( Meu pai e minha mãe quando se casaram em 28 de setembro de 1960 na Igrejinha do Chapadão do Pau-Terra. Minha mãe tinha 16 anos e meus pai 21)



(Meus pais e sua prole- foto tirada em 28 de setembro de 2010 quando completaram 50 anos de casados ( Bodas de Outro). A foto foi tirada em frente a Igrejinha onde se casaram no Chapadão do Pau-Terra (antes a Igrejinha era azul e branco. Numa reforma mudaram para essa cor de fundo( branco e verde). Hoje meus pais fazem 52 anos de casados e têm : minha mãe 68 anos e meu pai 73- A eles minha homenagem nesse dia especial. Lá no Chapadão hoje é dia de novena a São Miguel e São Sebastião. Saudades... )
 

CHAPADÃO DO PAU-TERRA

           Depois da curva a rodovia corta ao meio um arraial com cara de tempo. Dessa curva já se vê o telhado velho das casas também velhas, um pequeno bosque de eucaliptos que outrora não existia, o Grupo Escolar com sua algazarra de crianças, a Igrejinha, monumento que representa a fé do lugar e a devoção a São Sebastião e São Miguel e bem ao longe o velho cemitério.
             Não houve grandes evoluções desde que conheci este arraial. Analisando todas as histórias de seu passado, penso que regredira mais do que evoluíra. O movimento maior é oferecido por uma borracharia e um restaurante caseiro camuflado por um tosco boteco, parada obrigatória dos caminhoneiros que procuram calibrar pneus, forrarem o estômago ou aquecer a garganta e o cansaço de quilômetros percorridos. Além disso, e do movimento do grupo escolar, sede da nucleação desta localidade, o desenvolvimento é quase mínimo comparado a um tempo mais distante. Nos tempos de meus pais ainda jovens, havia até loja de tecido, materiais de construção, uma venda onde as pessoas das localidades vizinhas se supriam de mantimentos... Em dias de festa tinha até circo.
          Apesar das poucas mudanças positivas ao longo do tempo o arraial perdera muito de sua estrutura e o que se vê é apenas um lugarejo com cara de tempo. Quase ruínas talvez, que se sustenta nessas poucas evoluções e na fé quase ínfima ao padroeiro do lugar.
             Algumas casas desse arraial me parece ser as mesmas que conheci desde meu tempo de criança e seguem numa única fileira bordeando a rodovia. Algumas ruíram-se. Ainda se vê sobras de seus quintais cujo limite era um brejo. Algum pé de manga ou jabuticaba e um filete de água encoberto pelas folhagens ainda enfeita o que antes eram pomares requintados. Outras casas já não existem nem em ruínas e apenas a lembrança mostra o lugar onde um dia foram erguidas. Posso até vê-las, simples e baixas com o adobe avermelhado aparecendo nas paredes já descascadas. Entre elas a casa de Dona Nega do Juca onde ficávamos em dias de festa, da qual me lembro do forno de barro onde se assava biscoitos e a trilha que levava ao rego de águas límpidas. Ia me esquecendo do pé de amoras que fazia limite com a casa vizinha e onde meu pai deixara embaixo o carro de bois.
Depois tinha a casa de Dona Joaninha, quase de frente ao cemitério. Era rezadeira, mas dizia-se que ela fazia feitiço... Mesmo assim íamos sempre lá em dias de festa para visitá-la porque além de uma boa senhora ela benzia de quebranto e coisas assim. Eu me lembro do terreiro cheio de plantas, a maioria ervas para chá; lembro-me da sua voz grave, do café forte... Nada mais se vê no lugar onde se erguia essas casas. Apenas a lembrança me faz desenhar seus contornos opacos.
 Do outro lado da rodovia, já quase ao fim o arraial, avista-se a mais importante construção daquele arraial com cara de tempo: a igrejinha. Meio encoberta por um pé de Cedro, parece quieta na pacatez da vida que corre por ali. Talvez a razão maior deste ancestral vilarejo ainda estar de pé. Símbolo da fé que lhe sustenta talvez nessas mudanças drásticas trazidas pela mão do tempo. Sua brancura aparece quase irreal na quietude dos chapadões. Essa quietude silenciosa é quebrada apenas pelos sussurros do vento constante, a algazarra das crianças do Grupo Escolar e o movimento de caminhões, hoje maior que outrora por causa do asfalto.
              Penso que toda Igreja é marco de uma cultura. De um início. Essa igrejinha era o sinal da fé de um povo celebrada anualmente em festejos que duravam nove dias. Hoje já não é mais... Três dias já são mais que suficientes, pois a mente já foi corroída pelas traças mundanas. Antes vinham carros de bois de todas as redondezas para a festa e montavam barracas para os nove dias de festa. As muitas horas de carro de bois se transformaram em vinte minutos de automóvel hoje e mesmo assim poucas pessoas aparecem por lá. Então vejo que os valores se transformaram. A distância ou tempo já não é desculpa para a cultura e a fé que, pelo visto, se perdeu ao longo dos anos. Será que elas também são mutantes? Acho que sim.
               Mas aquela Igrejinha do arraial ainda sustenta resquícios de fé e, apesar de centenária, parece que ainda se abre para o mundo num sorriso quase tão largo quanto à rodovia que segue ao seu lado. Nas janelas que mais parecem grandes olhos, entra sempre a brisa que é costumeira por ali e se adentra pelo seu interior cheio de mistérios escondidos no altar de madeira e pintado de azul. Em dias de festa o altar ganhava toalhas brancas bordadas e flores de papel crepom nos seus vasos. Por essas mesmas janelas saía o som de um sino que badalava em dias de festa. Seu som repercutia em ecos, entrando pelas portas sem pedir licença e anunciando a novena ou o padre que chegara. As pessoas se apressavam...
Vestiam-se as melhores roupas. Moças enfeitavam-se com esmero. Naquela noite de novena iluminada por duas fogueiras de três metros de altura, talvez o destino lhes sorrisse e no ano seguinte quem sabe se casariam ou batizariam o primogênito. De um alto-falante ouvia-se a voz do locutor que lia as declarações dos namorados ou jovens que se antecipavam ao destino dando-lhe um empurrãozinho. Às vezes ele tem maneiras não muito claras de agir. Depois as músicas se misturavam no ar, com o vento e o calor da fogueira que iluminava a noite. Algum leiloeiro andava entre as pessoas ofertando pratos de quitandas, frangos ou leitoas assadas e cartuchos enfeitados cheios de amendoim torrado. Depois se dançava até de madrugada.
              No domingo antes da missa o padre atendia as confissões, celebrava os batizados e casamentos. Nessa igrejinha meus pais se casaram justamente no dia vinte e oito de setembro de 1960. Esse episódio minha mãe conta como se fosse um conto de fadas vivido. Formulo as cenas: meu pai de terno azul e minha mãe resplandecente em seu vestido branco, selando para sempre sua união diante do velho altar de madeira, enquanto os olhares de admiração se estendiam sobre eles. Depois para a festa, meu pai vestindo um terno verde e minha mãe radiante em seu vestido de seda azul com flores estampadas em um leve alto-relevo na mesma cor azul.
No ano seguinte, também nessa mesma ocasião (28 de setembro) e nessa mesma Igrejinha minha irmã mais velha foi batizada. Depois eu e ainda mais quatro irmãos...
              Bem... Depois de celebrada a Santa Missa, os fiéis saíam em procissão. Era algo belo de se contemplar. Crianças vestidas de Anjo, São Sebastião ou São Miguel inquietavam-se com os pezinhos descalços sobre o cascalho. A mente infantil com certeza não compreendia o significado de vestir uma túnica branca e longas asas cobertas de penas simbolizando um anjo ou um calção vermelho simbolizando o mártir São Sebastião, mas certamente a mãe fervorosa conhecia bem a graça recebida...
                Dois andores eram levados ao ombro bem no centro da procissão. O andor enfeitado de cetim e flores de papel na cor rosa levava o Arcanjo São Miguel, o chefe dos exércitos celestiais. No outro andor a cor vermelha destacava-se em toda a sua plenitude e sobre ele São Sebastião vergava sua postura de soldado de Deus. Sim, era belo contemplar essa cena santa. Do alto pareciam abençoar a multidão que lhe rendia devoção e seguia lentamente atrás da cruz que liderava a procissão em duas fileiras de homens e mulheres.
Essa procissão circundava a igrejinha e passava bem perto dos vales azulados e defronte ao cemitério. Um olhar perdido ou receoso encarava esse único espaço triste do arraial. Mas era tudo silencioso ali naquele recanto, onde apesar da impressão sinistra reinava a paz. Até o cascalho que estalava debaixo dos pés dos que passavam parecia silenciar. As vozes tornavam-se pausadas em sinal de respeito às almas ou talvez para sentir melhor a saudade que sussurrava qual o vento. Muitos antepassados desse arraial descansam ali, entre eles minha avó e avô maternos.
               Terminada a procissão estouravam-se alguns rústicos fogos de artifícios que riscavam o céu. Da porta da igrejinha o Padre abençoava as pessoas e apresentava os novos festeiros. Depois se serviam-se doces e biscoitos. A tarde que chegava prenunciava o fim daquele dia de devoção. Com pesar despediam-se uns dos outros para no ano seguinte se encontrarem, enquanto ali defronte à igreja ficava apenas a saudade antecipada misturada ao vento e às cinzas das fogueiras erguidas na última novena.
               Agora nessas viagens que tenho feito, numa curva qualquer da estrada que tenho seguido fico recordando deste arraial com cara de tempo. Vejo ao longe as serras de um verde quase azulado. Elas completam o cenário desde lugar. Um vento sopra sempre. Às vezes suave. Às vezes forte. Sopra mais forte em setembro na época da Festa de São Sebastião e São Miguel. Ele vem junto com as primeiras chuvas da primavera cortando os chapadões com seu sopro invisível e trás um friozinho junto com uma cerração que cobre as serras. Em dias como hoje a cerração cobre a Igrejinha, pois cai uma chuva mansa sem cessar e o mundo parece coberto por um manto branco. Ainda agora eu senti um friozinho. Mas penso ser de saudade...  

(Escrito 28 de setembro de 2005)