AMIGO DE UM AMIGO DA ONÇA

Algo realmente perigoso é ter amizade com onças e igualmente melindroso é ter parceria com amigos de onças. Certa vez conheci os efeitos de uma amizade assim e foi quando descobri a grande importância de ter-se amigos verdadeiros e de ser amigo verdadeiramente confiável.

Uma noite de sábado, no tempo em que não havia internet, por não ter opção, eu voltara cedo para o hotel em que, por algum tempo, morei em Caxias do Sul. Imaginara que minha grande aventura daquele final de semana seria assistir ao Super Cine, Seção de Gala e Corujão até desmaiar de sono e acordar quase ao meio dia no dia seguinte. Antes, porém, de deitar em frente a televisão, fui dar uma volta de reconhecimento no restaurante do hotel.

Quando estava no restaurante e bar do hotel, para ver se via por lá alguém interessante, que, às vezes, se podia ver, o dono do hotel me apresentou um sujeitinho que comumente eu via por ali, mas nunca antes falara com ele. Apresentando-o, o homem perguntou se eu não desejava acompanhar o rapaz ao baile em Alta Feliz, na costa da Serra, há uns mais de cinqüenta quilômetros de Caxias do Sul pela BR 116. Na região de Feliz e Alta Feliz, como é nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul, as pessoas de origem alemã se divertem nos bailes coloniais de final de semana.

Pensei que poderia ser uma boa acompanhar o amigo ao baile, pois um lugar com bastante gente diferente traria grandes chances de fazer amizade. E, de mais a mais, até poderia pintar alguém interessante, talvez uma bela jovem alemã. Afinal, dizem que as alemãs gostam de homens morenos. Mas, se isso não acontecesse, o que, por ser muito tímido, eu pensava que não aconteceria, ainda assim valeria a pena aproveitar o passeio e conhecer um lugar novo e pessoas diferentes, embrenhando-me num interior onde eu imaginava que só mesmo o lobo mau moraria.

Depois de mais de uma hora de moto, serpenteando em meio a escuridão dos paredões que costeiam a descida de Caxias por Galópolis até o rio Caí, seguindo depois a planície à margem direita do rio até a cidade de Feliz, subimos novamente parte da serra por tortuosa estrada vicinal rodeada de mato até o salão de bailes à frente de um cemitério junto em um lugarejo.

Na verdade, jamais fui afeito a danças, discoteques e bailes e, chegando lá, logo vi que aquele baile seria como todos os outros, do tipo barulhento, onde não se pode conversar a não ser gritando, ambiente onde as pessoas, especialmente os homens, bebem muito, os indivíduos se esbarram, pisam nos pés uns dos outras, dão-se caneladas sem querer, estranham-se, exaltam-se e por muito pouco travam pelejas. Então optei por ficar de fora, aguardando à frente do salão o fim do baile e o retorno para casa na rua, caminhando para aqui e ali e indo vez ou outra andar entre os túmulos do cemitério, onde alguma briga certamente não me alcançaria. De vez em quando ouvia gritos, ruídos de pancadaria e quebra de cadeiras, sabendo notícias de que estavam acontecendo brigas. Algumas vezes entrei no salão para ver como estava meu novo amigo e vi cadeiras e garrafas quebradas e muito sangue respingado. Devem ter se dado duas ou três pelejas, mas o baile sempre prosseguia ao final de cada combate.

As horas duraram eternidades, até que, em torno de cinco da madruga, o baile terminou e meu amigo apareceu para minha felicidade e preocupação ao mesmo tempo, pois então me dei conta de que ele poderia ter bebido pouco ou muito e eu retornaria em sua carona. Mas, para me desgosto e pavor, pois imaginei que ficaria sozinho na escuridão, mas, ao mesmo tempo, também felicidade, ele me disse que ia subir mais um pouco a serra para levar em casa a “alemoa” que eu pensava que ele tinha conhecido naquela noite. Por sorte, ficaram por ali uns dez ou mais gringos (descendentes de italianos), entre rapazes e moças que, como eu e meu amigo, tinham vindo de longe para o baile de alemães, que sempre promete.

Por mais que quiséssemos, não tínhamos como ir embora, a não ser que caminhássemos até Feliz à, más não tínhamos a menor idéia de quanto tempo levaríamos para chegar. Alguém da vizinhança, porém, que passou de carro e a quem atacamos, nos disse que o senhor da segunda casa por ali tinha ônibus de frete e nos levaria a Feliz, já que éramos em tantos. Batemos palmas à frente da casa do tal homem e até conseguimos que acordasse e nos atendesse na janela, mas ele se recusou a nos levar antes que amanhecesse.

Ficamos, portanto, esperando o tempo passar. Quanto a mim, esperava, meio que sem muita vontade, que o amigo da moto retornasse de onde fora. Ele, porém, não retornava e eu começava me preocupar a medida que os gringos iam descrevendo as brigas que tinham de dado no baile.

Por volta de sete horas, o dia já começava a clarear e nada do meu amigo. Então aproximou-se de nós uma Kombi branca vinda de cima da serra. O alemão que desceu da Kombi veio à nós na frente do salão e nos informou que passara por algo intrigante, “um moto caído logo ali atrás, no curva do estrada”, disse ele. Indagamos se referia-se a um morto caído, pois não entendemos o que dizia. Mas ele esclareceu que vira um moto logo ali na última curva. Então perguntei: “Que moto?”. “Uma moto?” Ele respondeu: “Sim, um moto azul”. “Um moto azul caído na xon logo ali no último curva”.

Um moto azul não podia ser um morto, mas si uma moto (uma motocicleta). E azul era justamente a cor da moto do meu amigo. Já pensei mil coisas que poderia ter acontecido. Falei para os gringos que meu amigo tinha uma moto azul e que ele subira a serra para levar a namorada que arranjara no baile. Pedi que subissem comigo para vermos se era mesmo a moto dele e procurá-lo pelo mato se fosse o caso.

Fomos todos, inclusive as moças. Na curva em que o alemão disse, lá estava a moto azul do meu amigo jogada na arei a beira da estrada. Ficamos perplexos. Logo algum dos gringos sugeriu que ele poderia ser se metido nas brigas no baile e foi pego por vingança na saída. Assim, decidimos vascular todo o mato nas redondezas esperando encontrá-lo gravemente ferido. Por várias vezes fizemos o pente-fino em vários sentidos, desistindo de procurar e até imaginando que ele teria perdido o controle da moto bêbado e desistido de levá-la. Sem respostas, voltamos para frente do salão de bailes, onde o vizinho dono do ônibus já nos aguardava para levar-nos a rodoviária de Feliz.

Quando chegamos na estação rodoviária de Feliz já era quase nove horas. Me saparei então dos gringos, que tomaram ônibus para Farroupilha e eu tomei o pinga-pinga para Caxias via Feliz. No caminho fui pensando que talvez ele tivesse abandonado a moto por estar muito bêbado e com dificuldade para dominá-la. Dentro dumas, até comecei e pensar que valera mesmo a penas ter ficado sem a carona de volta, mas ter aprendido a lição de nunca mais me por na dependência de pessoa não muito conhecida. Até pensei que ao chegar a Caxias o dono do hotel e os demais amigos e conhecidos até diriam que tal atitude era praxe do indivíduo. Até cheguei a pensar que debochariam de mim por ter me deixado cair em tal pegadinha.

Todavia, todos ficaram muito impressionados, bastante preocupados e achando muito estranho, pois não tinham notícia de que alguma outra vez tivesse agido assim. Determinamo-nos, portanto, fazer todo esforço para encontrar o amigo. Fui ao escritório de minha empresa para ligar para delegacias de polícias e emergências de hospitais. Acionei mais alguns amigos, entre eles, a Graziela, que entrou com seu carro para transportar mais pessoas para o mutirão de busca. Antes do início da tarde já tínhamos formado uma grande caravana, com muitos amigos para fazer um pente fino maior ainda do que eu já tinha feito com os gringos pela manhã. Então descemos novamente a serra de Galópolis para subir para Nova Feliz. Pouco antes de onde hoje está o pedágio próximo ao rio Caí e a entrada para Feliz, há uma grande loja de artesanato e restaurante. Nesse local o comboio parou e o dono do hotel desceu juntamente com outros amigos para contar a uma mulher que ali estava que o fulaninho estava perdido, pois disseram que ela era a mulher dele.

Eu não teria contado, pois já vira que se tratava de um tremendo “enrosco”, pois ele saíra do baile com outra e estava visto que a do baile não era aquela.

A caravana seguiu, enfim, para a curva na estrada vicinal de Alta Feliz onde eu e os gringos de Farroupilha tínhamos visto caída a moto do meu amigo. Ela, porém, já não estava mais lá. Imaginamos que o alemão da Kombi teria avisado a Polícia, que teria recolhido a moto. Achando improvável encontrá-lo no mato, ainda assim fizemos um grande pente-fino, torcendo para não encontrá-lo ferido. E não o encontramos. Um dos que estavam conosco, porém, disse que o meu companheiro da moto costumava vir para aquela localidade, onde ficava na casa de uma jovem alemã. Eu não sabia disso. Achava que a “alemoa” da noite passada era casual, mas agora descobria que não era. Fiquei muito surpreso e já temendo a possibilidade de tudo não per passado de um grande golpe de leviandade do sujeitinho. Então eu teria mesmo pago um grande mico.

Continuamos, portanto, subindo a serra até no alto, onde encontramos um lugarejo. No lugarejo perguntamos por ele e fiquei surpreso ao ver que as pessoas por lá o conheciam. Fora sem necessidade minha reocupação quanto a possibilidade de o terem pegado por vingança na saída do baile.

Fomos informados de que ele estava em determinado lugar jogando futebol. Descrentes quanto a isso, pensando inclusive que a pessoa poderia ter entendido mal quanto a qual pessoa se tratava, fomos ainda assim ao tal lugar. Lá chegando, não o encontramos, mas fomos informados de que estaria em outro lugar, no qual nos informaram que eles estava na casa da “alemoa”, sem camisa, tomando uma cerveja e tocando violão.

Finalmente ao estacionar frente à casa da tal “alemoa”, vimos ele pela porta, sem camisa, tocando um violão e tomando tranquilamente um copo de cerveja.

Sinceramente, fiquei muito envergonhado por ter envolvido toda aquela gente nessa “maracutaia”. Não havia dúvida, porém, aquele era o cara pelo qual todos nós sofremos presumindo até que poderia estar muito ferido em meio ao mato. Ele, porém, tinha tal simploriedade que até me repreendeu por tê-lo procurado e organizado a busca, dizendo que não havia necessidade. Disse-lhe, porém, que, se saio com meus amigos volto com eles, ou os deixo em boa situação onde quiserem, não os abandonando jamais, muito menos de forma tão insidiosa quanto aquela. Disse-lhe também que se ele era um amigo assim, inclusive não admitindo que amigos têm que ser fiéis e dar satisfação uns para os outros, eu não fazia a menor questão de ser seus amigo e muito menos ir a qualquer lugar com ele.

Tomamos, portanto, o caminho de volta e, de regresso, paramos na loja de artesanato na BR 116 para avisar a mulher de lá que tínhamos encontrado o sujeitinho. Depois voltamos para Caxias do Sul, onde chegamos quase noite. Então procurei onde fazer minha primeira refeição do dia, retornando logo para hotel para tomar um banho e dormir finalmente.

Wilson do Amaral