A casa das minhas avós ficava no sopé do monte santo, de onde deriva o nome da aldeia Monsanto.
Ao cimo o castelo, em ruínas desde que explodira o paiol da pólvora. Os penedos tinham rolado encosta abaixo, esmagando tudo.
Conta-se que apenas se salvou uma mulher, que se abrigou sob o umbral da porta.
No terreiro da casa, contra a parede da casinha do forno, apoiava-se uma pia baptismal, de granito negro e gasto, tão gasto que apenas se viam uns ténues adornos.
Era talhada numa única pedra.
Na capela do castelo, entre as ervas, vislumbrava-se o lugar de onde viera.
Era um lugar solitário, sem loureiros, chamado Louredo.
Em volta da casa, de dois pisos de granito, com balcão e escadaria, inúmeras dependências: palheiros, cabanais, arrecadações, onde pernoitavam as cabras, as burras,
as galinhas, patos, perus, que chegavam em fila ao anoitecer e entravam por um buraco, que se fechava com um tronco (que ali se diz "toco"), por causa das raposas.
Mais abaixo, a coelheira e ao fundo, a furda dos porcos.
As chaves, que a minha bisavó usava penduradas na cintura, eram enormes: a minha mão cabia na argola de cada uma.
Não se sabe, de tão negras, se ainda rodariam nas caixas das fechaduras.
As portas estavam abertas, à noite fechava-se o trinco, que se abria premindo ao de leve a patilha redonda.
Além dos terreiros, onde as galinhas ciscavam, ficavam as hortas, os pomares, as vinhas.
Plantados a esmo, seculares sobreiros, cuja cortiça era a forma de se transformar a natureza em ouro vivo.
Os poços com noras ou cegonhas, os tanques de rega, as calhas de pedra limosa por onde a água corria, tão límpida que à sua beira cresciam todas as espécies de ervas.
Eram agriões, azedas, salsa... e a minha avó cozinhava um empadão de rabaças enquanto o forno, onde o pão crescera e tostara, por fim arrefecia.
Por ali se entretinha a menina desvalida.
Para onde fosse, levava um livro.
Por esse tempo lia muitas histórias de princesas, de gigantes e de fadas... as leituras ainda recomendadas por minha mãe, que se fora na primavera, amortalhada no seu vestido de noiva.
Por haver muito em que pensar, ninguém se lembrou de me matricular na escola.
Cheguei com um ano de atraso e penei lá quatro, sentando-me na classe que me apetecia, pois tudo o que lá se ensinava já eu antes aprendera.
Foi a primeira vez que contactei com outras crianças, entenda-se: Meninas!
Na sala de aulas, Salazar à direita, Américo Tomaz á esquerda.
Nos livros, Salazar na primeira página, Américo Tomaz na segunda.
Eu não sabia brincar a imitar a mãe a tratar de bebés nem a fazer jantarinhos em tachos minúsculos.
Inventara os meus brinquedos recortados em papel, as mulheres de saia, os homens de calças.
As figurinhas mais pequenas eram as crianças.
Pegava o que tivesse à mão: achas, folhas, pratos e chávenas... e no nicho do armário de canto, montava o cenário.
Desenrolavam-se naquele palco milhentas histórias... viviam vidas intensas, aquelas personagens!
Quando cheguei à escola, não me entendia com as outras meninas!
Inventava jogos e cantigas, que lhes eram tão estranhas como me eram estranhas as suas brincadeiras.
Teimosa, ficava na minha... mas elas eram mais e maiores e eu, a orfã e a mais pequena, apanhava cada sova!
Tive uma amiga, a Amélia.
Morava muito longe, tinha muitos irmãos.
Depois da escola, ai dela que aparecesse em casa sem lenha!
Ora no terreiro do Louredo, havia enormes montes de lenha rachada pelo Vicente, que trabalhava de sol a sol em troca de quase nada, um litro de azeite e um cálice de água-ardente.
Deveria levar o dia inteiro a sonhar com as caretas que havia de fazer quando o líquido lhe fosse servido. Era o seu único mimo, além da onça de couro onde guardava um pouco de tabaco e o livrinho das mortalhas.
Encostava-se ao cabo da enxada e tirava dos bolsos os seus tesouros.
Mirava-os bem.
Com as pontas dos dedos, separava um papel fino, tirava uma pitada de folhinhas do fundo da onça e enrolava-as com muito cuidado. Passava a ponta da língua no bordo da mortalha, os dedos no cigarro perfeito e acendia-o por fim, com um fósforo de cera.
Regalava-se.
Eu e a Amélia tínhamos um segredo: ela ia brincar comigo e depois tirava do monte da lenha o suficiente para que nem a mãe lhe batesse, nem a minha avó desconfiasse.
E ficávamos metendo as mãos nos espaços deixados entre os troncos, onde por vezes achávamos ninhos.
Tirávamo-los com cuidados infinitos, para vermos os ovos, os filhotes, se os houvesse, e depois, sem estragar, colocávamos tudo de novo no sítio... ignorando que a mãe pássaro nos espiava do alto e, vendo o ninho descoberto, nunca mais lá voltava.
Brincávamos a erguer casas de pedrinhas equilibradas umas sobre as outras, com jardins cheios de flores.
Trocávamos segredos acerca das mulheres que víamos de barrigas gordas... e depois, sem mais nem menos, de novo magras e com uma criança nos braços.
Tanto matutámos que concluímos estarem os bebés nas barrigas... mas como apareciam cá fora?!
Como iriam lá para dentro?!
Dizia-se que se bebesse água de um poço onde houvesse bolhas, nasciam rãs na barriga... Mas bebés... ?!
Amélia passava fome, o que era tão comum que não causava estranheza.
Os comeres eram pão com azeitonas e os mimos “batatas guisadas com coelho a fugir na serra”.
Um dia a ceia de Amélia eram feijões guisados.
Ora nem a fome mais negra a fazia suportar o sabor da cebola refogada.
Junto da lareira acesa, debruçou-se a menina, para escolher feijão a feijão, à luz fraca da candeia.
Fosse da fome ou do enjoo, a verdade é que caiu sobre o lume e ardeu como uma tocha viva.
Tiraram-na e levaram-na a correr, para o hospital do concelho.
Três dias depois, morreu.
A mãe foi buscá-la, a pé. Eram muitos quilómetros por caminhos desertos, com a filha morta enrolada num xaile, debaixo do braço.
Não chorou senão perto do povoado.
Quem andava na faina e a viu passar soube depois que o seu pequeno fardo, era a filha morta.
Censuraram-na durante muito tempo: Que fingia, que ficara aliviada por ter menos aquela boca para sustentar.
Foram de casa em casa pedir roupa para amortalhar Amélia.
Pela primeira vez seria bem vestida e calçada.
Pediram-me um par de peúgas brancas.
Não entendi. Vira sempre a minha amiga descalça, porque iriam agora calçá-la?!
Por uma vez na vida, a minha avó sentou-me em cima de uma arca e falou mansamente:
- Tu não te ralas de dares umas peúgas à Amélia, coitadinha, pois não?
À noite fomos velá-la.
Deitada sobre um lençol, no chão, finalmente vestidinha e calçada, nem parecia a mesma!
O rosto, intacto e branco, era de perfeita paz.
No dia seguinte, peguei, com outras companheiras, numa das asas do caixão, chorando como, ao recordá-la, ainda hoje choro.