VERSÁTIL...(ATÉ HOJE)

RUBEMAR ALVES

Um perfil bem detalhado: passado e presente.

ELIZABETH DAWSON existiu... e não existia.

Havia no Rio de Janeiro um JORNAL famoso que era um dos principais elementos de um grande ‘holding’ de comunicação. Dentro do jornal, um SUPLEMENTO aos domingos em que as LEITORAS publicavam, sob pseudônimo, as famosas receitas culinárias, desenhos de bolos confeitados, conselhinhos úteis (maquilagem e cremes, segredinhos de cozinha, limpeza da casa, idéias como *engraxar sapatos... sem graxa etc.), moldes de bichinhos de pano e de bonecos ou aulas sobre enfeites para mesas de festas... Delícia do mundo feminino! O Brasil inteiro comprava, existindo ainda assinantes do jornal do outro lado do Atlântico: Por tugal e antigas colônias.

Também as interessadas permutavam papéis em geral ou livretos através do JORNALZINHO, uma sem saber identidade e endereço da outra, o jornal se encarregava das remessas pelo correio e de alguma possível devolução: “Favor copiar e mandar de volta.” Raríssimos extravios.

ELA descobriu este suplemento ainda garota quando um TIO ofereceu carona para a escola um tanto distante de casa e ouviu um grito ensurdecedor: “Quase sentou no jornal de sua TIA!” Abriu, olhou e passou a comprar de vez em quando, somente com assiduidade cinco anos depois, aos 18... Mas PSEUDÕNIMO esquisito (hoje chamamos de nick nos chats da Internet), não! Conhecer as sócias do CLUBE feminino, andar pela rua e de repente ouvir o grito, ainda que amistoso: “Miosótis!” – “Lâmpada de Yasmim!” – “Gulosinha!” - nada agradável.

Estudara sobre a rainha do Reino Unido na ocasião das grandes viagens marítimas, séculos XV e XVI,mas já existia uma cadastrada com este nome. Ora, no livro de inglês do curso especializado, IBEU, havia a família norte-americana que recebia em intercâmbio um estudante brasileiro.

Aí, “nasceu” Elizabeth Dawson, carteirinha até com retrato.

(Depois, ELA rouba a cena, mas em princípio pisa cautelosamente, receosa de ser mal recebida porque mal interpretada.)

Uma TIA-AVÓ sabia tudo em termos de forno-fogão e ELA crescera num ambiente que reunia receitas incríveis. Começou discreta com as variações de brevidade (não polvilho doce exclusivamente, pessoal), de doces de ovos em geral (quindins, bom-bocados), canja tradicional versus prato salgado com frango, creme de leite e cogumelo, sanduichinhos para lanche, o que servir antes da ceia de Natal... por aí vai. Passou a pesquisar cozinhas carioca, paulista, mineira, baiana, gaúcha, do país todo.........

Escrevia a mão, depois máquina de escrever, hoje teria a facilidade do computador.

Veio a fase dos BICHINHOS de pano e BONECOS. Pois é. Não que ELA fizesse, mas copiava de revistas especializadas (preço acessível, porém não encontradas no interior do país) e atendia inúmeros pedidos, indicando até o tecido mais adequado e onde comprar olhinhos de vidro.

Houve a fase da COELHADA, seu futuro “carro-chefe”. Já era ‘socia’ no jornalzinho há dois anos, porém ainda não colaborava sôfrega. Revisora numa gráfica, todos trabalhavam em dupla, a amiga da mesa ao lado sussurrou qualquer coisa sobre bolo, ELA balbuciou “sim, sim” (é a mesma coisa que assinar sem ler!), estava se comprometendo a fazer BOLO de primeiro aniversário de um MENINO, filho de uma “gravidona” de quase nove meses. Foi à casa da desconhecida , irmã da tal amiga, para dizer “não”, acabou animadíssima com o desafio, saiu um bolo quadrado, em cima um coelho plástico tamanho médio segurando vara de pescar e na base do bolo o coelho ‘inocente e distraído’, mesmo tamanho, transportando num carrinho de mão enorme cenoura de marzipan. Ainda arvorezinha de jujuba e coelhinhos menores num jardim... Os coelhos como que se multiplicaram em docinhos diversos coloridos e bolinhos salgados, quase tudo no feitio de cenoura com rama verde, também desenhos pelas paredes, toalha plástica para a mesa, máscaras para a garotada, até orelhas para os adultos mais brincalhões... Há fotos!

Sete anos depois (demorou, hein?) é que uma das leitoras pediu sugestão de bolo, agora para primeiro aniversário de MENINA, o bolo foi desenhado, publicaram em cores, outras leitoras mandaram sugestões de bandejas e enfeites, a COELHADA fez grande sucesso, agora ao longo do “mapa” do Brasil. Até hoje, vitoriosa, ELA guarda em relíquia os desenhos originais, não amarelecidos porque sob a forma de xerox dentro de sacos plásticos de arquivo.

Pesquisava, escrevia e colaborava muito: serena para ELA mesma, obsessiva as outras pessoas é que julgavam. Não. Ama escrever. Durante muitos anos, raríssimo jornalzinho saía sem uma contribuição dela!

Direitos autorais não a preocupam, nunca preocuparam. O que faz, o que sabe fazer, ensina objetiva e de coração limpo, sem esconder nada. Há cerca de um ano perguntei porque procede assim. “Doar é continuar-se no outro.” É naturalíssima, sem artifícios, odeia o que chama de falso elogio. Nasceu assim, trabalhadora valente e guerreira como Santa Joana D’Arc, múltipla e comunicativa, sob as bênçãos do deus grego Mercúrio. Não aceita a palavra altruísta, enrola, e consegue provar que pelo menos não é egoísta. Só briga se descaradamente ouvir alguém falar por conta própria “eu fiz, eu criei”... Viu álbum de fotos de uma festa qualquer em que a coelhada aparecia (não pode reclamar de enfeites comprados em lojas), o bolo em destaque, “Minha-irmã-inventou!” Ah, é?! No outro dia levou para o local de trabalho seus famosos desenhos, com data bem antiga......... Não discursou muito, somente escreveu bem grande, no quadro-de-giz, a data de “nascimento” do bolo original.

Versatilidade é um dom. Perto de “santantônia”, como que em vários lugares ou sob várias personalidades perfeitas (EU que o diga!) ao mesmo tempo.

Certa vez, há cinco exatas décadas, houve reunião no jornal, muitas mulheres com crachá identificador (no tafetá, desenho de uma ABELHA, colhedora e distribuidora de mel), ELA chegou atrasada, ainda sem preencher pseudônimo no espaço adequado, a REDATORA responsável chamou-a num grito estridente:

“ELIZABETH DAWSON, venha cá!”

A MÃE, na platéia, ouvia coisas assim:

“Mas é jovem! ELA me mandou receitas de crochê, que muita gente diz diversão de gente velha! Pensei que ELA tivesse mais de setenta anos...”

“Deve ter filhos pequenos porque ensinou a evitar enjôo de criança andando em ônibus!”

“Recebi receitas de formigos (doce português), sopa de beterraba (russa) e tempurá (fritura japonesa).”

“Mandou para mim fantásticos endereços de clubes gratuitos no exterior para correspondência em inglês e espanhol.”

A super fã esclareceu:

“Vinte e três anos, solteira, não tem filhos, nenhuma vocação para trabalhos manuais, gosta de forno-fogão, qualidade única dentro de casa, ama escrever.. Um dia terá mais de setenta anos.” Todos riram.

Como ELIZABETH DAWSON, ELA existiu quando o jornal existiu, jornal acabou e ELA virou memória.

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*Como engraxar sapatos... sem graxa: Esfregar pétalas esmagadas de certas flores da ‘família’ das papoulas (brinco-de-princesa, mimo-de-vênus e outras) ou a parte interna da casca bem amarelinha da banana. Escova dura, depois: dá um bom brilho.

F I M