CABEÇA VAI ROLAR

Hoje perdi novamente a cabeça. Vi-a rolando pela sala junto aos pés dos alunos de 8 anos.

Eles nada perceberam, pois permaneciam ocupados em seus risos e brincadeiras. Rolou e meus olhos registraram uma sucessão de teto parede piso parede teto, até repousar com a orelha esquerda na parede, no fundo forrado com trabalhos da turma do período contrário: CORPO HUMANO.

Não podia observar meu corpo, mas entre os pequenos pés que vagueavam e passavam rente minha narina, vi apenas minhas chinelas de couro e meus dedos colados nelas como se não houvessem vida.

Imagino, e como posso imaginar?, que meu corpo em pé diante os alunos, como de hábito, permanecia observando a evolução da sala. Minhas mãos provavelmente estariam agitadas, dentro dos bolsos largos meus dedos fariam movimentos cíclicos, agitados roçariam entre si provocando suor.

Senti, e por que ainda sinto?, um pedaço de papel ameaçando bater em minha cabeça repousada. Prenuncio que ou a guerra foi declarada e logo choveriam outros tantos papéis naquele campo ou a partida foi iniciada e logo pés afoitos tornariam a minha sala em campo de futebol de bola de papel. E fiquei com medo. Não sei por que sentiria. Algum desavisado poderia acertar minha cabeça. Ou simplesmente eu, já que sou agora a cabeça.

Eu já recebi, em minha profissão, vários objetos OVNI: OBJETO VOADOR DE NOJENTOS INDISCIPLINADOS.

A arte de ser alvo não é nova. É milenar. O lugar preferido são as partes traseiras. Com sua lógica inegável, a melhor maneira de não ser flagrado. E não pense que o ataque é feito puramente sem regra, sem consciência, sem arte. Eles preferem a nuca, as costas, as ancas gordas e o topo da cabeça.

O negócio mesmo é com a minha bunda, ou a bunda que era minha. Uma bunda gorda, africana, herança de minha família. Sou um alvo favorito.

Sei que, há muito, minhas nádegas foram cravejadas com pedaços de borracha, chicletes, pontas de lápis e papeizinhos molhados. Que ódio que tenho dos papeizinhos molhados. O que mais ódio provoca é a saliva que sou obrigado a entrar em contato.

Fico muito irritado e grito:

-Cabeça vai rolar.

Todas as crianças param. Parecem terem ouvido minha voz. Olham todas para meu corpo, estático sem cabeça, de pé diante deles. Como meu corpo não promove nenhuma reação, aos poucos as crianças retornam à suas algazarras.

E eu, cabeça? Encostada na parede do fundo da sala, terei que esperar novamente o fim do turno para a servente fazer a limpeza e colocar tudo de volta no lugar.

Professor Valdir Lopes

26/09/2012

valdirfilosofia
Enviado por valdirfilosofia em 02/09/2012
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