Por que Carlim corre nu pelas ruas?

Padre Wald`Homero cruzou os braços e pôs-se a ouvir dona Almira, fitando-a impaciente, de má vontade. Pelo jeito aflito, pelo alvoroço que a beata mostrava nos olhos inquietos, o vigário pensou: "Mais uma, meu Deus! Até quando... Sai uma, entra outra. Oh, vida!". Aquela era a quarta beata aflita que vinha lhe contar a novidade: Carlim fora visto a correr pela rua, nuzinho em pelo, noite passada!

- Eu não acredito nisso – disse Padre Wald`Homero, com veemência. – Qualquer pessoa faria isso, menos Carlim. Em Pará de Minas não há moço mais equilibrado.

- Mas... Padre, eu estou dizendo, muita gente viu. Era Carlim mesmo. Dizem que ele correu toda a Rua Benedito Valadares. Agora o senhor imagine só: a rua principal da cidade!

- Pois continuo afirmando: não acredito. Talvez seja alguém parecido, um sósia, sei lá... Carlim é que não foi.

Dona Almira quis continuar, mas o padre fez meia-volta e a deixou falando sozinha.

No entanto a notícia se espalhava pela cidade, veloz, inquietante, escandalosa. O episódio, por mais inacreditável que fosse, havia sido visto por muitas pessoas, tinha o testemunho de gente respeitada na comunidade: Carlim realmente percorrera, nu, toda a extensão da Benedito Valadares.

Nas lojas, nos bares, nas praças, o assunto era um só. Fernanda mal abriu a sapataria e foi logo comentando com Márcia: "Cê viu, menina, que coisa! Quem diria que Carlim fosse capaz de fazer o que fez...”.

- E o que foi que ele fez? – indagou a colega, ainda com olhos sonolentos.

- Então você não sabe? Mas a cidade toda já comenta. Ontem à noite Carlim saiu desembestado rua afora... nuzinho!

Os olhos de Márcia acabaram de acordar e se arredondaram de espanto: “O quê?!''. Depois soltou uma risada, encarou Fernanda e disse: ''Ora, Fernanda... Brincadeira tem hora. Credo! você tem cada uma...''.

- Não, Márcia, eu falo sério. Todo mundo viu. Eu estava lá, eu também vi. Acho que Carlim pirou.

- Pois eu só acredito se o próprio Carlim confessar.

- E você acha que ele vai confessar uma coisa dessas? A essa hora já deve ter fugido da cidade.

- Duvi-de-o-dó. Conheço Carlim há anos. Já namorou minha prima. Por ele eu boto a minha mão no fogo.

No entanto, sucedeu que Carlim, de fato, deixara Pará de Minas precisamente naquela manhã. Fora visto na rodoviária, preparando-se para embarcar. Mais tarde soube-se, pelo amigo Amaral, que ele teria ido a Belo Horizonte a fim de participar de um curso. Voltaria em uma semana.

Durante toda a semana não se falou noutra coisa na cidade. Os amigos de Carlim ansiavam por sua volta; sabiam que aquela história só podia ser um tremendo mal-entendido, mas... as testemunhas eram convincentes: ''Foi Carlim, eu vi, todo mundo viu!''.

Amaral, o amigo mais chegado, revoltava-se com os comentários: ''Carlim não ficou nu porra nenhuma! Eu vou acabar dando uma porrada num filho da puta desses!''. Sochico, o irmão gozador, ficou foi rindo, no que foi seguido por Cargil e Mário, os outros irmãos; Ana, a irmã, ficou chocadíssima, e os outros irmãos todos se revoltaram com a notícia. Ana pediu calma: ''Gente, a Mãe não pode saber, senão ela tem um troço''.

O Jornal da Semana reservou espaço para a manchete: ''CARLIM CORRE NU PELAS RUAS DO PARÁ''. E a Rádio Santa Cruz também deu grande destaque ao assunto, inclusive conversando com os ouvintes, o que acabou resultando numa enquete com resultado plenamente favorável a Carlim: a maioria absoluta dos entrevistados não acreditava que fora Carlim o autor da façanha.

Mas, se tanta gente viu, ''tanta gente séria'', como se apregoava pela cidade... No entanto, alguma coisa dera em Carlim, pois o certo é que ele não se lembrava de nada. Ou melhor: lembrava de ter corrido nu, de alguma forma isso ocorrera, mas era como se tudo não tivesse passado de um sonho: ele, nu, correndo pela Rua Benedito Valadares, as pessoas exclamando: ''Oh, não é possível!'', tudo muito rápido, não se lembrava de ter saído de casa nu, nem de outro lugar, só se lembrava da corrida ao longo da rua – saindo da rodoviária, subindo, ganhando a rua principal e virando na última esquina. Era tudo do que se lembrava, ou melhor: era tudo o que ele acreditava ter visto em sonho. E quando sentia um pouquinho mais de ousadia para se perscrutar, ainda ouvia uma vozinha safada perguntar lá de dentro: '' Sonho? Foi sonho mesmo?''.

Naquele primeiro dia de curso, Carlim mal ouviu as palestras. A vozinha lá dentro o importunava cada vez com mais insistência: ''Sonho?''.

À noite procurou os amigos de Belo Horizonte. Moacir Papo-Bom foi o primeiro a chegar à Pizzaria Porto. Chegou, pediu uma Brahma, e antes de esvaziar o copo, Carlim chegou em seu melhor estilo, fazendo aquele estardalhaço todo, vibrando de contentamento ao encontrar o amigo, dando-lhe de raspão – mas com força – um tapa na cabeça, antes do fraternal abraço. Daí a pouco chegaria o outro componente do inseparável trio: Júnior Marcha-Lenta. Iriam reeditar mais um dos inesquecíveis e saudosos encontros na Augusto de Lima com Rio Grande do Sul.

Quando Júnior Marcha-Lenta chegou, alegre por rever o amigo, mas ainda assim sem abandonar o seu jeito fleumático, Carlim já havia introduzido o inevitável assunto. Interrompeu-o, porém, para cumprimentar o recém-chegado. Abraçaram-se, e Júnior se ajeitou sem pressa na cadeira, pedindo aos dois que o colocassem a par da conversa. Carlim resumiu a história e, ao final, notou que o Júnior estava esquisito. Algo o angustiava. Mas disse que não era nada, que estava apenas cansado, etc. Mas continuaram desconfiados: algo grave estava com certeza conseguindo abalar a calma quase letárgica de Júnior Marcha-Lenta.

- Foi isso, concluía Carlim sem muita convicção: um sonho.

- Mas você... – Moacir hesitou em dizer o que pensava.

- Pode dizer, cara! Já sei: você pensa que eu tô louco.

- Não, é que... você nunca teve, talvez na infância, alguma crise de sonambulismo, coisa assim? É que, como você narrou, tudo parece tão real... Talvez você tenha se levantado, tirado a roupa e saído assim, numa boa, entende?

- Quê isso, bicho, sem essa! Será?...

Júnior Marcha-Lenta – que até então permanecera calado, mas sempre se mexendo na cadeira, inquieto – nesse momento resolveu se manifestar, e de um modo tão resoluto que causou certo espanto aos amigos:

- Pra mim, essa é a hipótese mais plausível - essa do Moacir.

Carlim quis pensar que se tratava de uma gozação, mas nunca ouvira Júnior falar tão sério e tão convicto.

- Júnior, você acredita mesmo que eu seria capaz... Olha, o sonambulismo eu até admito, mas eu jamais sairia nu. Pô, pelo amor de Deus, gente, cês me conhecem!

Júnior continuava esquisito, misterioso. E olhava Carlim com um ar desconfiado. Sua fisionomia era pesada, o olhar sombrio. Ele jamais estivera assim.

- Fala logo, Júnior – pediu Carlim.

- Falar o quê?

- Diz logo que bicho te mordeu. Tá me olhando muito esquisito.

- Tá bom. É que ligaram de Pará de Minas, lá pra minha casa. Sua namorada, a Lucinar... Ou Luciney...

- Lucimara. Mas o quê que tem ela?

- Ela me ligou aflita e me contou uma história muito estranha... – E Júnior Marcha-Lenta pisou no freio mais uma vez, numa pausa hesitante, fitando alternadamente Moacir e Carlim.

- Fala de uma vez, pô! – impacientou-se Carlim. – Eu tô quase tendo um troço aqui.

- É o seguinte – decidiu-se Júnior, engatando uma primeira: ela disse que ontem à noite você foi visto correndo nu pelas ruas.

- Carlim e Moacir se entreolharam embasbacados. Ficaram algum tempo assim, boquiabertos, sem reação. Quando conseguiu falar, Carlim exclamou: ''Puta merda! E agora, Moacir?

Moacir, após pensar um pouco, esvaziou o copo e disse:

- Gente, cês sabiam que pode haver uma terceira possibilidade?

- Como assim? – animou-se Carlim.

- Bom, vamos considerar o que temos. Primeiro tínhamos apenas um sonho, ainda que revestido de muito realismo. Depois aventamos a hipótese de sonambulismo, que bate perfeitamente com o que o Júnior nos revelou, o telefonema da Lucimara e o que ela disse. Está claro que o Júnior não inventou nada disso, portanto não podemos negar que você realmente foi visto correndo nu pela rua. Mas eu pergunto: teria sido mesmo você?

- Mas – retrucou Carlim – se eu realmente fui visto nu na rua, e se tive o tal sonho... Olha, por mais absurdo que pareça, a lógica me obriga a pensar que...

- Espera um pouco. Você pode muito bem ter sonhado no exato momento em que um outro sujeito, talvez parecido com você, corria pela rua... nu, é claro. Agora, chame isso de telepatia, capacidade sensitiva ou... incrível coincidência, sei lá. Você sabe que eu sou o cara mais cético da paróquia, mas... pelo amor de Deus! Você sabe, nós sabemos que você não faria isso nem dormindo, nem drogado, nem por todo o dinheiro do mundo.

Júnior Marcha-Lenta, que não era tão cético como o Moacir, e que, com sua mania de querer explicar tudo pela astrologia às vezes até enchia o saco, falou:

- Acho que o Moacir tá certo, Carlim. Enquanto você dormia, tendo a mente relaxada, desarmada, pode muito bem ter captado a imagem do maluco na rua. Isso é perfeitamente possível. Você tem a Lua em Peixes e o Sol na Casa doze. Pessoas assim são sensitivas; algumas são até médiuns.

Os companheiros riram, sem levar muito a sério as excentricidades de Júnior. Ficaram mais relaxados. Ergueram um brinde ao indispensável Marcha-Lenta.

Naquela noite não tocaram mais no assunto. Era necessário aproveitar o reencontro. Até a mesa era a mesma que ocupavam há anos. E até o final da semana voltariam a se encontrar. No mesmo endereço, na mesma mesa, e o mesmo garçom viria com o mesmo sorriso e a Brahma gelada.

Não foi fácil para Carlim aguardar o final do curso e da semana, apesar dos telefonemas todas as noites para os irmãos e a namorada. A cada telefonema ele se atormentava mais, pois ficava sabendo das fofocas que ganhavam até localidades vizinhas. Os amigos e familiares tentavam defendê-lo, mas as evidências...

Mas veio enfim o sábado, e às treze horas ele embarcava de volta para sua terra. Foi difícil passar uma hora e meia dentro do ônibus, e, quando desembarcou, foi difícil se desvencilhar dos curiosos, todos querendo ver a cara do ''tarado da meia-noite''. Entrou depressa no carro do irmão e seguiram para casa.

Passou a tarde de sábado em casa. Os parentes e a namorada, solidários, tentavam tranquilizá-lo, convencidos de sua inocência. Por outro lado, dona Nadia, a mãe, não sabia de nada. Durante toda a semana esteve a salvo das fofocas, graças aos filhos, que sempre davam um jeito de evitar que a notícia lhe chegasse aos ouvidos. Mas foi preciso muita presença de espírito para explicar-lhe por que Carlim estava tão abatido e por que todos tentavam consolá-lo.

- O que houve com Carlim?

Amaral, o amigo, começou a balbuciar, Ana olhou aflita pra Sochico, e este, com toda a calma, falou:

- Ô, Mãe, a senhora sabe que Carlim é cruzeirense doente. Ele tá assim porque o Cruzeiro perdeu feio no Mineirão. Não esquenta não, Mãe. Daqui a pouco a gente vai levar ele pra tomar uma Brahma.

Brahma? Que Brahma, que nada. Naquele sábado não saíram. Ficaram ali, jogaram truco, conversaram. Dormiram.

No dia seguinte, Carlim foi o primeiro a acordar. Tomou café e daí a pouco chegou o Amaral.

- E aí, Carlim, como é que passou?

- Dormi bem. Eu ontem tava cansado demais.

- E o que você vai fazer?

- O quê que eu vou fazer... Essa é boa. Vou pro clube, claro.

- Clube? Tá louco, cara? Como é que você vai sair na rua com todo mundo pegando no seu pé?

- No meu pé? Puta merda, é mesmo, eu tinha esquecido... A história de correr pelado... Pô, cara, o quê que eu faço agora?

- É, bicho, tá foda.

- Ficar em casa preso eu não posso.

- Espera um pouco, Carlim: tenho uma ideia!

- Ideia? A última que você teve...

- Fica aí que eu vou lá em casa e já volto.

- ???

Amaral saiu depressa e, minutos depois, voltou com uma mochila.

- Quê isso, cara?

- Uma mochila, uai.

- Engraçadinho. Quê que cê vai aprontar?

Amaral abriu a mochila e tirou dela um terno escuro, uns óculos-esporte de lentes enormes, uma peruca de cabelos escuros e encaracolados e uma barba postiça. Carlim caiu na gargalhada.

- Cê pensa que eu vou usar isso pra ir no clube?

- Não. No clube você não vai de jeito nenhum, que você não é doido. A gente vai dar umas voltas por aí, só pra testar.

- E se alguém descobrir? Aí eu tô ferrado.

- Ninguém vai descobrir, sô. Deixa comigo.

Na verdade foi fácil convencê-lo. Carlim não ligava muito pro azar. O diabo era o calor daquele outubro. Mas foi divertido. As pessoas cumprimentavam Amaral e ficavam olhando para aquele sujeito esquisito, de terno escuro debaixo daquele sol. À noite as coisas talvez se tornassem até mais fáceis.

- À noite vai ser sopa, disse Amaral. Você só não pode é sair com a Lucimara. Já pensou? Você sai com ela hoje, com esse disfarce, amanhã, além de tarado, você é chifrudo.

- É verdade, hein, cara. Puta que pariu!

Os dois entraram rindo na sala. Dona Nadia soltou uma risada feliz. Carlim ficava realmente engraçado com aquele disfarce. ''Eta meninos. Sempre aprontando!''

À noite foram ao Bar do Geraldinho. Amaral teve o cuidado de escolher a dedo os amigos para aquele encontro. Contou-lhes todo o drama de Carlim. Quando os outros chegaram, os dois já estavam à espera. Ao verem Carlim com aquele disfarce previamente anunciado por Amaral, dispararam a rir. Mas advertidos pelo amigo, se contiveram. Para todos os efeitos aquele não era Carlim.

Repetiram a façanha inúmeras vezes, mas certa manhã Carlim apanhou o jornal debaixo da porta da sala e, estupefato, leu a seguinte manchete: ''CARLIM REPETE A DOSE: OUTRA VEZ NUZINHO!''. De repente, lembrou: o sonho! Sim, voltara a ter o mesmo sonho a noite anterior. Tudo igual: ele correndo nu... Mas então... Então não podia ser sonho; tratava-se mesmo de sonambulismo. Sim, precisava se tratar. Correu e mostrou a manchete aos irmãos.

- Sonâmbulo, gente; eu sou sonâmbulo!

Decidiu tratar-se. Usando o disfarce, procurou o Dr. Siqueira. Iniciou-se logo o tratamento.

Agora Carlim só se encontrava com a namorada em casa dela ou na sua própria casa. Mas, sempre disfarçado, continuava a sair com os amigos.

Aos poucos tudo foi voltando à normalidade. A notícia de que Carlim era sonâmbulo e estava se tratando serviu para que as pessoas dessem o caso por encerrado e fossem cuidar da vida.

Mas numa noite quente e enluarada, um acontecimento atingiu como uma bomba a população. Era madrugada de sábado para domingo. Havia muitas pessoas nos bares e na pizzaria, inclusive Lucimara e Ana. De repente, todos viram Carlim passar feito uma bala pela rua... completamente nu! Ainda olhou para o lado das pessoas, meio envergonhado, e continuou a correr, numa velocidade incrível, pela rua afora.

Lá no final da rua, ouviu-se um barulho de um carro brecando e cantando pneus, seguido de um baque violento. De longe se viu o corpo nu sendo lançado a grande altura e caindo inerte.

A multidão, aterrorizada, acorreu em desespero. Havia gritos e desfalecimentos. A polícia imediatamente isolou o local e os guardas a custo conseguiam conter a turbamulta. Mas Ana e Lucimara, tresloucadas, conseguiram burlar a segurança, romperam o cordão de isolamento e foram se debruçar sobre o corpo do morto, cuja nudez já havia sido coberta por um lençol. Soluçavam sobre o defunto, ante a multidão aparvalhada.

Os rapazes do Bar do Geraldinho chegaram correndo, ofegantes. Entre eles Carlim, o verdadeiro, que quando viu o seu sósia - fugitivo, aliás, de um manicômio - estendido no chão, mortinho da silva, livrou-se depressa do disfarce e, mal contendo uma gargalhada, abraçou a irmã e a namorada, que ainda soluçavam. Depois, voltando-se para os amigos, distendeu o semblante num sorriso irreverente e saiu saltitando ao lado deles, de volta ao bar.