A camiseta rosa e os olhos

Era ela, a camiseta rosa um pouco curta e justa mostrando duas pequenas elevações, minúsculos prenúncios de seios num corpo infantil apesar de robusto; aquele caminhar displicente, olhos baixos e um sorriso constante e lindamente enigmático de uns lábios muito vermelhos, que murmuram sempre algo, que falam sozinhos o tempo todo. E o cabelo castanho claro, reflexos de ouro ao sol, muito lisos, sendo insistentemente colocados atrás das orelhas; os olhos baixos que os fazem cair ao rosto sempre transformam o efeito num charme cativantemente feminino.

O seu andar distraído, de pés que se arrastam, a levam para seu objetivo, o balanço; só então os olhos se erguem, e as mãos de dedos delicados param de tentar domar os cabelos e se agitam como pequenas asas. O balanço está ocupado, ela murmura para si própria algo ininteligível e continua seu caminhar vagaroso. Agora olha para os lados e se perde, eu sei que se perde, num mundo de sons e estímulos e cores e crianças que ela não conhece.

Mudo um pouco o foco do meu olhar e o que vejo é só uma criança, mais uma entre tantas, um mundo de crianças da idade dela - inúmeras camisetas rosa como a dela, incontáveis cabelos dourados como os dela, e ela é uma criança a mais no mar de crianças do parque.

Porém ela contorna uma pequena edificação e eu a perco de vista. E agora o foco volta, sei que não é mais uma criança, é a única, a principal, o sentido de tudo, o centro do mundo. Saio correndo, coração aos pulos, os olhos arenosos pelo fato de não piscar para não perder a atenção nem por um milésimo de segundo. Atrás da edificação está ela, imóvel, muito próxima de outras duas crianças da sua idade, completamente atenta à conversa entre elas; penso que participa também mas logo vejo que não, as duas crianças se afastam e ela as segue com o olhar, focada, compenetrada; mas assim que elas somem do seu campo de visão ela retoma sua habitual desatenção e imediatamente saio correndo de volta ao meu posto afastado, de onde a observo fingindo desinteresse, para que ela não perceba minha aflição, minha desconfiança, meu cuidado exagerado, desmesurado.

E ela volta, me encontra com o olhar no posto onde me deixou e me dá uma piscadela, eu retribuo e aproveito para relaxar a musculatura de meus olhos que ardem. Respiro fundo, poeira e areia, para controlar as batidas descompassadas de meu coração apreensivo. E lá está ela, brilhante e feliz, a única criança daquele parque deserto, conseguindo finalmente subir no trepa-trepa até a última barra, eu consegui, eu consegui!, e eu aceno de longe, a única criança daquele parque deserto não pode retribuir meu aceno porque segura firme nas coloridas barras de ferro, mas sorri; e com cuidado e muito vagarosamente vai tentando descer, a camiseta rosa reverberando sobre o fundo neutro, o cabelo caindo-lhe aos olhos – só que agora ela não os pode tocar.

E eu de longe lembro de todas as lições aprendidas dia a dia com aquele raio de luz rosa e dourado. Vejo-a sem pressa, naquele ritmo particular de quem tem a eternidade ao seu dispor, e me recordo de ir mais devagar, afinal, o caminho não vai mudar, quer eu corra ou não. Vejo-a sorrir para tudo e todos, e fico atenta para não julgar pelas aparências, porque não se pode mesmo enxergar o que há dentro das almas ocultas atrás desses rostos e corpos diversos. Vejo-a observar com alegria sem ver de fato, e me lembro de aceitar tudo sem pré-julgamentos, porque a vida é realmente simples, de uma simplicidade estonteante. Vejo-a acenar para mim com o rosto mais doce desse mundo, e tenho a certeza de que se deve ainda, e apesar de tudo, amar a humanidade, não só porque somos todos um mas principalmente porque desse gesto pode nascer outro igual, numa sucessão de reflexos que multiplica e distribui uma primeira e bela imagem...

O silêncio é absoluto, não há nenhum ruído de risos infantis ou ranger de balanços, não há choros de bebês nem mães gritando nomes de filhos. Só há ela, a camiseta rosa como rosa não há outra, os cintilantes cabelos dourados pelo sol crepuscular. Está esfriando, melhor levar-lhe o agasalho. E encontrar um lenço de papel dentro desta bolsa minúscula que carrego, que com os olhos assim umedecidos não consigo acompanhar seu progresso na descida do brinquedo.