Teoria do Lugar
- Não, assim não. – Ele disse.
- O que não é assim? – Ela retrucou.
Ele baixou a cabeça, fechou os olhos, apertando-os. Parecia que ele tentava buscar algo dentro da mente. Tentava arranjar um meio de explicar algo que ele achava difícil de pôr em palavras, mas tentou:
- Não devíamos ter nos conhecido assim. Não desse jeito. Assim estraga tudo! Veja só: existem ocasiões para conhecermos as pessoas, e dependendo dessas ocasiões, fica uma impressão.
- Como assim? – Ela disse após ter levado um copo de cerveja aos lábios com batom vermelho, depois repousando o mesmo na mesa para ouvir a explicação dele.
- Você poderia ter me encontrado ou me conhecido num ônibus. Você estaria cansada, voltando do trabalho, e eu também. Talvez eu nem chamasse sua atenção. Porém, seria até melhor que não nos falássemos ali. Por quê? Você não me notaria. Não olharia para mim com os olhos que eu desejo que olhe. Você me olharia e pensaria que eu sou apenas mais um cara, ocupando lugar de uma das 38 pessoas que o ônibus comporta. Apenas alguém para informar as horas, para dividir um espaço público contigo. Eu queria te conhecer em algum lugar onde você estaria com a alma aberta. Sabe? Sinal verde para mim, para estranhos. Mas não para qualquer estranho: só para mim mesmo. Mas aí, aqui estamos, conversando nesse bar pé-sujo, bebendo cerveja quente enquanto você espera seu amigo para uma festa. Mas eu, ali, não pude deixar passar. Sei lá, vi você e quis falar, precisei falar contigo. E aqui estou.
- Ao menos você me conheceu agora. Você é legal, mas acho que o lugar é válido.
- Eu sei, mas o local tem um imperativo sobre o nosso “encontro aleatório”. A gente conversa há duas horas, e eu não sinto que converso assim desde muito tempo.
- Também sinto isso. Deixa a conversa rolar. Eu não acho que o lugar seja sempre um imperativo. Alguns romances malucos acontecem até nos lugares mais inesperados. Uma fila, ou, sei lá... Vai ver até um taxi. Duas pessoas pegam o mesmo taxi. Já vi isso num clipe de uma música.
- Seria interessante. Mas é um problema também: não vivemos num filme ou num clipe musical.
- Talvez se as duas pessoas em questão gostassem muito de filmes românticos, rolaria alguma coisa e os dois sentiriam aquela ligação. – Ela abaixou a cabeça e sorriu um sorriso gostoso de observar.
Ele bebeu metade do copo. Coragem líquida e amarela: a cerveja que sempre o impulsionou para falar assim com estranhas. Garotas desconhecidas, e convidá-las para uma conversa franca, como esta. E ele ainda ficava sem jeito, tímido. Ela vai embora dali a qualquer momento, mas é educada para aceitar uma conversa. O batom vermelho lhe cai bem, ele mal presta atenção nos arredores: pessoas amontoadas perto do balcão e da calçada onde a banda toca. Os dois estão mais longe, perto da esquina. Garrafas jogadas no chão, transeuntes bêbados, meninas de all star e saia curta. Caras de camisas de banda, barba, com cervejas na mão.
- Eu não gosto muito de filmes românticos.
- Nem eu. – Ela respondeu, certa de si.
- Uma mulher que não gosta de filmes românticos? Eu não estou impressionado. Se gostasse, acho que nem estaria aqui. Nada romântico esse lugar.
- Mas você diz que duas pessoas se apaixonam quando há um lugar onde elas se sintam à vontade e abertas para conversarem, se darem, e etc. Isso muito bem pode acontecer aqui, há uma possibilidade. Pessoas desconhecidas, um momento-chave... – E depois, ao perceber o que havia dito, ela enrubesceu, dando um meio sorriso, enquanto ele retribuía com outro sorriso aberto.
- Sim, é verdade. O lugar ajuda. Isso me fez pensar numa espécie de teoria do amor que passa despercebido. É como se fosse “A Teoria do Lugar”. As pessoas sentam ao lado, não conversam porque ali não é lugar de conversar. Não falam da sua vida, não se apresentam, porque é inconveniente ali. E aí deixam de conhecer alguém que poderia ser importante. Poderia ser alguém que elas estejam procurando. Meu papo tá muito solitário, eu sei. Tenho me sentido assim, nem minto. Namorei um tempo, e conheci minha ex-namorada dessa maneira. Um mesmo ônibus, três vezes. Bastou isso para que começássemos a conversar. Normalmente não se faz isso em ônibus, mas... Aconteceu.
- E o que aconteceu a ela? Terminaram por quê?
- Maldita me chutou. Fui trocado. Vê? (ele aponta para o copo). Por isso... Por isso. – E assim, ele dá mais um generoso gole, quase acabando a cerveja.
- Isso meio que aconteceu comigo também, sabe. Foi do nada. Eu já estou ficando melhor, apesar de sentir uma tristeza às vezes. Mas tudo bem. – Ela deu uma ajeitada no cabelo. Sem que percebessem, aquela conversa cheia de pieguice e teorias embaladas por goles de cerveja já os havia unido por duas horas. Ela suspirou por um momento em que eles fizeram silêncio. Olhavam para a mesa, fazendo gestos discretos com os dedos.
Dois amigos dela chegaram à mesa. Uma menina e um cara meio magrelo, branco, alto e com cara de sério. A amiga sorriu e se deteve quando veio na direção dela, sabendo que ela estava conversando com ele. Ela olhou para ele, levantou-se sorrindo e deu-lhe um beijo no rosto e um abraço. Ele se despediu, sem muita delonga.
Ele tomou a despedida dela como um fato consumado. Uma estranha que deixou o perfume e o vermelho do batom pairando na memória feito a visão de algo efêmero mesmo, como um beija-flor que a gente diminui o passo para admirar e depois segue andando. A história de como eles se encontraram foi mais ou menos assim: três amigos dele o chamaram para o bar, e ele, mesmo sem vontade, se enfiou numa roupa qualquer e se meteu a andar até o bendito lugar. Ele a viu encostada na parede com uma amiga, que depois a deixou ali, sozinha, enquanto ela brincava com um copo na mão e esperava com um olhar de ansiedade e tristeza. Quando ele conversava com os amigos, olhou para ela de relance e percebeu que em alguns segundos ela retornou a olhadela. Ela arregalou os olhos, erguendo a cabeça e ignorando o copo que segurava, como se olhasse para alguém conhecido e não lembrasse quem era. Naquela corrente de aço invisível que os prendia num olhar, ele engoliu seco e sentiu a vontade imensa de falar com ela. O coração atrevido começou a sacaneá-lo dentro do peito, empurrando seu corpo magro para ir falar com ela, não importando o que acontecesse.
Naturalmente, ele foi, mandando uma mãozinha no ombro do amigo, sem nem olhá-lo no rosto, num gesto conhecido. Um gesto que basta pra ele entender “É o seguinte, eu acho que vi alguém ali interessante. Vou lá e depois volto.” E apresentou-se, falou sobre a sua estranha vinda, e que queria conversar com ela, pois sentia vontade de conhecer alguém novo.
Sentaram-se, conversaram bastante. E podemos dizer que ela esperava alguém assim. Vamos falar francamente... Ela também o esperava. Esperava que alguém lançasse o olhar de tirar para dançar. “Tire-me para dançar no meio da dança desmiolada dos bêbados e pessoas que vêm aqui fazer as mesmas besteiras de sempre.” Ela retribuiu o olhar, e o coração dela também a sacaneava, esmurrando o tórax. Ela seguiu com ele, segurando sua mão, pr’aquela mesa que parecia escolhida a dedo pra eles. Nem tão longe e nem tão perto do palco e do balcão, mas do lado de fora do bar, perto da esquina. Seguiram conversando e se derramando em palavras bêbadas e com gosto de cerveja na língua. E aí, ela foi embora agora. Foi embora rápido porque ela tinha medo.
Ele voltou para casa depois de algumas horas, pegando um táxi. Não queria andar muito. Em dez minutos ele chegou ao prédio onde morava. Passou zonzo e com a visão tremida pela guarita, indo para o hall de elevadores. Bingo, o elevador estava no térreo esperando. Quando apertou o bendito botão sete, onde morava, o maldito elevador desceu. Subsolo! Ele não queria ver gente, queria ir pra casa, jogar o corpo bêbado do jeito que estava no sofá, com tudo! E então a porta automática desliza num surdo ruído metálico. Ela entra. Sim, ela mesmo, a garota do bar. Ela entra com a cabeça baixa, e nem o vê direito. Estava absorta, solta ali em pensamentos mil. E ele a percebe. Mal consegue se segurar em pé.
- Você? – E ele não conseguia esconder o sorriso incandescente que exercitava cada músculo necessário como o mais delicioso impulso humano biológico e inexplicável. Todo seu corpo se incendiava num fogo que não queimava, mas esquentava a alma como uma lareira inexistente. Ela ergueu a cabeça, e uma faísca de eletricidade percorreu todo seu corpo esguio e bonito. Parece que a faísca terminou numa centelha que se traduziu num sorriso de uma alegria tão esfuziante que dava até vontade de morrer.
- Minha avó mora aqui. Eu vim dormir com ela hoje, mas ela já deve estar dormindo... Mas... Você mora aqui! – Ela não escondeu que estava exultante. Encolheu os ombros, apertou o oito. A avó dela mora no andar de cima, sim.
- Desculpe... – Ela disse, olhando-o nos olhos, enquanto o elevador se encerrava, fechando a porta, contendo dois corpos ofegantes dentro do cubículo metálico que começa a subir suavemente, carregando-os. E assim, o elevador seguiu, culpado por uma coincidência que nem ele sabia. E ela, ali dentro, olhava nos olhos dele enquanto os dois eram erguidos, e ele a desculpava de todo o coração, sem nem saber por que ela pedia desculpas. Ela pedia desculpas porque ela o esperava.
Estava ali, naquele bar qualquer, porque as pessoas tem vontade de sair. Porque ela queria o outro, o mundo diferente do dela. Queria alguém como ele, e nem sabia. Ali, encostada na parede com um copo na mão e não sabia que o esperava. Naquela mesa ele disse as palavras e os pensamentos que jaziam adormecidos dentro dela, e que eram como música, que ela não sabia como tocar, e ele conseguiu. E depois, tão rápido, foi embora para outro compromisso. Deixou tudo suspenso ali, inacabado. Ela pedia desculpas, queria ficar ali, e foi embora com medo. Mas estava ali de novo, com ele.
O elevador seguia, levando os dois, até parar, enquanto eles permaneciam se olhando.
- (...) Sobre a teoria do lugar... – Ela disse, em voz rouca e cansada, que o encantava – Elevadores são válidos?
A porta do elevador se abriu no andar dele. Ele não saiu. Ele inclinou a cabeça vagarosamente na direção dela, encostando os lábios com gosto distante de cerveja nos lábios com cor de batom vermelho dela. A porta permaneceu aberta. E se fechou novamente, abrigando-os naquele cubículo metálico.