Os olhos de Camões

Seu único olho, inquieto, revolvia visões passadas à busca de uma imagem amiga. - Por que a bonança tem-se apartado de mim?, perguntava mentalmente. Doente de peste e pobre em nada parecia com o homem que viajou o mundo e conheceu as belezas ultramarinas. De Ormuz a Goa, de Macau a Ceuta ele conhecia tudo, os acidentes geográficos, as praias, as montanhas, os costumes, as gentes... E o melhor: as mulheres. Vem-lhe à mente amores passados: Catarina de Ataíde, D. Maria... Dinamene... E ao lembrar desta beleza asiática seus olhos buscam, em vão, represar as lágrimas, como se fosse possível reter a fúria do Mekong.

De repente, alguém entra no quarto. Era Jau, seu escravo com outro lençol para cobrir-lhe. Soubera do desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e da anexação de Portugal à Espanha. Desde então sua saúde vem piorando e sempre pergunta a Jau notícias da política. - Jau, além de um lençol novo, trazes boas novas? - Não, meu amo, Felipe II, reina soberano. Volta seu olhar, então, ao teto do quarto como a lembrar algo bom. Recordava o tio Bento que lhe proporcionou estudos e assim ingressar na Corte de de D. João III, onde conheceu a infanta D. Maria e, também, Catarina de Ataíde. - Eu era tão jovem e não entendia os perigos que poderiam advir, pensou. Lembrou de encontros furtivos, bilhetes, cartas... Sua ida ao Ribatejo e depois a Ceuta, onde alistou-se no exército eram necessárias.

Ceuta... - Malditos mouros!!! Esta exclamação quebra o silêncio e desencadeia uma crise de tosse. Jau vai ao seu amparo. - Deixe-me Jau, nada se passou. Lembrara do dia em que perdeu seu olho no campo de batalha e da dor lancinante experimentada. Depois o regresso a Lisboa, a prisão, como conseqüência de entrevero com Gonçalo Borges, servidor do Paço, e, novamente, o serviço militar. Nada lhe escapa à memória.

Continua a revolver as memórias. Jau se ausentara. Sua chegada à Índia de costumes e gentes tão díspares de tudo que houvera visto. - Quantos perigos experimentam nossas naus a atravessar o Bojador. Fora mister muita têmpera e fé.

- A vida militar nunca alterna rotinas; sempre as mesmas ordens, pensara.

- "Passamos inda além da Taprobana" e atingimos Macau, aquele deserto chinês, recordara.

- Administrar bens de defuntos e ausentes em recanto esquecido do mundo e ainda ser acusado de prevaricação e apropriação indébita, lembrara e outra crise de tosse se lhe acomete.

Com a eficiência própria de um escravo oriental, Jau prontamente vai ao seu auxílio.

Dinamene volta à sua mente e ele abre um sorriso. Jau se retira discretamente.

- Formosa flor d'Oriente, quase pronunciara. Os momentos em que passava a seu lado lhe povoaram o cérebro de ternas lembranças. A sua sutileza, inteligência, seus modos meigos... Sua presença... "Alma minha gentil que te partiste...", fala e chora.

De súbito, a correnteza do Mekong, as pedras, as últimas palavras de Dinamene à foz do rio, "Os Lusíadas"... Tudo lhe revolve a cabeça como a pior das tormentas.

- "É solitário andar por entre a gente", brada com fúria, o que piora as dores das pústulas. Jau, à porta, acorre em seu auxílio com o medicamento para minorar-lhe as dores.

- Jau, como escolher entre dois elementos que nos faz viver?

- Não sei o que dizer, meu senhor.

- Não te preocupes, a pergunta era retórica.

- Ah! Quanto de vida já experimentei... Diz, como a mudar o rumo da prosa e numa mesura pede para ficar só com suas memórias.

Recorda do amigo Diogo do Couto. - O que seria de mim e d'Os Lusíadas sem a intervenção de Diogo?

- O retorno a Portugal após o cárcere em Moçambique e aquela vida de infortúnios, pensou... Devo a Diogo. Os Lusíadas serem publicados devo, antes de tudo, a ele.

Bate de chofre a lembrança de D. Sebastião, a quem fez a récita d'Os Lusíadas, encantando-o com a riqueza de detalhes das conquistas épicas lusas. E ao ensejo da lembrança de D. Sebastião, recorda-se a situação política de Portugal: - Indignidade do destino para com Portugal, fazer-nos vassalos de Felipe II d'Espanha, pensa melancólico.

- Tristes tempos estes de então, onde a bravura se esconde acovardada e as conquistas são olvidadas.

Chama Jau e pede um copo com água. Deita e as dores que as pústulas lhe provocam parecem insuportáveis. Como de costume Jau emprega o medicamento, mas o olhar do vate queda estático a mirar o teto e as visões de mares, naus, mapas, selvas e tormentas encontram a última calmaria.

(Danclads Lins de Andrade).

Danclads
Enviado por Danclads em 12/09/2012
Reeditado em 13/09/2012
Código do texto: T3878504
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