Vigésimo Terceiro Carneirinho
Ela me sacudiu de manhãzinha, o céu não tinha nem clareado, Acorda Duda, vamos tomar café e dançar uma valsa! Lembra da história que você me fez ler? Aquela em que a mocinha dançava numa pétala de rosa? Quem era hein? Não lembro se era a princesa, a princesa ou o príncipe... mas tanto faz! Levante-se querida!, num leve rodopio de bailarina puxou a cortina escancarando a janela, pude ver o céu ainda escuro, ela estava de cara lavada e já usava perfume. Naquela manhã ela me deu banho e trançou meus cabelos enquanto cantava uma música estrangeira que eu não entendia uma só palavra, mas mesmo assim achava linda de morrer! Quando eu perguntei que língua era aquela ela me disse que era francês e perguntou se eu gostaria de aprender e eu respondi que tanto faz, logo ela começou com aquelas conversas confusas, mudando de assunto a todo instante. Naquele dia ela disse muito sobre flores. Mamãe tinha uma voz doce que nem a da moça que cantava no rádio de pilha da Dora, era sobre cálculo a lição de casa, não gosto de matemática, e também não gosto da voz da moça que ta aí cantando, A mamãe canta muito melhor, parece até anjo!, Dora não escutou porque estava lavando a louça, e quando começa a lavar louça esquece da vida. Quando terminou de trançar meu cabelo ela disse que ia me levar ao mercado e poderíamos ter panquecas no café, eu sempre pedia à Dora que fizesse panquecas mas ela fingia não ouvir e continuava a cantarolar grudada naquele radinho de pilha, acho que no fundo ela não sabia a receita, então mamãe entrou no quarto e deixou a porta entreaberta. Fiquei no sofá balançando os pés e olhando pro teto, folheei um livro do pai que estava na estante, um de capa dura e cor vinho onde não havia nada escrito, “deve ser um desses livros do trabalho dele...”, então ouvi a voz da mãe entrar pela sala numa melodia que era para os ouvidos como algodão-doce derretendo na língua, o Eduardo diria uma daquelas palavras pomposas que ele lê no dicionário, semana passada ele me ensinou uma; melíflua. Ele explicou que é algo que flui como mel. “Mamãe tem uma voz melíflua”. Quando vi a porta meio aberta, fui logo espiar, era sempre mágico ver a mãe se vestir, ela dançava com cada um dos vestidos até escolher o que ia usar e rodopiava até a penteadeira, borrifava o perfume com cheiro doce no ar e rodopiava de volta, que nem a moça do filme que fui ver com Dora no cinema, o mesmo jeito de bailarina. Ela vestiu o longo de seda azul celeste que arrasta no chão e se abaixou procurando alguma coisa debaixo da cama, deviam ser os sapatos, quando de repente me viu e sua cara ficou branca, levou as mãos ao peito e disse em meio a uma risada ofegante – Querida, você me assustou! Pensei até que fosse o... – levantou-se e virou de costas, Venha, venha me ajudar com o fecho do vestido!, sentou-se na cadeira do toucador e eu puxei o zíper prateado em forma de flor. Ele quem, mamãe? E então eu vi seu rosto através do espelho, o rosto apagado parecendo uma máscara branca sem traços e feições. Ela crispou a boca e piscou os olhos, fazendo aquela cara de gente perdida, que nem a mocinha do filme quando acorda no bosque sem saber aonde está,O homenzinho que vem me visitar todas as tardes, às vezes eu o pego espiando pela porta, outras em cima do guarda-roupa, quando me aproximo ele foge e desaparece, o danado. Acho que vem daquela rachadura na parede da sala., eu a olhei sem dizer nada por que o pai e o sujeito que se veste todo de branco disseram que não devemos dar ouvidos ao que pessoas nessa situação dizem. Eu ouvi escondida atrás da porta, não entendi o que aquele senhor quis dizer com “nessa situação”. Terminei de fechar o vestido e sentei na cama, ela começou a se maquilar, pintou as pálpebras de azul e os lábios de vermelho carmesim. Sorriu para mim enquanto colocava os brincos, enfiou o colar de pérolas no pescoço e calçou os sapatos vermelhos de salto, Como estou?, Linda!, eu respondi. Ela veio e me beijou na testa, pude sentir o perfume doce com cheiro de fruta pisada igual ao da rua da feira quando a feira acaba. Pegou a chave do carro e me puxou pela mão, Dora ainda dormia, saímos dançando pelas escadas até chegar ao portão. No carro ela até me deixou sentar no banco da frente, ligou rádio e começou a cantar junto, sorria aquele sorrisão de orelha a orelha, eu sorria junto quando ela tirou as mãos do volante para poder abotoar a gola do meu vestido e o carro bateu na árvore, nos assustamos, mas não chegou a acontecer nada de grave. Nada mesmo. Ela então riu o risinho cantarolado que de repente virou gargalhada, o susto passou e ri com ela. Na volta ela me deixou no portão e disse que precisava sair, acenou e sorriu. “Como é linda assim no sol...”, queria ser que nem ela, mas Dora diz que sou a cara do pai.
Naquela noite ela não voltou. Fiquei na cozinha, tentando fazer alguns desenhos enquanto esperava a mãe voltar. Eduardo desenha muito bem, mas sempre caçoa dos meus rabiscos, estou treinando para ser melhor que ele, e quando eu for, vai me pagar um sorvete. Desenhei Dora vestida no avental branco, o corpo e a cabeça redondos, ficou meio gozado e achei melhor lhe presentear com um pequenino par de asas, tem jeito de fada apesar de se fazer de surda, é até boazinha e me conta histórias quando mamãe se tranca no banheiro para chorar. Quando eu perguntei, ela disse que era coisa de mulher, que mulher tinha isso de chorar escondido e que um dia eu iria entender. Derramei um pouco de glitter dourado em suas asas, “Mas são tão pequenas, nunca vão levantar esse corpo gorducho...”. Peguei a folha e fui mostrar à Dora seu retrato, ela puxava um cochilo na poltrona da sala, agarrada ao radinho de pilha amarelo que tocava um samba numa estação mal sintonizada. Achei melhor não incomodar. Escovei o cabelo e os dentes, vesti a camisola e fui deitar mesmo sem sono. É inverno, mas naquele dia fazia calor, fiquei rolando de um lado para o outro debaixo da coberta sem conseguir dormir, Dora diz que contar carneirinho ajuda, mas comigo é diferente, perco logo a conta e me irrito. Estava planejando o que desenharia no dia seguinte quando ouvi a voz do pai, às vezes ele chega durante a noite, estava gritando com a mãe, ela também gritou e começou a chorar, alguém bateu uma porta mas os gritos continuaram, tapei os ouvidos e enfiei a cabeça debaixo do travesseiro, se tem algo que eu não suporto é ouvir gente gritando. Já estava no vigésimo terceiro carneirinho que pulava a cerca quando percebi que a gritaria acabou. Destapei os ouvidos e levantei, fui em direção à porta e abri devagar. No corredor dava pra ver uma luz acesa, a claridade vinha do banheiro. Quando me aproximei a porta estava aberta e vi mamãe deitada no chão, despenteada, o longo estava aberto nas costas e haviam pérolas do seu colar espalhadas por todo o chão, Mamãe?, ela levantou devagar, virou-se, sorriu para além de mim e bateu a porta com força. Fui correndo pra cama e tranquei a porta. Chorei até dormir.
Acordei com os olhos inchados e vi Dora sentada de costas ao lado da cama, rezando um rosário e soando o nariz no seu lencinho de flores azuis. Parecia aflita e quando eu perguntei o que havia acontecido não me veio resposta, “Sempre se fazendo de surda essa aí, vai ver já ficou surda é de verdade...”, calcei os chinelos e fui até o corredor, alguma coisa estava acontecendo na sala, o Tio José e o Odair estavam sentados em silêncio, tia Sofia ao lado conversava baixinho com o seu Joaquim, afastado, o pai, sentado de costas, virado pra parede com a mão no rosto, os ombros subiam e desciam numa respiração pesada. Fui caminhando devagar e comecei a contar os carneirinhos de onde havia parado, acompanhando os próprios pés no carpete frio, “vinte e quatro carneirinhos, vinte e cinco, carneirinhos, vinte e seis...”, “Deve ser festa, mas festa de quê?”, mal cheguei à porta do banheiro e pude ver, o sapato vermelho jogado no chão, tombado como uma cabeça desamparada, no alto a echarpe verde-água amarrada numa espécie de laço frouxo, Tia Anita me puxou pelo braço, quis pular quando senti sua mão gelada de unhas compridas agarrar o meu pulso, Vem menina, vamos ter uma conversinha, mas que tal um copo de leite bem quente antes hein?, e foi me arrastando para a cozinha.