INSPIRADO em Isabela Narcizo *

Anos depois, ela voltou ao bairro de sua infância. Ansiosa por rever os amigos dos primeiros anos de vida, mal se continha. Esse reencontro era seu principal objetivo, acalentado nos vários anos em que ficara distante, levada por exclusiva dedicação aos estudos. Primeiro foi a faculdade. Depois, a pós-graduação, a esta seguindo-se o doutorado, ciclos vivenciados em país estrangeiro. A proficiência na carreira que abraçou, conjugada com a habilidade para falar outros idiomas, mantiveram-na fora da terra de origem por longo tempo.
No táxi em que era conduzida, seu nervosismo se tornava tão maior quanto mais próximo percebia que estava chegando ao destino. Sentia-se também surpresa e intrigada, pois tudo parecia muito diferente de quando era criança. Construções, o trânsito, as pessoas que via passar... tinha a sensação de estar em um mundo no qual antes nunca pisara. Chegou a perguntar ao motorista se ele não havia confundido o destino indicado. Demonstrando segurança, o rapaz ia mostrando as placas com os nomes das ruas. Não havia dúvidas. Era ali mesmo. Só que seu antigo bairro, por ela antes qualificado de espaço urbano-campestre, é agora uma quase selva de pedra. Construções térreas praticamente não existem. As que restaram sofreram radicais reformas nas fachadas. Agora, exibem placas e outros indicadores de que mudaram de uso: em vez de residências, são pontos de negócios. Por onde passava, trânsito intenso. Tudo tão diferente da época em que os veículos eram poucos...Tão raros que era possível dizer o nome dos proprietários e as ruas, um território livre para as brincadeiras dos meninos.
Quase ficou sem respirar quando constatou que o clubinho deixara de existir. No lugar foi construído um cemitério vertical e as poucas árvores que ainda estão de pé servem para assegurar um pouco de sombra no amplo estacionamento localizado em volta da lúgubre construção.
Mandou o motorista parar quando avistou a fofoqueira-mor do lugar, não sem experimentar a surpresa ante o fato de encontrá-la ainda viva, tão velha que é. Mal se identificou, cravou-a de perguntas sobre os moradores de seu tempo, de imediato e sem vacilo recebendo as respostas. E foi assim:
Todos cresceram, menos dois. Um, por ser anão e tinha alcançado a estatura definitiva antes que sinais exteriores da puberdade se definissem. Outro, porque uma bala perdida o alcançou na cabeça e seu corpo desabou ali mesmo onde as duas se entregavam à conversa: na calçada do colégio.
Os outros, poucos se veem e quando acontece, quase sempre é por acaso. Entende-se: alguns mudaram de cidade, muitos foram morar em bairros distantes, perdendo o contato com os demais. Em suas próprias vidas, seguiram por trilhas distintas e distantes, de modo que os caminhos praticamente não se cruzam. Nem todos prosseguiram com os estudos além do segundo grau. Parte, devido à precariedade financeira das famílias, motivo para cedo investirem em outro tipo de aprendizado. Outros, devido a circunstâncias variadas.
Alguns exemplos são ilustrativos. A menina que roubou a bola e, aconselhada pelo gordinho, trouxe-a de volta ao seu dono, tornou-se uma jovem dotada de graciosidade corporal singular. Alvo inescapável de cúpidos olhares masculinos, frustrou as expectativas dos pais e, em vez de esperar por um incerto príncipe encantado percebeu sua vocação para os negócios e com determinação dedicou-se ao comércio. Atividade com baixo risco de falência e expectativa de lucro invariavelmente confirmada. Produto à venda: seu próprio corpo.
Hugo, aproveitando os conhecimentos adquiridos ao longo do tempo como confidente dos companheiros, adotou por meio de vida a aplicação de pequenos golpes como chantagista. Troca ameaças de revelação de segredos por dinheiro e favores extra-numerários. Eventualmente, atua como detetive. Aprimorou as habilidades para obter revelações preciosas e repassá-las a pessoas interessadas com poder de pagar.
Alguns daqueles meninos concluíram faculdade. Entre estes, dois ou três conseguiram trabalho em órgão público e levam uma existência financeiramente estável e... rotineira, sem perspectivas de mudança. Conformados e conformistas, seguem o que acreditam ter-lhes sido reservado pelo destino. Ah! o que se estabeleceu como empresário em um Estado do Norte, acumulou fortunas com o corte e exportação de madeiras nobres. Vive em conflito com ambientalistas por não respeitar a lei de replantio de árvores derrubadas. Um outro decidiu morar na Europa e, depois de anos fazendo remessas de dinheiro para ajudar na sobrevivência dos pais, agora luta para voltar ao Brasil. Para seu quase desespero, a crise econômica que castiga países daquele continente, não lhe permite juntar o valor necessário à realização de seu grande sonho: comprar uma passagem de avião e voltar ao Brasil.

-E dona Zoraide, a diretora da escola, ainda está viva?

-Dizem que sim, mas está morando em um conjunto residencial ruinziiinho! Levou tapa de um aluno e quando prestou queixa terminou sendo processada...

-Processada? Mas como? É agredida e ainda sofre um processo!?

-Pois é, minha filha! Foi acusada por uma tal de comissão de defesa de direitos humanos...alegaram que ela era antiquada...que devia entender que os jovens não têm discer...discer..niii...sei lá, disseram uma coisa que eu não entendo bem

-Discernimento?

-Isso! Pois bem, ficou desgostosa, recebia ameaças constantes de outros rapazes, pediu transferência à Secretaria de Educação mas não conseguiu! Aí, acabou se  aposentando antes do tempo e ficou recebendo um salário ASSIM, Ó, - disse, fazendo com os dedos um gesto que caracteriza tamanho ou valor pequeno.

-E...DONA ZILMEIA, irmã dela, que foi minha professora?

-Deram flagra nela desviando a merenda escolar e...

-Olhe, o táxi está esperando, tenho que tomar o avião em menos de duas horas...não posso esperar mais...

Já em direção ao táxi, lembrou-se de que não tinha se despedido da mulher.  Voltou, agradeceu e mandou o motorista levá-la de volta ao hotel onde tinha reserva de apartamento por um mês.
Sem trocar uma palavra sequer com o condutor do veículo, sentia-se como se um bolo gigantesco estivesse fechando sua garganta. A língua crescia-lhe na boca, um aperto entre os seios davam-lhe a sensação de que uma armadura de ferro impedia sua respiração.
Lembrou da clássica frase de Machado de Assis, ficando na dúvida se fora escrita exatamente como estava proferindo para sí própria: "Mudei eu ou mudou o natal?"
Mudara ela, sim. A volta ao lugar de origem teve o impacto de um choque de realidade. Como se não houvesse vivido os ritos de passagem de uma fase da vida para outra. Ou de sucessivos estágios que se seguem em cadeia. Perdera o contato "corporal" com aquele canto e as pessoas que ali habitavam. Foi catapultada da infância terminal diretamente para o tempo de adulto em maturação. Não vivenciara os acontecimentos que tiveram lugar naquele seu ex-espaço urbano-campestre no  decorrer de uma longa ausência. Hibernara por anos a fio e quando despertou, o tempo das fantasias tinha ficado LÁ, BEM ATRÁS.

* Inspirado no texto Pequena Sociedade de Crianças, de Isabella Narcizo.





Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 21/10/2012
Reeditado em 22/10/2012
Código do texto: T3945075
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