PESSOAS "DIFERENTES" (DE FATO, EXISTE ISSO?)

RUBEMAR ALVES

Os primos e os amigos não foram educados ‘conhecendo’ preconceitos (idiotas!) e racismos (imbecis!).

Em família e na vizinhança não havia seleção e cada bebê nascido era festa de todo mundo.

Do pessoal mais antigo no lugar, antes da guerra mundial, estrangeiro era só o marido de uma das mulheres, brasileira casada com alemão, nome até “traduzido” para o português. Impossível que o chamassem de Herr Franz Karl... virou simplesmente Senhor Carlos - não louro nem olhos azuis, filhos logicamente morenos, cabelos e olhos escuros.

Tempos depois, no meio do curso primário, é que ouviram falar preconceituosamente que ‘fulano é preto, fulano veio da Itália, fulano é filho de mãe solteira’. E daí?

Garotada geralmente repete pensamentos e atitudes dos pais e avós. Quem não foi (des-)educado assim, tinha a alma bem mais leve. Não perseguia, não se sentia perseguido.

Durante algum tempo, de um lado o grupo do alemão Tio Carlos que “se misturava com todo mundo” e de outro os que se sentiam superiores, seletivos, até um certo dia em que, literalmente ‘sermão encomendado’ pelo diretor da escola pública, em missa festiva no pátio, o padre do bairro, ele mesmo um negro de Angola, arrasou com a garotada de nariz para cima e passaram a sentir o país como sendo e tendo um grande povo, não importando pequenas diferenças.

Cresceram – escolaridade maior daí para a frente.

Ora, a pracinha mais parecia uma pequena ONU, tal a quantidade de estrangeiros que por acaso vieram pouco a pouco ali residir.

A guerra ficara apenas como um passado vergonhoso, e alguns novos brasileiros arrumaram emprego nas fábricas do bairro, facilitando até o almoço em casa.

A garotada em geral brincava no gramado, correndo ou trepando em brinquedos de madeira e metal, meninos e meninas. Logo, fluentes em português.

Quase meio dia: banho e depois sala de aula!

Pai francês chamava os filhos assobiando pequeno trecho da Marselhesa. Um judeu polonês assoprava apito três vezes. Sueco não dava uma única palavra, apenas sacudia uma bandeira amarela e azul. Mãe italiana aparecia na porta com pequena correia (só para assustar: nunca bateu em ninguém), aos gritos. Mãe portuguesa em linguagem característica. Japonesa dava gritos, estranhos para os ouvidos de toda gente.

Imediatamente a caminho de casa!

Tio alemão ficava doido. Toda a garrrrrotada local aprendera português com facilidade e falava a língua dos pais, só a turminha dele (filhos, sobrinhada, amigos) era alienada?!...

A mulher desde o casamento exigira que ele só falasse português, difícil para ele, e agora filhos pré-adolescentes ainda o corrigiam em certos vocábulos.

Momento de trocar!

Propôs aulas. Esclareceu bem: gratuitas, mas na Alemanha aluno levava maçã para professora e professor, não era só em anedota ou desenho. Maçã aceitaria de bom grado.

Sim. Dois filhos, sobrinho, sobrinha e cinco alunos voluntários, incluindo-se nestes a sobrinha angolana do padre. Percebeu-se depois: a única sincera e interessada pois pretendia, lá no futuro remoto, ser, imaginem só... diplomata!

Tudo acertado, foi ao centro da cidade e trouxe o material - um caderno para ‘planos de aula’ (o filho me contou essa estória e sou hoje o narrador da mágoa confidenciada e eternamente repetida pelo pai), três livros para estudos em grupo, uma resma de papel branco, muitos lápis e canetas.

“Borracha não permitirei.”

Na primeira noite, pura alegria. Ele ganhou três maçãs, todos sorridentes com a novidade.

Aprenderam a contar de 1 a 10 - “eins, zwei, drei......................zehn”.

Logo, risadas gerais quando professor explicou sobre a filosofia dos idiomas. Em português, por exemplo, “a mesa”; em alemão “der Tisch”.

Auto-defendeu-se: por isso ele ainda falava - “Mulher, hora de comida nO mesa!”.

Em português, “o mar”, macho, forte, reprodutor, no mínimo pai dos peixes. Todos riram. Em francês, “la mer”, fêmea, sensível, geradora, mãe... “dos peixes”... alunos repetiram em coro.

Explicou Meer em alemão, alertou iniciar com letra maiúscula por ser substantivo, o filho Carlinhos perguntou como seria letra maiúscula com a pessoa falando...

Aula encerrada – ficaram sem saber se era masculino ou feminino.

Na segunda noite, artigos definidos, sempre o professor comparando - em português, o, a, os, as; em inglês, the; em alemão, der para o masculino, die para o feminino e das para o neutro.

“Neutro?” - alunos se coçaram... no corpo e na mente.

Exercício. Professor distribuiu folhas mimeografadas com 100 palavras sem tradução alguma. Nem que fosse por adivinhação, colocar M, F ou N. Aí, começou a ‘dançação’ para banheiro e copo com água, copo com água e... bom, as meninas falavam pipisório... Só Mikimba não se levantou.

Aula recomeçou. Angolana acertou mais que todo mundo - de tanto escutar Tio Carlos conversando com um amigo, fizera perguntas e conhecia muitas palavras soltas. Poucos acertos em todos os outros, olhares trocados maliciosamente.

Na terceira noite, quase tragédia (grega de Sófocles, não!) de... Johann Wolfgang von Goethe, como em sua obra prima WERTHER.

Professor foi objetivo, direto, quase bruto e falou de cara que a língua alemã apresenta casos gramaticais, como em latim (horror escolar em paralelo com matemática!) - nominativo para o sujeito, acusativo para o objeto direto etc.

Carlinhos fez piada: “Quero morrer!” – botou a mão no estômago.

A irmã não entendeu o gesto e inventou: “Eu tenho fome!”

Pai fez a versão: “Ich habe Hunger!” - ditou letra por letra e todos anotaram.

Mikimba (não sei se nome ou apelido) anotou, mas de repente começou a soluçar.

Não sentia fome, absolutamente, porém magoada com todo mundo pois tinha fome e sede para aprender muitas coisas, ser advogada, ser diplomata, ajudar seu próprio povo de origem e muitos outros povos. Se continuassem nas brincadeiras, Tio Carlos acabaria se aborrecendo e nunca mais daria aulas de alemão para ninguém.

Carlinhos pensou em trauma antigo, tempo das imbecis perseguições na escola, alisou com dedo indicador a pele do próprio braço, lado a lado com a angolana, e todos entenderam a diferença epidérmica. Mas não era isso. A garota percebeu e revoltou-se num grito:

“Não! Eu não quero ser branca. Eu apenas quero ser gente!”

Turminha muda, estarrecida.

Aulas se encerraram.

Tempos depois, a senhorita Mikimba ganhou uma bolsa para o idioma alemão, ainda no Rio de Janeiro, mais tarde universidade em Sttutgart, Alemanha... muitas pós-graduações... e hoje FRAULEIN MIKIMBA é brilhante cidadã do mundo inteiro.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 01/09/2012
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