacos; algum sexo; suores, lágrimas. missa pela manhã.

SONHEI QUE EU ERA O HOMEM QUE JOGAVA NO JOGO DO BICHO

“agora eu era o herói

e o meu cavalo só falava

inglês...”

Sonhei que eu era o homem que sonhava que jogava no jogo do bicho. E ganhava. E no sonho tudo o que havia no mundo dos vivos dos mortos do passado do futuro de névoa de queda de céu, enfim tudo era sonhado por mim. Primeiro me vinham os bichos, desde menino: patos cachorros pacas tatus (cotias não). Mas ainda não os dominava eu: seu significado, minha intuição. No sonho. Isto é: no sonho eu sonhava que desde menino me vinham palpites. Visões. Sei que mamãe quase sempre dizia: olha, menino, conversa fiada matou carambola! E isto numa exclamatória com o tom de missal, uma filosofia quase, uma frase secreta. Então ensinou-me a nada dizer quando de um sonho saltassem galos, dentes, porcos, pentes, veados e outros bichos. Dizia. Mas também gaviões, piratas, urubus, putas e pavores povoavam outros sonhos desde menino. E sonhando, sonhei que neste dia tudo ia contra mim: havia algo assim como uma guilhotina e uma horda de gente e eu, que há minutos estivera à toa, era catapultado à protagonista desta cena – assim como naqueles episódios d`O túnel do tempo. Sim: pois que havia algo como uma guilhotina e sob sua lâmina o que pendia agora, digo o que pendia era nada mais que a minha pobre cabeça. Pobre porque parecia totalmente plebeu no contexto – não fossem a guilhotina e aqueles parvos trajes. Haveria mesmo uma platéia curiosa, claro: mulheres, velhos, mendigos, que antes ordenavam-me para confessar crimes, coisas, algo sobre o qual naquele instante de sonho eu não tinha noção de ser lá o que fosse. Mas em seguida, sem muito esforço, tudo começaria a me parecer familiar, era como se num daqueles games que requerem, p. ex., vaga idéia de fatos assim como da história. Sim: Só então dei-me conta de que talvez estivesse numa era assim, de antigamente. Claro. No sonho. Por isso mesmo que, alheio aos fatos, tornei-me réu confesso e, evidentemente, fiz esforço por acordar o quanto antes, para que não se expusesse em instantes minha cabeça à premio. Maria Antonieta da àustria comia brioches bem ali à minha frente, indiferente à sentença, à ralé e ao carrasco – o mesmo que logo logo prepararia ambas as nossas cabeças para em seguida decepá-las história à fora. Ela, que minutos antes, soberana, interrogava-me com olhos pidões, refestelada em almofadas reais, a esfregar no colo leitoso um volumoso gato. Era a senha. Depois tudo, de pronto, ficaria meio difuso, confuso mesmo já ao cair da madrugada. Embora ainda quede intacta a memória de brioches e vinhos, como se tivera uma noite de rei. No sonho. Deu 14. De manhã.

Lucio Valentim
Enviado por Lucio Valentim em 27/02/2007
Reeditado em 24/08/2010
Código do texto: T395046
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