CLARICE
Sou médico formado em clínica geral. Especializei-me em homeopatia por não encontrar na medicina tradicional tratamentos eficientes contra os males que afligiam os meus pacientes. Interessante que, por querer conhecer seus problemas mais a fundo para indicar-lhes o medicamento adequado, acabei me tornando um pouco de psicólogo, de padre, de confidente, de amigo. Gostava desta relação mais estreita com o ser humano. Acho que, às vezes, pude ajudar além das necessidades físicas de cada um. Fui aquela figura quase lendária do “médico de família”, espécime em extinção devido ao sistema de medicina baseado em convênios a planos de saúde que acabam por tornar o atendimento impessoal em virtude da alta rotatividade de profissionais nas clínicas de todo o país.
A minha linha de trabalho criou uma certa fidelidade por parte de meus pacientes que, por propaganda boca a boca, mantiveram o meu consultório sempre cheio, graças a Deus.
Foi assim que ela surgiu. Uma morena pequena, de cabelos lisos e negros, olhos brilhantes mas tristes. Procurou-me queixando-se de um mal-estar constante que vinha atrapalhando a sua vida. Tinha um estado febril persistente do qual ninguém conseguia encontrar a causa. Entrevistei-a como de praxe, a consulta demorando quase uma hora. Pedi os exames rotineiros, encaminhei-a à minha recepcionista para agendar o retorno para dali a quinze dias, quando os resultados estariam prontos. Voltei para minha sala sentindo-me estranho. Algo naquela mulher miúda me perturbara. Não sei se eram os seus olhos negros e profundos, se era o vinco que marcava o seu sorriso velado, se o aroma de seu perfume que impregnara o ambiente. Tantas pessoas já haviam sentado naquela mesma cadeira mas nenhuma deixara uma impressão tão marcante. Ela era uma pianista.
Chamei o próximo paciente e aquela sensação acabou se dissipando. Não pensei mais demoradamente em Clarice até o seu retorno.
Depois de quinze dias lá estava ela de novo. Um pouco pálida, olhos febris. Ela era sensual sem querer. Uma aura parecia envolvê-la. Falava de um modo brando, quase sussurrando, a voz um pouco rouca. Abri os envelopes do laboratório. A única coisa que pude detectar pelos exames de sangue era uma baixa resistência imunológica. Expliquei-lhe que o tratamento seria demorado pois eu teria que reequilibrá-la e isso exigia tempo. Clarice olhou-me suplicante; estava cansada de médicos e remédios. Eu era o oitavo que ela consultava nos últimos dois anos. Procurei transmitir-lhe segurança, embora eu próprio não soubesse ainda que caminho percorrer. Não havia uma doença para ser atacada. Havia um desequilíbrio e isso era mais difícil de tratar. Prescrevi-lhe a medicação. A moreninha cravou em mim os seus olhos de lago ao estender-me a mão para se despedir. Voltaria dentro de um mês para avaliarmos o seu estado.
Por cinco meses seguidos eu a vi entrar em meu consultório e a cada vez a sensação estranha tomava conta de mim. Com o tempo fomos nos tornado mais amigos e paulatinamente fui conhecendo um pouco de sua vida.
Quando criança, Clarice via as primas ricas sendo quase que empurradas para as aulas de piano que detestavam. Ela, que gostava tanto de música, ficava morrendo de vontade de ocupar o lugar delas mas não podia pagar pelas aulas. Quando terminou o curso normal, foi ser professora. Reservava de seu pequeno salário uma quantia para poder manter-se no conservatório. Formou-se em piano como sempre sonhara. Devido ao seu esforço acabou por destacar-se. Foi convidada a dar um recital no teatro municipal e seu trabalho começou a ser reconhecido fora dos limites de sua cidade. Foi assim que sua carreira teve início.
Ela falava com naturalidade, como se ser famosa por seu talento fosse apenas questão de muito empenho. Eu ouvia tudo como se eu próprio progredisse com ela. Quase não me dei conta de que estava me apaixonando. Ansiava por revê-la e esperar um mês por cada consulta começou a representar um tormento para mim. Ficava imaginando-a em sua casa, ao lado do marido e da filha adolescente que acabara de passar no vestibular de medicina. Sentia ciúmes daquela vida da qual eu não participava.
O fato de não ter me casado nunca chegara a me incomodar antes de conhecê-la. Eu estava com trinta e sete anos, faria trinta e oito dentro de dois meses, e minha vida parecia completa com o meu consultório e a fama de conquistador. De repente, eu me via com desejo de ter uma família estabelecida, de ter filhos e Clarice como esposa. Isso me deixava desconcertado.
Procurei infiltrar-me mais em seus pensamentos, conhecer mais de sua vida. Precisava estabelecer um contato mais pessoal e menos profissional. Era antiético, eu sei, mas inconscientemente eu estava travando uma guerra de conquista.
Clarice foi se recuperando aos poucos. Sua febre havia desaparecido e ela estava-me grata por isso. Seus olhos adquiriram um brilho natural, menos vítreo. Sentia-se mais disposta. Relutante, por meus próprios motivos, acabei por indicar seguimento médico de dois em dois meses. Foi difícil deixar de vê-la todo mês mas eu não poderia fazer de outro modo: ela estava visivelmente mais saudável. E eu, apaixonado. Ela era madura, segura, inteligente, brilhante. Eu parecia um garoto (de quarenta anos) descobrindo o primeiro amor, incapaz de mostrar os meus sentimentos com medo de ser rejeitado. Havia ainda um outro problema: ela era casada e, ao que tudo indicava, bem casada.
Foi no começo de fevereiro. Ela entrou em minha sala e eu percebi na hora, por ter-lhe olhos tão atentos, que algo a perturbava. Tivera febre naquela semana e passara dois dias de cama. Solicitei exames de sangue. Com os resultados em mãos, depois de cinco dias, constatei imunidade em baixa. Insisti para que ela me contasse o que a estava incomodando. Clarice relutou muito antes de dizer-me, entre lágrimas, que vinha atravessando uma fase difícil no seu relacionamento com o marido que passava a maior parte do tempo em viagens de negócios. Ela estava se sentindo sozinha e rejeitada.
Nem me vi levantar da cadeira. Quando me dei conta já estava de joelhos ao seu lado, enxugando suas lágrimas com minhas mãos. Segurei seu queixo e colei os meus lábios nos dela. A princípio ela ficou assustada, depois cerrou os olhos e entregou-se num beijo longo. Encostou a cabeça em meu peito enquanto eu passava os dedos em seus cabelos de seda. Desvencilhando-se devagar do meu abraço, pegou a sua bolsa e saiu do consultório sem olhar para trás.
Fiquei ali parado, os braços ao longo do corpo, inertes. Parecia anestesiado. Um misto de emoções me invadia mas eu não conseguia sair do lugar. Queria correr até ela e falar de tudo que represara por tanto tempo: que eu a amava, que a queria sempre perto, que queria casar com ela. Cancelei as consultas seguintes e fui para minha casa vazia.
Aguardei um telefonema, um sinal. Fiquei à espera da próxima consulta como criança aguardando o Papai Noel. Clarice desmarcou-a na semana seguinte. Quando a atendente deu-me o recado, eu levei um choque. Precisava tanto revê-la, precisava explicar. Depois fiquei apreensivo. Será que ela iniciaria um processo por assédio e arruinaria a minha carreira? Senti-me então um idiota por ter este pensamento: Clarice estava acima disso. Ela não voltou ao meu consultório.
Segui a sua carreira à distância. Comprava pelo menos três jornais por dia para não perder qualquer notícia que falasse dela. Exultava com cada sucesso, enfurecia-me com cada comentário desabonador. Acabei fazendo um álbum de recortes. Se via o anúncio de uma apresentação, corria a comprar ingresso para a última fileira do teatro, de onde eu podia vê-la sem ser visto. Aplaudia-a de pé ao final do espetáculo, rendendo homenagem àquela mulher que marcou a minha vida. Nunca me aproximei. Eu não me sentia no direito. Não sei se eu era um covarde ou um homem de caráter.
Hoje pela manhã, como faço há quarenta anos, passei pela banca e comprei meus jornais. Sentei-me no banco da praça e calmamente comecei a folheá-los. Porque agora me sobra tempo, leio até os anúncios dos classificados. Quando cheguei à página dos necrológios, um quadro saltou-me aos olhos, as letras parecendo grudar na minha retina: “...os parentes e amigos da consagrada pianista Clarice Mayo agradecem os gestos de pesar e convidam para a missa de 7º dia de falecimento a ser realizada hoje às dezenove horas, na Igreja Matriz...”
Como, meu Deus, eu não fiquei sabendo antes? Que falha a minha não ter prestado atenção nesta seção do jornal na semana passada! Meu coração se entristeceu e um pouco de mim morreu ali.
Coloquei meu melhor terno e no final da tarde dirigi-me à Igreja Matriz. Sentei-me no último banco. Ao invés de prestar atenção às palavras do padre que rezava a missa, detive-me na figura trêmula e chorosa de um senhor de terno escuro, na primeira fila, que era confortado por uma mulher de cabelos negros. Provavelmente seriam o viúvo e a filha, médica como eu. Fiquei imaginando que, se tivesse tido mais coragem, fosse mais impetuoso, o velho vestido de preto poderia ser eu.
Saí da igreja cabisbaixo mas não desesperado. Sei que com meus oitenta anos não demorarei muito a seguir o caminho dela.
A partir de amanhã não comprarei mais jornais.