O porco que bebia Coca-cola

Sebastião Fonseca – o Delegado Fonseca –, sempre previsível em seus horários, deixou o bar no mesmo horário que se estabelecera há meses, embora fosse sábado. Despediu-se dos amigos e seguiu sereno para casa. Antes costumava demorar-se mais; porém, talvez por cansaço, talvez por simples falta do que fazer numa cidade tão sem graça, agora se recolhia mais cedo. Às dez e pouco abria o portão e se dirigia para a porta principal da velha casa em que morava com a mulher, Dona Dulcinha.

Girou a chave na fechadura, abriu a porta meio distraído, entrou cabisbaixo, lento, cansado.

Estacou de súbito, encostando-se à parede para não cair. Um porco estava na sala, refestelado no sofá, latinha de refrigerante na mão, comendo pipoca e vendo TV! Um porco onde deveria estar Dulcinha, sua mulher! Um porco que comia como gente, bebia como gente e via TV como gente!

“Não bebi tanto assim!” – pensou ele, antes de se esborrachar no chão, desacordado.

Meia hora depois, o delegado recobrou os sentidos e viu diante de si Dulcinha, sua esquelética e dentuça mulher.

- O que aconteceu, Dulcinha?

- Não sei, Tião. Ouvi um barulho, cheguei aqui, vi você estatelado no chão...

- Ah, espera, espera: lembrei. Mas... não, não é possível...

- Não é possível o quê, homem?

- Um... um... um porco, Dulcinha! Tinha um porco ali, vendo... televisão! No sofá, Dulcinha, eu juro!

- Tião, cê tem que parar de beber...

No sábado seguinte a coisa se repetiu: o delegado chegou em casa, no mesmo horário, viu de novo o porco no sofá, tomando Coca-cola, desmaiou de novo, etc. Cardíaco, podia ter enfartado. Mas ainda não foi dessa vez.

No terceiro sábado, um anjinho encapetado cochichou um trem na orelha do Dr. Fonseca.

- Quer saber, gente: acabando esta cerveja eu vou pra casa.

- Mas não são nem nove horas, delegado!

- Quero ir mais cedo hoje.

Despediu-se dos amigos e foi. A pé, para não se anunciar. Meia hora de chão. Aquela história do porco tinha de ser esclarecida.

Chegando, contornou a casa, entrou no quintal, esgueirou-se entre as sombras das árvores frutíferas e se aproximou, deslizando furtivo rente à parede dos fundos.

Pôs-se a escutar atento. Risos de Dulcinha! Gritinhos de Dulcinha! E uma voz de homem fanhoso. De quem? “Ah, safado! É você!” – disse consigo o delegado, mal contendo a indignação.

Respirou fundo e prosseguiu em sua escuta. Depois dos risinhos e gritinhos, chegou aos seus ouvidos o seguinte diálogo:

- Será que hoje ele enfarta, Dulcinha?

- Não sei, Nestor...

- Pra mim, já chega desta história de porco no sofá. É só mais hoje.

- Se ele escapar de novo, a gente bota ele no hospício. Tá na cara que ele é doido. Porco vendo TV! – motejou Dulcinha, e explodiu numa gargalhada.

- Não, hospício, não. Veneno de rato. É tudo ou nada – disse o fanhoso Nestor, Chefe do Almoxarifado da Prefeitura.

- Então, anda, põe essa máscara direito. A sorte é que Tião é míope e detesta óculos...

O Dr. Fonseca esperou ainda algum tempo. Aproveitou para estabelecer um plano de ação que garantisse o seu êxito aquela noite. Então o cachorro do Nestor se vestia de porco! Filho da puta!

Procurou uma corda em seus guardados no quartinho próximo à porta da cozinha, fez com ela algumas voltas em torno do braço, sacou o revólver e contornou sorrateiro a casa, em direção à porta da sala. Esperou um pouco mais, até perceber que o “porco” já tinha ido para o sofá. Ouviu o estalo da latinha de Coca-cola. Abriu a porta devagar, com a arma apontada para a cabeça do suíno. Aproximou-se pé ante pé e encostou o revólver nas têmporas de Nestor, exigindo-lhe silêncio. Com a destreza que a idade não lhe roubara, fez com que a corda contornasse várias vezes o corpo do assustado almoxarife. Em seguida foi ao quarto e encontrou Dulcinha ainda nua, de olhos arregalados, assustada com a arma que o marido lhe apontava. Arrastou-a para junto do outro, não permitindo que ela se vestisse.

Minutos depois, sob a luz da lua cheia, o delegado Fonseca adentrava a praça principal da cidade, tendo à frente, sob a mira de seu revólver, Dulcinha e um porco. Disparou para cima alguns tiros e chamou o povo. Dulcinha cobriu-se como pôde, mãos espalmadas sobre os seios e a genitália. O “porco”, que também estava nu sob aquele disfarce suíno, tremia, adivinhando o que faria o maluco do Dr. Fonseca.

O povo rapidamente acorreu em grande burburinho, acotovelando-se em torno da praça para ver o que o delegado tinha para mostrar. Ele disparou mais alguns tiros para o ar, para que a multidão se aquietasse.

Fez-se então silêncio, e o Dr. Fonseca começou:

- Olha só, gente: minha mulher com um porco. Cês acreditam nisso? Minha mulher me traía com um porco! Vamos fazer uma aposta aqui. Cada um bota o dinheiro que quiser. Quem acertar o nome do safado que está dentro desse disfarce leva o dinheiro todo. Ô, Vicente, disse ele, dirigindo-se a um cabo de polícia, você recolhe a grana. Se alguém acertar, leva tudo.

Ninguém acertou. Até o nome do prefeito foi citado, mas do Nestor ninguém se lembrou. O delegado então, tomando do Cabo Vicente a caixa cheia de dinheiro, guardou a metade para si e ordenou a dois soldados que retirasse a roupa de porco que Nestor vestia.

Reações de surpresa, de revolta, e apupos tomaram conta da praça. Nestor, lívido, encolhido ao lado de Dulcinha, também cobria com as mãos os genitais.

O delegado Fonseca voltou a falar:

- Primeira coisa, gente: ninguém vai emprestar roupa pros dois. Eles vão ter que sumir daqui nuzinhos em pêlo, como merecem. Segunda coisa: como ninguém acertou o nome do safado, a metade do dinheiro fica comigo e o restante eu quero, agora, na presença de todos, entregar pro Nestor, pra ele levar a Dulcinha daqui pra sempre. Faço questão disso. A perereca dela fede demais...