O triste fim de uma distorcida inexistência
Não se pode ficar doente, quando já se está morto...
Não se pode chorar, quando não há pálpebras...
E nem gritar quando se perdeu as cordas vocais...
Pensando nessas frases, ela permanecia sentada no parapeito da janela, os olhos secos e vermelhos dilatados, a boca fechada em uma linha dura, fechando os olhos por um instante ela podia ouvir claramente o som dos carros se movendo velozmente na avenida abaixo, pessoas conversando, o vento balançando as poucas árvores ao redor. Abrindo os olhos ela podia observar, se inclinando um pouco, todo o caminho dos treze andares abaixo, sabia que se ela apenas se inclinasse mais um pouco, seria acolhida eternamente, num abraço letal.
Ela não se importava com isso, na verdade aquilo era o que ela poderia querer que acontecesse, se sua mente não tivesse tão vazia quanto seu coração.
Poderia pensar em tudo que a levara até ali, poderia se lembrar claramente de cada maldito dia de sua infância, quando tudo que ela queria era correr no parque e aprender a andar de bicicleta com seu pai, e tudo que podia era ficar trancada em seu quarto enquanto ouvia os gritos, ou abraçar o corpo quase desfalecido de sua mãe dopada com a tarja preta.
Ela culpou todo o mundo e depois culpou a pessoa que mais amava, culpou até a si mesma, mas daí se cansou, desistiu, era pesado demais carregar toda a dor e culpa de sua propria desgraça, também era difícil guardar o veneno que era culpar os outros e definitivamente se fosse viver em um mundo onde todos eram os vilões, ela não queria ser a mocinha idiota.
Virou para trás por um instante se desequilibrando ao ouvir o barulho de vidro caindo da mesa, seu gato Ninguém derrubara a garrafa de absinto enquanto caminhava sobre a mesa bagunçando tudo que havia ali. Ela não sentiu pela garrafa que caíra, nem tinha mais vontade de bebê-la. Também não se importou se Ninguém havia se machucado e não queria brigar com ele por estar em cima da mesa.
Voltando o olhar para o horizonte podia ver as nuvens escuras do ar poluído de São Paulo, pensou no que aconteceria se caísse dali, talvez aquela fosse a coisa mais importante que faria em sua vida, a única coisa que realmente faria.
Mas já não havia vontade, nem dor, nem tristeza, nem amor, o que havia? Ela não sabia.
Simplesmente não sentia nada. E ela nem bebera ou usara qualquer substância quimica. Apenas parecia haver um buraco profundo em seu peito, como se seu coração não tivesse mais lá, mas se tentasse pensar por um minuto, veria que o vazio era duplo, será que também perdera o cerebro?
Quem sabe no meio da noite, coelhos tivessem se juntado para lhe fazer uma lobotomia.
Ela poderia pular agora,mas sabia que não faria a menor diferença. Mas o que faria diferença? Porque nada faria a diferença pelo que sabia. E ela tentara, inumeras vezes.
Mas primeiro foi a angustia, depois a insegurança, o medo, sempre havia algo e isso sempre culminava em não ter absolutamente nada.
Ela não tinha nada, lhe faltava tudo.
Perdera-se em medos, quando ainda os tinha, perdera-se em perder-se simplesmente. E perdeu-se tão bem até de si mesma, que não sabia como voltar. E não podia sentir o instinto do coração que não tinha. E não podia seguir o raciocinio das massas cinzentas que também sumira. Então deixou pra lá, cansou, desistiu.
Quando se deu conta que o fim não estava proximo, ele já estava lá, ela o deixara entrar descaradamente e escandalosamente, se importou, se revoltou, se machucou, mas com o tempo doeu menos, e agora já não importava mais.
E a sua existência era nada, assim como de todos os outros, mas ao menos os outros eram preenchidos de essência e ela nem isso.
Não se pode ficar doente, quando já se está morto...
Não se pode chorar, quando não há pálpebras...
E nem gritar quando se perdeu as cordas vocais...
E não se pode ouvir as sirenes com o ouvido sangrando.