O terceiro acorde

A noite apenas começava. O vento soprava de forma amistosa, trazendo o aroma dos campos arenosos da praia. As ondas quebravam no istmo que ligava a pequena ilha ao continente. As janelas altas da casa davam passagem para um céu limpo e estrelado. Á medida que a escuridão da noite adentrava os corredores, luzes tênues acendiam como vagalumes em uma floresta na primavera.

Largado em um canto da sala, ele dedilhava um violão. As notas voavam destoantes, notas tiradas ao acaso por uma alma solitária. As sombras banhavam seu corpo e a parca iluminação fornecia um ar espectral ao local.

O homem olhava a paisagem pela enorme porta de vidro a sua frente, e lembrou-se dela.

As notas se harmonizaram e o violão chorou à Willie Nelson. Seus lábios balbuciavam uma antiga canção. Ela adorava ouvir a acústica que ele compunha, deitada em seu ombro e sussurrando suas letras. Juntos eram únicos. Uma dupla perfeita. Ela era perfeita.

O Grammy descansava empoeirado na estante de prêmios, os discos de ouro e platina não brilhavam mais. A casa solitária na ilha não tinha mais a mesma vida de tempos passados. Não irradiava luz como nos dias em que ela caminhava descalça pelo chão frio de taco encerado, quando beliscava as maravilhas feitas nas panelas na cozinha ou quando ambos corriam pelo jardim e se deitavam ao sol morno do outono.

A casa estava vazia. Seis meses foram o suficiente para a poeira e maresia cobrarem suas dívidas. Gramado não podado. Flores não regadas. Era doloroso viver no mesmo local onde descobrira o que é viver, mas ela esteve ali, e sua presença ainda era forte pelo ar. E ele se alimentava desse ar de forma tão intensa, tentando mantê-la dentro dele, se inebriar com o que restou dela. Mas ela não caminhava mais descalça pelos coredores, não havia mais panelas borbulhantes para beliscar. E isso o machucava. Machucava de uma forma tal que ele já não suportava mais. Percorrer solitário os mesmo caminhos que partilhara com ela era como caminhar sobre brasas. Doía, e a dor já não era mais suportada.

A noite tomou seus domínios e se apossou de todo o litoral. A ilha ouvia apenas as ondas distantes. O violão tocou seu terceiro acorde e parou. A casa estava silenciosa. Ele respirou profundamente sentado em um canto da sala, e esperou. Esperou por longas horas até que a espera terminou pouco antes do amanhecer. A porta de vidro se encheu de luz, uma luz que o aqueceu de uma forma terna, acalentando sua angústia.

A porta se abriu lentamente. Era ela. Estava como ele se lembrava: descalça, sorridente, com um jeito irradiante, mas com uma cativante simplicidade no olhar. Perfeita. Ele sorriu, pousou o instrumento no chão de taco, ergueu-se cambaleante, mas caminhou firme até ela, deixando para trás toda uma sobrevida de solidão.