Um tiro para a morte

Segundo diz um amigo meu, todas as histórias já foram contadas. Esta não seria diferente se não houvesse acontecido com meu pai. Vou relatar os fatos exatamente como eles aconteceram para que você possa contar para os seus filhos a verdadeira história. Só lhe peço que não aumente os fatos.

Zé Pretinho era um homem bonito, forte, um cidadão corajoso por exigência da própria natureza, gostava de uma boa prosa, contava anedotas em todas as rodas que chegava, tinha seus vinte e oito anos naquela época, era solteiro, de família respeitável e valente. Não levava desaforo para casa, não dispensava desafios, vivia correndo o mundo como se fosse um forasteiro. Certo dia, numa manhã chuvosa, foi contratado para fazer um “tal serviço”, não contou pra ninguém aonde ia e nem o que iria fazer. Apenas repetia que tinha que fazer um “tal serviço”. Naquele mesmo dia saiu pela cidade a procura do melhor cavalo que se tivesse notícia, disse que pagaria por ele o dobro do que valesse, pois que precisava de um animal que o levasse para bem longe, um animal que não refugasse na hora do perigo ou da dor. Assim, saiu de fazenda em fazenda, de povoado em povoado procurando por esse distinto animal. Rapidamente a notícia caiu na boca do povo, todos queriam lhe vender um cavalo, fosse bom ou ruim. Depois de muita andança, acabou por comprar uma mula malhada de nome Risoleta. Quando entrou na cidade, com a mula a trote, até o mudo que havia na cidade voltou a falar. Uns diziam que havia acontecido um milagre, outros cochichavam dizendo que o mudo havia visto o capeta montado na mula e que, de tanto medo, começou a gritar. A espora de cinco pontas, amarrada nos pés do cavaleiro riscava o vazio do animal com precisão, a rédea, trançada em seis pernas, era tão resistente quanto a um cabo de aço. Cada perna era de uma cor. Na anca do animal a carabina reluzia de acordo com a posição do sol, na coronha existiam vários cortes... Diziam os mais velhos que cada corte daqueles representava a morte de alguém com um tiro daquela arma. Em cima da cela, o acolchoado era de um branco angelical. Com toda essa exuberância Zé Pretinho saiu da cidade com Risoleta marchando na ponta dos cascos.

Depois de algumas semanas de sua partida, corria de boca em boca que ele havia sido contratado para matar João da Lica. Um fazendeiro que morava a quatro léguas de distância. O que se falava de João da Lica era que ele era um homem honrado e de muitas posses. Que tinha vários filhos; homens e mulheres. Ninguém sabia ao certo quem é que havia contratado tal serviço, ninguém acreditava nessa conversa maluca e mal contada. Mas a verdade era que Zé Pretinho estava seguindo em direção às terras de João da Lica. Lica, na juventude era a moça mais cobiçada da redondeza, mas ninguém jamais ouviu falar que ela houvesse traído o marido e nem tão pouco houvesse namorado outro homem. Todos sabiam que aquele casamento era exemplar e duradouro.

Não existia qualquer pista que pudesse levar alguém a acreditar nessa barbaridade, tudo haveria de ser um mero engano da vizinhança que vivia à caça de notícias recentes. Uma história dessa era assunto pra vários dias e quem sabe inúmeras noites nas mesas dos bares. Algumas pessoas chegaram a fazer apostas caso a história fosse até o fim, alguns apostavam na morte de Zé Pretinho, outros na de João da Lica. Não existia qualquer vantagem para um ou outro. Não havia favorito. A lenda que corria na cidade era a de que raramente Zé Pretinho errava um tiro de carabina. Diziam que ele era capaz de acertar dois gaviões com a mesma bala, que a pontaria dele era infernal. Por outro lado, contavam que João da Lica nunca havia dado um tiro, mas nem por isso era um homem acovardado.

Realmente Zé Pretinho foi para a fazenda de João da Lica, lá foram vistos pelos grotões da região. Zé Pretinho estava sempre com a carabina amarrada na anca de sua mula e nada indicava que ele pudesse fazer qualquer malvadeza com o “novo” amigo. Além disso, Zé Pretinho foi visto inúmeras vezes com a filha mais nova de João da Lica, pareciam estar sempre felizes.

A amizade entre eles parecia inabalável, compravam e vendiam gado juntos, pareciam pai e filho. João da Lica, segundo contam, chegou a confessar para alguns amigos que aquele era o genro que ele tanto procurava. Eu não tenho nenhuma testemunha fidedigna que possa comprovar essa conversa. Portanto, ela pode não ser verdadeira. Prefiro acreditar que realmente a conversa existiu – mas este é só um palpite da minha pessoa.

Quando não havia mais tempo a esperar, Zé Pretinho nervoso como a um cão raivoso chegou para o amigo com voz trêmula e sem meias palavras:

__ Meu amigo João da Lica estou aqui para lhe tirar a vida, fui contratado para fazer esse serviço, confesso que nem sei por que devo realizar tamanha barbaridade, tenho pensado nisso todos estes dias e todas estas noites, o tempo vai passando e eu vou perdendo a coragem. Quero que você saiba que jamais voltei para casa sem terminar com a minha obrigação e não vai ser desta vez que isso irá acontecer. Se você tiver uma idéia melhor, é importante que diga agora, pois não posso mais demorar, meu tempo esgotou. Eu deveria ter feito o serviço no primeiro dia em que aqui cheguei, mas isso não foi possível por culpa sua que me tratou como um filho. Pensei que poderia esperar mais um pouco, mas agora não tem mais jeito.

__ Meu jovem Zé Pretinho, tem momentos na vida que não nos permitimos recuar, acho que este é um desses casos, já sabendo da sua obrigação, sou forçado a dizer que também posso lhe matar, este não é e nunca será meu desejo, mas quando a morte vem bater à nossa porta é preciso ter coragem para enfrentá-la. A morte não deve ser coisa muito boa, ainda mais quando chega de supetão.

__ Pois então vou lhe dar uma chance, esta será a minha paga, vou deixar apenas uma bala na carabina, vou deixar que você ande cem passos rumo ao norte e, depois, você começa a correr, só assim vou atirar, se errar você estará livre para sempre, vou embora pra minha cidade e não volto nunca mais.

__ E se eu não correr?

__ Vai morrer como um cão sarnento... Um, dois, três...

João da Lica seguiu lentamente – como quem caminha para o matadouro – de modo que Zé Pretinho não errasse na contagem e nem atirasse antes que completasse os cem passos pré-determinados. Zé Pretinho continuou contando em voz alta para que João da Lica soubesse exatamente o momento em que deveria começar a correr.

Quando os cem passos foram atingidos, João da Lica não hesitou, saiu em disparada, feito corisco endiabrado, sem olhar para trás correu alucinado até que o disparo foi ouvido como um estrondo. Nem um pio foi ouvido na mata depois daquele infeliz instante, o silêncio trazia o cheiro da morte. João da Lica tombou como uma árvore podre. Rolou por alguns segundos até que foi parado por uma ponta de pau que ali estava. Ficou de bruços, como quem morre sem saber por quê. Zé Pretinho assustado correu em direção ao corpo que estava estatelado no chão. Sem entender o que realmente havia acontecido aproximou e, com o bico da botina virou o corpo que estava vergado no chão, mas subitamente e sem qualquer explicação um novo disparo ecoou na mata – um tiro a queima roupa. Desta vez o sangue correu pela boca de Zé Pretinho que ainda de joelhos dobrados, balbuciou nos braços do amigo suas derradeiras palavras...

__ Ainda bem que atirei para o alto!

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 26/02/2007
Reeditado em 01/11/2017
Código do texto: T393719
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