O cortejo
Eu sou um átomo perdio
No sumidouro do tempo
Quando meu coração flutua
Dois metros além do meu peito.
(Ségio Vianna)
Depois que o coração de Leiene flutuou dois metros além do peito sua vida ficou extracopórea. Percebeu a sensação de desprendimento da matéria num indefinido.
A alma começou sentir um certo gozo de liberdade.
Leiene se sentia flutuando, tinha sensações de que algo a impulsionava para baixo esquentando os pés. Depois de suplicar por clemência sentiu o leve impulso de ser conduzida para cima. Sua realidade não era mais aquele corpo que tinha aparência esbelta, olhos castanhos e cabelos castanhos compridos. Sem aquele corpo comprometido com a rude lei da vida, torturando a matéria e ignorando o arbítrio do espírito. Viu seu corpo sendo colocado entre rosas brancas e cores-de-de-rosa. Coberto de um véu branco dentro de um caixão de madeira escura. Depois de ser velada
com música saiu um grande cortejo. Fazendo um trajeto em cada canto em que Leiene esteve presente em vida.
Naquele instante sua alma flutuava acompanhando o cortejo que seria demorado. O caixão estava em cima de uma carroça sofisticada. Coberta com uma bandeira que continha o desenho de um brasão. Em volta quatro soldados puxavam a carroça e algumas pessoas acompanhavam aquele percurso. O percurso seira feito em uma longa estrada até o sepultamento no Vale da Redenção aonde se encontrava uma cripta de cristal. A carroça passou na frente do Palácio do Encantamento aonde Leiene participara do baile de máscaras. Estava vestida com um longo vestido beje e seu namorado a tirou para dançar naquela tarde. Leiene era uma moça plebéia. Recebeu o convite para o baile através de Vicom a quem namorara há um mês. Durante a dança ele começou a mirar fixamente sobre o rosto dela, estava percebendo de fato como ela era linda. Seus cabelos muito fartos semi presos caíam sobre os ombros. Vicom colocou delicadamente suas mãos sobre a cintura de Leiene.
Sempre quando a via notav a algo mais profundo em sua namorada. Ele tinha insistido para ela tirar a máscara que cobria apenas seus olhos e fez uma declaração:
-"És a beleza mais natural, delicada e enigmática."
-"Entre todas as mulheres você sobrepuja nessa beleza que flui em seus olhos"- Você contempla sua beleza no espelho?
- Leiene sorriu levemente- Apenas um pouco.
-"Tenas a aparência mais sublime que uma princesa ou rainha poderosa. Os traços de seu rosto foram desenhados pela natureza com uma técnica escultural.
-Igual a teu corpo obra de formosura. Em teus olhos vejo o brilho de uma essência. Um olhar distante e profundo que guarda algum mistério evocando o passado. É como se tua beleza tivesse perdida no tempo e encontrada em algum lugar distante. Encontrada por mim que estou perdidamente apaixonado- Vicom passava as mãos suavemente sobre a face de Leiene. Começou a encarar a moça profundamente beijando-lhe as mãos.
- Mas a terra não terá compaixão de tua beleza que será levada ao recanto dos vermes. Eles gostam muito de se alimentar da carne humana. E é uma novidade para ela o corpo jovem e belo. Você se deitará num leito fundo e descansará em meio a larvas e aos livores até seu belo corpo cair em putrefação.
- De ti apenas restará ossos inúteis e apócrifos que sob a lápide dormirão.
As damas e os cavalheiros dançavam a Valsa do Entardecer. Leiene muito assustada e extremamente surpresa se soltou dos braços de seu namorado. Curiosa foi em direção ao grande espelho que havia na parede central do salão. Viu sua face refletir uma caveira coberta de tecido de seda branco toda enfeitada de rosas. Uma lágrima começou a cair sobre o rosto e derrepente ela gritou caindo desmaiada. O espelho se quebrou partindo em vários pedaços.
A carroça fúnebre passava vagarosamente. Dentro do esquife Leiene estava envolta em linho fino, vestida de uma túnica talar de mangas compridas toda branca. Seus cabelos compridos estavam soltos parecia que estava dormindo. O espírito de Leiene estava feliz com o trajeto de seu corpo,sentia uma serenidade e seguarança indescritível.
Sentiu que sua vida era como areia e lenta se esfarinhava.
Ela sentia um extremo alívio de estar livre da inimizade com o tempo. Viu que cerrou seus olhos e esqueceu do que foi visto da forma que costumava ver. Seu espírito não pensava mais sentia aonde se lia seu último capítulo.
O cortejo seguiu em direção a uma ponte que atravessava o Rio das Lágrimas. Parou em frente ao Castelo do Infortúnio residência da Condessa do Porvir. Essa condessa gostava muito de humilhar Leiene pela sua condição social. Dizia que os descendentes dessa teriam que nascer para apenas servir a realeza aos fortes e ricos. Leiene durante a vida tinha passado por graves situações financeiras e até fome.
Esquecendo o orgulho ia pedir sobras de comida na cozinha do castelo da condessa.
Conheceu Vicom ocasionalmente numa dessas idas ao castelo. O rapaz que vinha de uma família muito rica era conde, primo dessa condessa. Ele ficou perplexo como uma moça tão bela vivia uma vida tão miserável. Mas esse rapaz era falso e queria enganar Leiene. Pois ele odiava a plebe e tudo o que provinha dela. O conde queria matá-la mas não tinha coragem. Vicom sofria de um distúrbio de personalidade. A cada momento reagia de uma forma. Uma hora a tratava bem em outra a tratava mal. Ele providenciou um cortejo pomposo para sua namorada.
Quando o cortejo atravessava a ponte o soldado tocou a corneta. Num instante a ponte se arrebentou e o féretro caiu nas águas do Rio do Esquecimento.
Leiene faleceu induzida por uma sugestão psicológica da verdade. Ela jamais dentro de si admitiria que morreu por um susto do que realmente ela era. Morreu assustada com sua própria face oculta dentro de uma realidade interna, que cedo ou tarde revelaria o que se escondia atrás de sua epiderme. Morreu ao ver sua própria caveira, ao ver a si mesma. E o cortejo era a representação de sua vida material e imaterial. Faleceu de um ataque cardíaco durante o baile de máscaras ao se observar no espelho do palácio. Seu cortejo não chegou ao destino do Vale da Redenção aonde seria enterrada na cripta de cristal. Foi afundado num rio ao passar no castelo aonde morava seus desafetos.
Esse fato ocorreu na época medieval. Leiene apenas via tudo aquilo, mais não podia interferir na trajetória nem de sua vida nem de sua morte. Aguardaria seu julgamento e comprovou que vivera apenas uma vez e tinha apenas uma única vida. Jamais iria retornar a esse mundo e nem se tivesse oportunidade não voltaria. Ela era a sua própria morte disfarçada em vida que guardava dentro de si.
O viver de Leiene traduziu um cortejo e morreu num cortejo.
Depois de caminhar pelo ar e acompanhar seu trajeto, ficou parada imóvel vendo que seu corpo caíra no verdadeiro esquecimento. Caindo dentro de uma terra que se encontrava nas profundezas das águas do Rio do Esquecimento, flutuava sua caveira coberta de rosas. Igual a profecia do reflexo do espelho no Palácio do Encantamento.