A visita

Tá vendo esse quadro meu neto? Eu devia ter uns vinte anos, um tanto mais, um pouco menos, não importa. Era forte como um tronco, como um touro, tinha as mãos grandes e pesadas. Trabalhava na roça, roça do meu pai. Era pequeno o sítio, pobre, mas não chegava a passar fome, o que a gente plantava a gente comia e se sobrava, o que difícil era, guardava pra mais tarde ter valia. Essa cicatriz que levo no rosto, aqui, bem aqui, colada ao nariz, nessa época não tinha. Veja a foto mais de perto meu neto, meu rosto está liso, a não ser pela barba meio rala. Essa cicatriz ganhei em briga, com um tal de Zé da Tonha, homem de caráter vendido, safado, ladrão de galinha. Sacou do canivete que escondia no bolso e me cortou o rosto, o sangue escorreu, mais o dele depois que senti o gosto do meu. Brigas de homem.

Veja garoto, a foto é em preto e branco mas dá pra perceber o mato verde atrás de mim. Muita coisa fiz ali, antes dos vinte anos. Como idade sua agora, chutava bola, eu era bom, a molecada toda me queria no time. Time que eu jogava não perdia, pode acreditar, teu avô era craque filho. Não tinha sapato, muito menos chuteira, era tudo de pé descalço, sola grossa e não doía. Era cada partida! E tinha briga, mas não como as de homem. Briga de moleque é besteira, não tarda, já estamos amigos. Ali não tinha perigo, era só bicho do mato, nada mais. De vez em quando os mais velhos contavam histórias de bicho estranho. Era um que aparecia no meio da estrada depois sumia na sombra, outro que pulava o muro do cemitério e ninguém mais via, era estranho, dava medo.

Minha vida de moleque não esqueço filho, não tinha muito o que comer nem vestir mas era bicho bobo de alegre. De tudo a gente ria. Depois que o pai vendeu as terras, a gente se mudou pra cidade. Ruas de pedra, bares, uma praça e a igreja, essa que eu ia por obrigação da mãe. A cidade não era ruim, tinha mais gente, menos bicho estranho, assim não tinha medo ao me por pra dormir. Vida de moleque passa logo, já era rapaz responsável cedo e cuidava de trabalhar para ajudar o sustento de casa. E ai de quem não fosse, pai brigava de cinta, de deixar vergão nas pernas.

Nessa idade, a da foto, já namorava sua avó, que Deus a tenha! Cinco anos depois, um pouco mais um tanto menos, seu pai nascia. Era trabalhar mais pra garantir sustento. Só que trabalho era difícil. De vez em quando uma casa pra erguer, sentar tijolo, fazer massa, cobrir laje. Mas era pouco, o dinheiro e as casas. Carpia mato, enxada na mão de fazer calo, mas agüentava forte. O sol queimava a cabeça, nem boné adiantava. A marmita tua vó trazia sempre numa mão, na outra, teu pai. Não tardou e ele já era crescido, foi então estudar pra ser alguém na vida, melhor que o pai que nem contar sabia.

Teu pai é deu boa cabeça, terminou os estudos, conseguiu bom emprego e tirou a gente de lá, depois que meus pais se foram. Mas tenho saudade da roça, ainda mais da Rosa, que Deus a tenha! Grande mulher! Essa foto está em preto e branco meu neto, mas a vida do seu avô foi de muita cor. Hoje me dói um pouco o peito de lembrar tudo isso, mas é coisa de velho, em que dói tudo. Se não fosse teu pai, já teria partido meu neto, estaria talvez com minha bela Rosa passeando nos jardins do céu. Mas Deus não me chamou, acho que ainda não chegou minha hora.

Após ouvir a história o garoto sai e fecha a porta atrás de si. O horário de visita havia acabado.

João Daniel
Enviado por João Daniel em 15/02/2007
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