O pássaro e o hipopótamo

A árvore frondosa que ficava do outro lado da rua, isolada no terreno desocupado, cercado apenas pelo muro, era onde se postava diariamente aquele passarinho para colorir as manhãs com seu canto. Débora não chegava a vê-lo, pois ele estava sempre oculto entre as folhagens muito compactas.

Ela só saía de casa por absoluta necessidade. Buscava na rua o que precisava, inclusive os remédios de dona Edith, a mãe, acamada havia mais de três anos, e voltava logo. Mas não era só isso: Débora se olhava no espelho e se achava imensa; por isso não tinha coragem de se mostrar. Sentia-se muito envergonhada quando o médico chegava para visitar dona Edith. E quanto mais se decepcionava com o volume do seu corpo, mais comia.

Era filha única, e quando a mãe morresse iria ficar completamente só.

O passarinho cantava no início das manhãs, insistente, e era como se aquele canto fosse só para Débora. "Venha para a rua, apresente-se, Débora!" – parecia querer dizer a pequena ave, sempre oculta.

Ela se mirava no espelho que ficava na sala – um espelho oval e que só lhe mostrava o rosto –. quando deixava o quarto para ir cuidar de seus rotineiros afazeres. "Sou um hipopótamo!" – pensava, com profundo desprezo por si mesma.

Aquele espelho fora deixado ali pelo pai dela, pouco antes de abandonar dona Edith e a filha.

"Se eu fosse você, Débora, não botava a cara na rua. Olhe-se no espelho e veja como você está gorda!"

Aquelas foram as últimas palavras que guardou do pai. Ainda trazia consigo a lembrança do desprezo estampado na fisionomia dele, quando dissera aquilo.

Dona Edith ficara doente logo em seguida, e Débora, que já era, por natureza, arredia e acabrunhada, tinha agora dois fortes motivos para não mais sair de casa: a doença da mãe e a gordura apontada pelo pai.

Mas o passarinho parecia chamá-la todas as manhãs: "Venha, Débora, venha cantar, dançar, viver!"

As horas de folga ela costumava passar pensativa, recordando a sofrida infância. O pai era mesmo uma pessoa má. Espancava esposa e filha com frequência, e as humilhava. Débora crescera assim: sentindo-se um bichinho feio e estúpido. No entanto, era linda. Mas não podia crer nisso, pois as "verdades" que o pai proferira anos a fio sempre estiveram incrustadas em seu espírito.

O estado de saúde de dona Edith se tornou mais grave. Os únicos parentes eram a tia Mercês, o marido desta, e Júlia, a filha do casal. Moravam no outro lado da cidade. Débora não tinha alternativa: precisava ligar para a tia, a quem vira pela última vez quando ainda era criança. Não gostaria de se mostrar nem mesmo a essa parenta, pois ninguém deveria ver a sua gordura. Mas, se a mãe morresse, como ela iria cuidar de tudo?

Ligou, e a tia veio com o marido e a filha. Chegaram a tempo de presenciar os últimos momentos de dona Edith.

Cuidaram do funeral e deram todo o apoio possível à órfã. Sugeriram que ela fosse morar com eles. Em vão.

"Vou ficar aqui até emagrecer. Quando eu não for mais um hipopótamo, eu procuro vocês!"

Júlia, que não a via desde a infância, tentou dissuadi-la:

"Prima, cê tá maluca? Eu nem sabia que você tinha ficado assim tão bonita; era tão magrinha e agora ficou mais encorpada, muito linda!"

Desistiram de convencê-la, mas ficaram de lhe telefonar de vez em quanto.

Já tinha dezenove anos e agora precisava de muita coragem.

O passarinho – seria ainda o mesmo? – seguia cumprindo a sua missão. Toda manhã chamava a moça para viver.

Certa vez, ele resolveu cantar também à tarde. Ela então resolveu atravessar a rua quase deserta e ir até a árvore para tentar vê-lo entre as folhagens. Passou por uma abertura que havia no muro e entrou no terreno vago. Ali havia restos de materiais de construção, paus, pedras, arames, latas velhas e outros objetos abandonados.

Encostado no muro, num canto, havia até mesmo um velho espelho, grande, liso, que podia mostrar o corpo inteiro de uma pessoa.

Com a atenção toda voltada para a copa da árvore, Débora procurava avistar o passarinho. Ele não cantava mais nesse momento, talvez por considerar que cumprira sua missão.

Débora rodeava a árvore, sempre olhando para cima. Em certo momento, deu alguns passos para trás para verificar a parte mais alta da espessa copa. Seu calcanhar roçou de leve numa superfície lisa. Virou-se e viu que se tratava de um espelho. Num primeiro momento, não quis se aproximar para não perder a coragem de continuar a procurar o passarinho, depois que se deparasse de novo com o hipopótamo que ela julgava ser.

Mas, depois de algum tempo, tendo já desistido de avistar o passarinho, resolveu, antes de passar de novo para o lado de fora do muro, dar uma olhadinha no espelho. Viu-se, finalmente, como verdadeiramente era: uma linda moça de belas curvas e invejáveis proporções. Olhou-se de novo, várias vezes, naquele espelho, que não distorcia sua imagem como o que o pai deixara na parede da sala.

Quando passou de novo pela abertura do muro para voltar para casa, admirou-se de não ter se dado conta, antes, de que se tratava de uma abertura relativamente estreita. Jamais um hipopótamo, mesmo filhote, teria passado por ali.

Entrando em casa, correu ao telefone para falar com Júlia, e, gritando, enlouquecida de entusiasmo, disse que havia acabado de nascer.

Em seguida, pegou o velho martelo que fora do pai e encaminhou-se para o espelho da sala – o único da casa. Viu ainda uma vez seu rosto disforme, imenso, e quis ver também como ficava o martelo. Este também se apresentava mais como se fosse uma grosseira marreta, enorme e deformado.

Não esperou mais. Com poucas marteladas, espatifou o espelho, juntou seus restos e os colocou na lixeira da rua.

Entrou de novo em casa e, cantarolando, foi se arrumar para sair à noite com a prima Júlia.