Assim caminha a humanidade

Me perdoe, padre, porque eu pequei.

Era uma quinta-feira como qualquer outra na igreja. Dia de confissão. Dia em que ele, como um pastor, deveria ficar ali para oferecer auxílio, perdão e penitência às ovelhas que viessem lhe procurar. Dia que, na prática, era gasto quase que exclusivamente em ficar sentado numa cabine de menos de um metro quadrado jogando Pokemon em seu gameboy velho de guerra, enquanto o sino não batia as sete vezes que indicavam a hora de tirar a batina, trancar os portões e voltar para casa. Não que ele não gostasse de fazer sua função; varava noites preparando os sermões de domingo, e levava a sério todas suas responsabilidades para com a comunidade. Mas, mesmo assim, era um trabalho brando. A cidade era pequena, perdida no meio do nada, pouco mais de cinco mil habitantes. Não havia asfalto ou água encanada, e fazia apenas uns dois anos que a energia elétrica havia sido instalada. Não que o governo fosse incompetente. Era; mas um incompetente do tipo que é normal encontrar em qualquer cidade, seja ela uma grande metrópole ou não. O fato é que, por mais que quisesse trazer o progresso, não era interessante. Não para a cidade, mas para o progresso; nenhuma companhia de água e esgoto achava que os custos de se criar toda uma infraestrutura seriam pagos num prazo diferente de “eternamente longo” e, por isso, ignorava qualquer tipo de contrato oferecido pelo governo municipal. Na verdade a cidade só não havia ainda se tornado mais um fantasma perdido pelo interior por causa de Ramón, um venezuelano que havia se mudado para lá há alguns anos e se tornara o patrono do local. Foi apenas pelos esforços dele que a companhia de energia havia concordado em criar um estação ali, e foi ele o responsável por bancar os postes e fios que a distribuía por todas as casas do local. Era ele também o patrono da igreja, e grande responsável por ela ainda estar em pé e não ter sido deteriorada pelo tempo. Profundo religioso que era, primeira coisa que fez ao chegar na cidade e ver o estado deplorável da matriz foi procurar o padre e bancar toda a reforma do prédio, trazendo um altar de marfim e vitrais que representavam cenas da Paixão de Cristo. Mais do que da comunidade, a igreja representava a riqueza de um único representante. Que importava se ele era um dos maiores chefes do narcotráfico internacional? Não cabia a ninguém julgá-lo; o julgamento pertence apenas ao Senhor. Sua tarefa ali era apenas ouvi-lo, e perdoá-lo. Afinal, não importava o que se tivesse feito na terra, todos merecem o perdão. Não só por questão profissional, de que esse era o credo de sua igreja e por isso ele devia seguir; não. Ele realmente acreditava que todos mereciam uma segunda, terceira, quarta, quantas chances fossem, desde que a pessoa se mostrasse realmente arrependida daquilo que fazia, ainda que soubesse que poderia tornar a fazê-lo. E, mesmo que a maior parte da comunidade não concordasse muito com esse tipo de filosofia, Ramón era o grande responsável por elas terem uma televisão em casa e passarem suas tardes concordando com o apresentador que dizia que “bandido bom é bandido morto”, e isso tornava a parte de não julgá-lo muito mais fácil.

Mas não era Ramón que estava ali para mais uma sessão de expiação dos mesmos pecados de sempre. Não; certamente não era a silhueta pequena e balofa de Ramón que estava ali na câmara ao lado. Quem quer que fosse que estivesse lá, a julgar pelos ombros e bíceps, possuía os músculos bem definidos. Mas, apesar da voz não ser estranha, não conseguia se lembrar muito bem de onde a conhecia. Não eram muitos os homens – ou mesmo fiéis – que frequentavam a igreja. Seria o marido de dona Constanza? Não...ouvira dizer que ele nunca mais entrara numa igreja depois do casamento, e mesmo durante este teve que ser segurado pelos padrinhos para não sair correndo de lá. Pelo pouco que conhecia de dona Constanza, não conseguia culpá-lo...seria o filho da dona Célia? Se não estava enganado ele era militar...mas não estava servindo no Haiti? Ou era o marido da dona Ofélia? Sobrinho da dona Graça? Irmão da dona Justina...?

Ele então se lembrou de onde conhecia aquela voz.

Padre, você ainda está aí?

Nenhuma resposta. Apenas o silêncio da vergonha. Em sua cabine, padre Pedro mantinha a cabeça baixa, e agora segurava o rosário que sempre carregava no bolso com tanta força que parecia que queria esmigalhar todas as contas com as próprias mãos. Sentia vontade de sair correndo da cabine, mas, como sempre, havia algumas carolas enfileiradas ali em frente, rezando para que Deus lhes concedesse graças, as quais elas não faziam nada para conseguir além de passar o dia ajoelhadas em frente ao altar. Seria estranho caso ele simplesmente saísse do confessionário correndo como um alucinado; poderia perder todo o pouco respeito que possuía na cidade. Mas, mesmo assim, se sentia tentado a fazer, independente das consequências.

Cara, eu sei que você está me escutando, que você sabe que sou eu. Pare de me ignorar! O que Deus vai pensar disso?

Deus não tem nada a ver com essa história.

Deus tem tudo a ver com tudo. Não é isso que você tem pregado esses anos todos?

Um breve instante de silêncio, que não serviu em nada para quebrar o clima pesado da conversa.

O que você quer? - disse o padre, visivelmente tenso e irritado.

“O que você quer?” Ora! Isso é jeito de falar com o irmão que você não vê já faz....o que? Dez anos?

Doze. E você sabe que há um bom motivo para isso.

Silêncio. Tudo o que se ouvia dentro da cabine era o murmurinho das orações em frente ao altar; a respiração pesada dos irmãos que, separados pela grade do confessionário, continuavam sem se ver.

Então é isso? Você vai ficar calado? Sabe, você não faz ideia do trabalho que me deu pra achar esse lugar! O tempo que eu fiquei procurando até descobrir que você estava aqui; onde era “aqui”! Tenho que admitir que você realmente ficou muito bom nesse negócio de fugir dos problemas.

E você continua com essa mania de querer enfrentar tudo de frente.

E não é melhor assim?

Você só acha isso porque nunca é quem sai perdendo.

Novo silêncio, dessa vez mais prolongado. Aquela situação já estava ficando desesperadora. Em sua cabine, Pedro suava frio. Suava de tenso, de ansioso. Acima de tudo, suava de medo. Medo de ser colocado frente a frente com fantasmas do passado; medo de que, mesmo após todos esses anos, ainda não estivesse pronto para enfrentá-los.

A próxima fala foi uma voadora com os dois pés no peito.

Sabia que você tem dois sobrinhos? Um lindo casal. O mais velho tem oito, a mais nova seis. Você deveria conhecer eles. São uns amores.

Por um momento achou que não conseguiria respirar nunca mais. O ar ficou pesado, o mundo rodava à sua volta, e teve que se segurar nas pernas do banquinho para não cair para fora da cabine. Algumas palavras penetram em nossas almas como facas, cortando pequenos pedaços de nossos seres e nos deixando morrer por hemorragia, nossa própria essência escorrendo aos poucos, até que tudo o que sobra são pedaços de carne que falam, andam, estudam e trabalham, mas se mostram incapazes de viver. Mas aquele não era um golpe de faca; era um chute no saco. Uma dor do parto. A dor de ser confrontado com uma verdade que se lutou durante anos para ignorar; a dor de ser confrontado com um passado que se fez de tudo para fugir. A dor da memória sentimental.

Do amor unilateral. Da traição.

A dor imaginária mais insuportavelmente real que ele poderia sentir.

Demorou até que conseguisse juntar uma fagulha de força.

Você só pode estar brincando que não esperava uma notícia dessas. Sério. O que você achava que eu ia vir aqui te contar?

Eu não achava nada. Eu rezei durante anos para não pensar no assunto. Eu achava que nunca mais te encontraria, que você nunca me encontraria. Eu achava que, depois de todos esses anos, eu tinha o direito de poder escolher viver minha vida em paz. Pelo jeito estava errado.

Ora, deixa de ser uma bichinha! Você sempre foi um covarde! Sempre fugiu frente a qualquer problema.

Você sabe bem que isso não é verdade. Quem era que sempre te protegia quando o corajoso aí arranjava briga com a garotada da rua? Quando os valentões tentavam roubar seu lanche na escola, quem é que sempre os enfrentava? Hein!? Você sabe muito bem que eu não sou um covarde. Mas o que você queria que eu fizesse?! Te espancasse?! Desse um tiro em você?! Nela?! Em mim mesmo?!?!

Ora, não seja exagerado...

Você me traiu!!!!!

Como eu posso ter te traído?! Você é meu irmão! Eu te amo!

Isso não muda o fato de você ter traído esse amor. Duplamente.

Como que eu posso trair um amor amando?!

E existe outro modo?!

Ele ficava cada vez mais tenso; respirava ainda com dificuldade. Arfava. Baixo. Não queria mostrar fraqueza, mas se sentia fraco. Não esperava encontrar seu irmão ali, dentro de sua igreja, numa cidade no meio do nada, numa cabine de nem um metro quadrado e sem nenhuma saída de emergência. Na verdade, não esperava encontrar seu irmão nunca mais, se aquilo fosse possível. Rezava a Deus por isso, desde o dia em que resolveu deixar toda sua antiga vida para trás.

Mas por mais misericordioso que Deus fosse, não podia atender a todas as preces.

Por que justamente a dele tinha de ser ignorada?

Olha, eu não vim aqui...

Você roubou a minha mulher. A única pessoa que eu amei na vida. A única pessoa com quem eu realmente me preocupei. Você destruiu minha vida. Me fez perder o rumo. Me fez largar toda a minha vida e me retirar para o seminário. Você faz ideia de quantas noites eu passei em claro, o travesseiro abafando meu choro, os olhos ardendo de tantas lágrimas derramadas?!

Olha, eu realmente não faço ideia...

Disso eu já sabia...

...mas você faz parecer como se isso tudo fosse minha culpa. Eu me casei com sua noiva? Sim! Nós nos apaixonamos desde aquele dia, o primeiro dia, em que você a levou na casa da mamãe para anunciar o noivado à família. Desde o primeiro momento que cruzamos nossos olhares, que sorrimos um para o outro, nós sabíamos que já não havia saída. Foi uma coisa muito louca! Uma coisa que eu não consigo explicar! Uma coisa que só pode ter sido o dedo de Deus. Ela te largou, e nós nos casamos, e tivemos dois filhos, e somos apaixonados até hoje. Mas você é meu irmão, e eu sinto a sua falta. NÓS sentimos sua falta. Ela me pergunta sempre de você; quase toda semana, sabe? Ela nunca deixou de te amar.

Vocês tem um jeito estranho de mostrar seu amor por mim...

Agora você está parecendo um velho amargo.

Mas eu sou um velho amargo. Vocês me tornaram um velho amargo. Com bons sentimentos, boas intenções, vocês transformaram minha vida num inferno. Sim, eu encontrei a salvação, descobri minha vocação. É verdade. Mas isso me mudou. Muito. Eu envelheci muito mais que esses doze anos. Encontrei a salvação no Senhor, mas já não era a mesma pessoa. Nunca mais serei a mesma pessoa que vocês dizem ter amado. Eu fiz essa opção de me distanciar, de abandonar vocês, abandonar a família; aquela não era mais minha vida. Era a vida de meu antigo eu. A vida de uma pessoa que não mais existe. E então você, no auge de sua culpa, num surto de filho pródigo, resolve me procurar, e me encontrar, e vem na minha paróquia, no meu horário de serviço, para vir aqui me pedir perdão...

Me desculpa, mas eu não vim aqui para pedir perdão. Eu não fiz nada de errado para que você tenha que me perdoar.

Então eu realmente não sei o que você veio fazer aqui.

Pedro escuta o irmão dar um longo suspiro enquanto vagarosamente se levanta do banco em que está sentado.

Sabe, é realmente uma pena; você passou tanto tempo nesse lugar, e não aprendeu nada.

O som da porta se abrindo e logo fechando indicava que aquela conversa havia chegado ao fim.

Finalmente estava sozinho.

Bem, na verdade não. O murmurinho que vinha de fora da cabine indicava que algumas carolas da comunidade ainda estavam lá fora. E, provavelmente, com a curiosidade atiçada depois de toda aquela discussão confessionária.

Recolhendo os últimos cacos de integridade e os resquícios de dignidade que ainda lhe restavam, levantou-se e, respirando fundo, ergueu a cabeça e saiu de sua cabine com o ar de superioridade velada que sempre assumia nos corredores de sua igreja. Lá dentro, quatro mulheres de meia-idade se prostravam diante o altar, murmurando orações e salmos para a imagem do Cristo crucificado. Não sabia ao certo se elas haviam escutado tudo o que se passara na cabine confessional. Provavelmente sim; mais do que por sua fé inabalável, essas mulheres eram conhecidas na cidade pelos seus ouvidos atentos e línguas afiadas. Certamente ele seria o assunto da cidade durante os próximos dias, mas nada disso importava agora; tudo o que queria era ficar sozinho.

Me desculpem senhoras, mas eu terei que fechar a igreja mais cedo hoje. Deixe-me acompanhá-las até a porta...

Mas padre, ainda é cedo. Nós precisamos conversar com você sobre...

Me desculpe dona Célia, mas eu realmente preciso fechar a igreja agora. O que quer que você tenha a me dizer pode esperar até amanhã. Por favor.

Mas padre...

Por favor.

Apesar dos protestos, as quatro se retiraram sem oferecer muita resistência. Assim que as escoltou para fora, rapidamente girou a chave, trancando a porta para evitar quaisquer surpresas.

Finalmente estava sozinho.

E então levantou a cabeça em direção ao altar, seu olhar melancólico cruzando com os olhos azuis Daquele que, crucificado a mais de dois mil anos, o havia salvo. E se deu conta de algo que, ainda que fosse um conforto, de algum modo também o aterrorizava.

Nunca estaria sozinho.

Passos trôpegos, atravessou todo o salão de mármore recém reformado; as cadeiras de mogno, enfileiradas em procissão, numa oferta tão grande de lugares que, mesmo nos dias com número recorde de fiéis, parecia sempre que a igreja estava vazia. Reformá-la daquele jeito era construir um castelo para uma pulga; bonito, mas nunca que todo seu espaço seria usado. Mas de que vale as necessidades da comunidade frente aos caprichos de um pecador endinheirado que resolve que investir no Reino dos Céus é algo rentável? Não que estivesse fazendo isso do modo certo; mas, como todos aqueles acostumados a ter poder, Ramón também tinha dificuldades em escutar os conselhos daqueles que sabiam mais do que ele. No caso do padre Pedro, era totalmente ignorado; para o venezuelano, Pedro era uma porta que vestia negro, descontava cheques e falava somente aos domingos, entre as oito e dez da manhã. Nada além disso. E esse esquema vinha funcionando bem até agora; pelo menos no que concernia ao traficante.

Ao chegar ao altar e se ver frente a frente com aquela imagem habilmente esculpida, aqueles olhos ferinos que o olhavam do alto de Sua dor e o faziam sentir-se tão pequeno, olhos que o lembravam de que sua pequena paixão não era nada perto da Dele, de que sua dor não era nada perto da Dele, sabia que só havia uma coisa a fazer; então, em movimentos vagarosos, se deixou cair de joelhos em frente ao altar, as mãos interlaçadas, segurando o rosário, num gesto de humildade e súplica que ele mesmo não se lembrara de quando fora a última vez que tivera.

Me perdoe, Pai, porque eu pequei.

Vacilava em continuar, mesmo em pensamento. É sempre difícil assumir a culpa de algo; saber que fazer isso é sua condenação não torna nada mais fácil. Mas ele tinha que seguir em frente.

Não vou explicar toda a situação, porque você sabe de toda ela. Você estava lá quando recebi a notícias dos lábios dela. Estava lá quando fugi e deixei toda minha antiga vida para trás. Estava ali há cerca de uns dez minutos, quando o passado que fiz de tudo para escapar simplesmente apareceu, dentro de minha própria casa, para me confrontar. Você viu tudo, escutou tudo. Sentiu tudo. Sabe até tudo o que eu senti, tudo o que pensei. Talvez até melhor do que eu mesmo. Céus! Não sei nem porque eu estou fazendo isso.

Ele se levantou, fazendo algo que os mais tradicionalistas de sua religião achariam inconcebível: se sentou no altar, de uma maneira bastante informal, como alguém que puxa uma cadeira num boteco para conversar com um amigo.

- Sabe, eu sempre achei um saco toda essa atitude de servidão que seus seguidores assumem frente à Você. Isso é um eco de uma época de trevas que deveria ser deixado para trás. Você é meu Pai, meu Irmão, meu Amigo – talvez meu único amigo – então porque não posso Te tratar como um? Quem disse que devo me dirigir a Você sempre de cabeça baixa, ajoelhado, olhar suplicante – por que não posso olhá-Lo de frente, com orgulho de tê-Lo em minha vida? Por que tenho sempre que medir palavras? Se você já sabe tudo o que penso, digo e faço quando estou em qualquer lugar que não à frente de Sua imagem, é uma perda de tempo – para não dizer uma hipocrisia – assumir uma atitude que não tenho em nenhum outro lugar apenas porque estou em frente a ela. Sabe, eu queria mesmo poder ter Te conhecido pessoalmente – não como a maioria, que acharia o máximo ficar Te seguindo pelo deserto e escutando Seus sermões enquanto se debatem para tentar se aproximar e tocar Seu manto – mas para sair com Você, dividir um vinho e bater um bom papo. Você sempre me pareceu um camarada muito bom pra se bater um papo.

Ele ia, aos poucos, se soltando. Sabia que uma hora ou outra acabaria confessando sua dor. Afinal, estava diante do conselheiro perfeito: não o interrompe, não espalha o segredo entre os conhecidos, e é o único que pode verdadeiramente julgá-lo. Não que precisasse dizer aquilo a Ele, que já sabia de todos os seus segredos mais íntimos. Mas apenas através Dele conseguiria assumir aquilo para si mesmo.

Então, como Você já sabe toda a história, não preciso contá-la de novo. Isso só vai cansar Seus ouvidos, e acredito que você já esteja por aqui de lamentações de cornos, mal-amados e amantes frustrados. Tá, eu admito! Eles não fizeram nada de errado. Não havia como proibi-los de se apaixonarem um pelo outro – bem que eu gostaria disso! - e que eles só seguiram o amor que Você incutiu-lhes no coração. Talvez tenha sido esse o modo que você arranjou de abrir meus olhos para minha verdadeira vocação, me tirar de uma vida de futilidades e trabalho sem fim para colocar-me no caminho da servidão. Eu penso nisso toda noite, Você sabe. Mas, mesmo assim, eu não consigo perdoá-los. Por mais que eu queira. Por mais que admita que o único errado nessa história toda sou eu! Simplesmente não consigo. E isso é algo difícil, porque você sabe que eu acredito no perdão, acredito em segundas chances. De verdade. Mas o caso deles, por mais que me esforce, não consigo. Simplesmente não consigo. E eu sei que isso é minha danação. Sei que Você não pode me perdoar enquanto eu não perdoá-los; sei que você não perdoa ninguém que não tenha o verdadeiro perdão no coração. Sei que sou um servidor hipócrita, que vem aqui todas as semanas falar de amor e oferecer perdão, mas que tudo o que carrego dentro de mim é uma amargura mesquinha. Sei que vou queimar no Inferno por isso e, mesmo assim, não consigo achar forças para perdoá-los! Me perdoe, Pai, porque eu pequei...bobagem! Eu sei que eu nunca terei Seu perdão. Merecidamente. Sei que estou errado. Você falou isso claramente durante sua passagem por esse mundo; eu sei. Eu estudei e guardo em meu coração todos os seus ensinamentos. Mas por uma fraqueza besta, por mais que concorde com eles, não consigo segui-los. Sei que estou errado; que não tenho salvação enquanto não conseguir, eu mesmo, me salvar. E isso me mata. Eu sei que nunca vou conseguir me salvar.

A confissão estava feita. Já não havia mais nada a falar, a não ser esperar a penitência. Mas qual a penitência de um pecado que não pode ser perdoado? Não se lembrava de ter estudado nada do tipo durante os anos de seminário. Então, com a cabeça baixa, desceu do altar e começou a andar em direção à saída. Parou no corredor, a meio caminho entre o altar e a porta, e se virou novamente para a imagem crucificada, dessa vez com um sorriso no rosto.

Sabe, eu acho que começo a entender porque Sua palavra é tão deturpada. Tipo, a mensagem é simples, “amem uns aos outros”, então por que as pessoas tem tanta dificuldade para segui-la, não é mesmo? Mas você nunca foi humano – não por inteiro. Sempre houve aquela fagulha de Deus dentro de Você. Por mais que tenha nos criado e saiba tudo o que se passa dentro de cada um, não deve ter conseguido entender como o amor, algo tão simples e desprendido, consegue ser tão difícil e doloroso para nós. A condição humana nos torna maus amantes – e talvez por isso é que ninguém consegue entender Suas palavras, por mais simples que sejam. Afinal, se já morremos por amar uma pessoa, como conseguir amar todo o mundo, não é mesmo? Mas não leve isso muito a sério, é apenas uma teoria de um filho que não tem salvação. Nada pessoal.

Ele continuou então sua caminhada, girando novamente a chave e abrindo a porta que estava trancada. E, antes de sair, sem olhar para trás, achou que precisava fizer uma última coisa.

Parece que isso é algo com que nós dois teremos de aprender a conviver.

A porta da igreja então se fechou, e o clak da fechadura indicou que havia sido devidamente trancada.

O dia havia chegado ao fim.