Algumas vezes você não pode fazer por si mesmo
“(...) mais um acidente esta noite na rodovia (...)”
- Parece familiar?
- O que?
“(...) um carro despencou da ponte (...)”
- No jornal, o acidente, era você.
- O que, quem é você?
- Difícil explicar.
- Como entrou na minha casa, vou...
- Olhe pela janela.
- Como? Saia da minha casa, eu...
- A janela, olhe.
- Não é minha rua, onde eu estou?
- É o que estou tentando explicar.
- Você pode me dar uma resposta direta?
- Faça a pergunta certa.
- O que aconteceu?
- Um acidente, você caiu de uma ponte.
- Como eu vim parar aqui?
- Você não veio parar em lugar nenhum, olhe a janela.
- Estou morto? Vai me dizer que...
- Por assim dizer. Estas são suas lembranças.
- E o que você faz aqui?
- Supostamente, devo te mostrar o caminho.
- Caminho, pra onde?
- Podemos dizer que você está preso no momento.
- Mas se são minhas lembranças... Estou inconsciente?
- Podemos discutir semântica a noite toda, mas você não tem muito tempo.
- Tempo para o que?
- Considere uma viagem. Você deve ir fundo em suas memórias.
- Essas casas, prédios. São lugares que conheço, mas...
- São suas lembranças, precisão geográfica não é um requisito aqui.
- Um caminho com todas as minhas lembranças?
- É uma forma de pensar.
- E o que você quer dizer com ir fundo para sair?
- Isto é o que você tem que descobrir.
- Então quem é você e pra que está aqui?
- Digamos que sou só um burocrata engravatado.
- Pensei que você devia me mostrar a saída daqui.
- O caminho, não a saída.
- Então, se eu chegar ao final do caminho, encontro a saída?
- Talvez. Ir fundo em suas memórias não quer o fim do caminho.
- Fundo? Tenho que achar alguma memória reprimida? Algum assunto mal resolvido?
- É uma questão de perspectiva.
- A casa da minha família, a república da época da faculdade, o campo...
- Boas lembranças não?
- Acho que sim. Mas... Aquele poste está apagado, por quê?
- Não tenho o manual das suas lembranças, certas coisas só você sabe.
- Essa praça, foi onde...
- Provavelmente.
- Aquela casa, não era pra estar aqui.
- Como eu disse, nada aqui é geograficamente exato.
- Luzes apagadas. Acho que entendi agora... Devo entrar?
- Mais uma vez, não tenho um manual das suas memórias.
- A porta está fechada, acho que não adianta bater.
- Se você não acredita que alguém vá atender...
- Arrombar as janelas da minha memória, meio brega não?
- Não sou eu que faço as regras por aqui.
- Neste quarto foi quando descobri... Que barulho é esse?
- Ao que me parece, a televisão.
“(...) quando o resgate chegou ao local (...)”
- Esta é a sala do meu apartamento...
- Toda uma jornada, e de volta ao mesmo lugar.
- Lembrar daquele dia... Era isso que eu preciso resolver?
- Às vezes é necessário olhar para trás para entender.
- Então, por que ainda estou aqui? Não devia acordar agora?
- Você não está dormindo.
- Você disse que eu devia encontrar a saída!
- Disse que, supostamente, devia te mostrar o caminho.
- Mas eu achei que estava inconsciente!
- Semântica.
“(...) a vítima foi levada ao hospital (...)”
- A janela, não tem mais nada lá fora!
- Suas memórias estão se apagando.
- Mas o caminho, você disse que olhar pra trás... As lembranças...
- Você mesmo disse, algumas foram boas.
- Mas então... Os assuntos pra resolver...
- Às vezes você não pode fazer por si mesmo.
“(...) segundo os médicos não foi possível (...)”