Gravidade Por Todos os Lados
Calor. Atraso. Ela sempre está atrasada, esbaforida. Eu também, mais cedo. Inalo o cheiro que se desprende de seus cabelos recém-lavados, de seus poros abertos; observo as gotículas de suor no buço e deliro, delírio que nelas mergulho, me perco, me afogo, e sacio essa sede de mortandade que sinto quando estamos próximos - tão próximos quanto distantes. Seu rosto, enrubescido, continua inexpressivo. Andar por andar, subindo, minhas pernas tremem, minha boca seca e ela continua assim: inexpressiva, atrás desse wayfarer. Com esses panos encardidos protegendo as paredes das sujeiras da obra de um andar qualquer, não existem espelhos para que fiquemos mais à vontade - um cubículo com duas pessoas; o silêncio irrompido pelo gemer dos cabos de aço e pela respiração que sai desta boca à minha frente, boca emplastrada de batom, batom vermelho vivo.
A boca se move:
- Não vai descer no seu andar?
- Que andar? - Devolvo perplexo demais pra pensar.
- No nono. É o que você desce todo dia, não é? Esqueceu de apertar. - E encolhe os ombros, repentinamente tímida.
- Ah, sim, não, não, é meu andar, sim, mas hoje vou para o vigésimo.
- O que tem lá? Ouvi dizer que é fechado...
- Tem chão, lá.
- Chão!?
- É, chão. O chão do terraço, onde eu deito e observo os urubus até que pego no sono.
Ela ri, sorri.
O elevador dá um pequeno solavanco. E para. A porta se abre. Ela tira os óculos. (Espero uma piscada seguida de um olhar parafusante, uma dedada no botão que fecha as portas, uma encurralada num dos quatro cantos e um beijo intenso, imenso, suado, molhado, melado...).
- Até mais! - Ela diz. E sai. Porta afora, vai, enquanto a perscruto dos pés à cabeça.
Recosto-me num canto enquanto a porta fecha e a caixa metalizada fica parada, suspensa dezesseis andares, esperando algum comando.
- Puta que o pariu... - Gemo baixinho, apertando o vinte verde.
Deito no chão e não consigo me concentrar nos urubus. Bichos lindos, mal compreendidos. Taciturnos. Me levanto e recosto no parapeito. As formigas lá embaixo se arrastando miseravelmente sem destino, sem rumo, sem nexo, sem sentido, sem alma; atravessando a rua no farol prestes a se abrir, dando suas corridinhas ridículas, se matando, se odiando, se ignorando e guardando dentro de si cancros de sua humanidade deteriorada. Eu, aqui, arrimado nos cotovelos, bocejando, tendo a testa tostada por não ter coisa melhor a fazer, parecendo um adolescente do Ensino Médio apaixonado pela menina mais bonita da escola.
Desço onze andares de escadas espiraladas. Meu joelho esquerdo estalando a cada degrau, meu joelho direito esquisito a cada degrau. A idade chegando. Sento na frente do meu computador e o sol, inclemente, vai escorregando pelo oeste até desaparecer.
No dia seguinte, a mesma história: eu, desinteressado, esperando o elevador. Ela chega, pior do que o dia anterior: mais deslumbrante. Já não estava mais tão calor assim: ventava gelado. Não tem boa tarde, nem nenhuma outra trivialidade protocolar. Finjo que não me importo, porque dentro de mim, sim, algo faz com que a pele pinique, incômoda, incomodada por alguma lacuna incognoscível. Talvez eu esteja, por demais, querendo agarrá-la. Talvez eu devesse passar menos tempo fugindo de mulheres que sabia que não resultariam em nada que prestasse, já que elas eram as únicas que se sentiam atraídas por mim. Porque quando aparecia uma assim, amigo, eu não me controlava; ficava completamente apto a cometer atrocidades para minha integridade moral, para o meu ego e para meu amor-próprio.
A porta abre e saem as pessoas do andar dela, se despedindo com um aceninho, com um meneio de cabeça, com um "tchau" entrecortado. Seguro a porta. Ela entra. Nem agradece.
A porta se fecha e ficamos lá, os dois, parados, suspensos no térreo em uma caixa metalizada, com uns panos sujos protegendo as paredes da sujeira dos pedreiros que trabalham de madrugada.
- Para onde vamos hoje, doutor? - Ela pergunta.
Dou de ombros. Aperto o vinte. O vinte verde. Um solavanco de gratidão por parte das roldanas. E subimos.
Ainda não nos olhamos nos olhos - estamos encostados na mesma parede. Emparelhados.
Rastejamos verticalmente.
Saltamos no vigésimo. Subimos mais um lance de escada. (Eu na frente). Estamos no terraço.
- Uau! - Diz ela, visivelmente impressionada.
- Que há?
- Que vista!
Estalo um muxoxo, ensaio um sorriso débil, fraco: prédios. Apenas prédios. Para onde se olha: prédios. Cinzas, amarelos, de arquitetura obsoleta, de arquitetura pretensiosa, inovadora; apenas pilhas bem empilhadas de concreto, aço, ferro, vidro e merda, merda entupindo todos os encanamentos de todos os malditos prédios; merda descendo e saciando o insaciável e coprofágico monstro Terra. A graça está no céu.
- Isso me lembra o trecho de um livro - Comentei - "A imensidão do tempo-espaço acima de nós nos fará pó, e a gravidade abaixo de nós nos definhará. Nada somos. Somos nada".
- Nossa, forte! De quem é?
- De um amigo.
- Ah, sim... - Concordou ela, não totalmente satisfeita com a citação do tal autor meu amigo. Recostou no parapeito, exatamente onde, 24 horas antes, eu estive encostado. Suspirou. - Sabe? Esse lugar me lembra a cena de um filme...
- Mesmo?
- Sim... Old Boy!
- Oh, claro, claro. A mim também.
- "Who the fuck are you?"
- Às vezes é bom nem sabermos quem somos.
- Quanto menos ensaiar um esboço para os outros.
- Sim, sim.
- Ficamos mais interessantes quando não somos apresentados às pessoas que, de alguma forma, idealizam ou idealizaram coisas sobre a gente.
- É...
Senti a indireta na alma.
- Posso te dar um abraço? - Pediu ela.
- Hum!? - Pisquei umas trinta vezes - Pode; claro.
Aproximou-se. O cascalho sobre seus pés gemendo, passo após passo. As pernas brancas sob o tecido jeans vermelho. Uma música qualquer tocava na minha cabeça. Não sei qual, mas era violão e voz. Acima de nós, passou uma borboleta, meio atrapalhada com o vento, mas firme e convicta na direção que ia.
Abraçamo-nos. Afundei os olhos fechados em seus ombros. Funguei seu perfume. Suas mãos, leves, alisaram meus cabelos. O abraço pareceu dizer mais do que qualquer coisa antes dita por alguém: nossas bocas foram atraídas uma à outra feito lua e mar. Ventava, ventava, ventava. Beijávamos, beijávamos, beijávamos - essa entrega cega aos meandros hormonais. Sequer sabíamos o nome um do outro.
Paramos. Afastamos as bocas. Devagar. Olhos nos olhos. Boca borrada, já não tão vermelha. Sorriu. Deu selinho. Pediu:
- Quero deitar no chão com você e olhar os urubus!
Deitamos. Me atrevi a perguntar:
- Você não vai entrar no trabalho hoje?
- Hoje entrei no horário da manhã...
- Então...
- Sim. Apareci no elevador no horário de sempre porque sabia que você estaria lá, me esperando, como sempre.
- Eu? Te esperando? Tá se achando, né?
- Confessa!
Grunhi em afirmação, contrafeito. Ganhei um beijo.
- Qual é o teu no...
- Shhhiu! - Colocou o indicador atravessado na minha boca - Ainda não!
Continuava sem entender o que estava acontecendo. Talvez estivesse sonhando. Assenti, resignado. Mirei o céu.
As nuvens acinzentadas, sombrias, corriam velozes acima de nós. Não haviam urubus a serem contemplados, admirados e invejados.
E eu estava apaixonado e com o gosto da boca por/de alguém que sequer sabia o nome.
06/09/2012 - 17h00m
Milo Greene – 1957