No vale das borboletas

Eu caminhava distraído, olhando as serras que se desdobravam rugosas, num verdor que nas dobras ganhava um tom mais escuro, chegando quase ao negro puro no mistério penumbroso que eu queria desvirginar. Eu teria meus dez, onze anos naquela manhã de maio que, como tantas outras, já se teria diluído na indistinta névoa de um passado distante; no entanto...

A manhã era límpida e amena. Eu me lembro até do orvalho, do matinho molhado e ralo roçando meus tornozelos, meus pés nos pedregulhos da trilha estreita que ia contornando a serra salpicada de cavalos, bois e anus. Eu ia só - eu era só. Saíra de casa cedo, esgueirando-me por entre as bananeiras do quintal até ganhar a rua de baixo sem que minha mãe me visse. Fazia isso sempre. Logo que atravessava a BR, chegava ao pé da serra e começava a subir. Bodoque na mão e um calorzinho gostoso no peito. O bairro terminava ali. Em casa estava a Mãe sozinha, sem saber de mim; o Pai, no árduo trabalho. E eu subindo a serra - só e gostando de ser só.

Então fui caminhando e sentindo aquele deslumbramento que nunca se esgotava, renovava-se a cada manhã, a despeito de ser o cenário invariável. Às vezes o simples ''pinhéu'' de um gavião me fazia estremecer, arrancando-me daquele embevecimento. Após a breve subida, longo trecho da caminhada era plano, embora feito da mesma trilha estreita que prosseguia em curvas sucessivas, curvas que, contornadas, deixavam ver, lá embaixo, no fundo do vale estreito, um ou outro casebre de pau-a-pique, porcos, galinhas, crianças barrigudas e descamisadas, fumacinha na chaminé, e o pequeno fio d'água rolando preguiçoso. Eu acabava indo até ele, descendo a encosta íngreme, derrapando muitas vezes no terreno de vegetação rala. Chegava lá naquele fundão, tirava o tênis, entrava n'água e ia andando no sentido contrário ao daquele curso cristalino e raso, sentindo a água fria nas canelas, os pés afundando um pouco na areia, olhando as pedrinhas lisas e escuras, imóveis, impassíveis sob a água corrente.

Certa vez, numa dessas minhas descidas ao acaso, sem escolher o ponto, acabei me deparando com uma choupana, uma casinha de sapé, bem à beira do córrego. Um velho sentado no chão, sem camisa, de calças arregaçadas, estava ao lado da casinha, silencioso, absorto entre cipós, embiras e taquaras. Aproximei-me dele, curioso. Curioso e surpreso por aquela presença que eu não notara de longe. Era um homem mínimo, claro, magro, quieto, só tendo em movimento as mãos ágeis e hábeis. Tudo era silêncio em volta, nada indicava a presença de mais alguém lá dentro da casa. Cheguei perto, respeitoso.

- Bom dia, cumprimentei.

- 'Dia! - ele respondeu, algo sobressaltado. Não percebera a minha aproximação antes daquele momento, mergulhado inteiro em sua tarefa.

Não era tão velho, talvez apenas antigo de solidão e rugas. Sorriu um sorriso franco e desdentado, interrompendo o trabalho, mas segurando ainda o esqueleto de um futuro cesto de taquaras.

- Que bacana os balainhos! - exclamei, olhando uma série de pequenos cestos pendurados e enfileirados ao longo da parede rústica.

- São o meu ganha-pão, ele respondeu, ainda me olhando curioso. Depois indagou: ''Mas você não é daqui. Veio sozinho, filho?''

- Sim, sempre faço passeios por essas bandas.

- E não tem medo?

- Não. Já me acostumei.

- (...)

Conversamos muito aquele dia. Era o começo de uma amizade que foi rapidamente fincando suas raízes à beira daquele singelo regato. Ele, tão frágil e pequeno - devia ser do meu tamanho, se tanto. E era só, muito só. E me contou muita coisa, me contou, em sucessivas manhãs, toda a sua vida. Com o tempo, passou a me esperar, e quando eu atravessava o pequeno rio, calças arregaçadas, pés descalços, tênis atirados à outra margem, já podia sentir o aroma do café recém-coado. Eu chegava meio tímido, mas sorridente, ele me fitava e eu via brotar no fundo opaco de seus olhinhos uma luzinha tênue, como um nadinha de brasa apontando sob a cinza soprada por súbito vento.

Ensinou-me muito; tinha tempo, sossego e paciência.

*

Pois naquela manhã de maio eu tinha urgência em ver o velho. Tivera um sonho aquela noite e queria comentar com ele. Era só com ele que eu comentava os meus sonhos, sempre tinha a esperança de que ele os interpretasse. Era um velho sábio e tirava lições dos sonhos - até dos pesadelos. Antes de meu primeiro encontro com ele, uma ou duas noites antes, eu havia sonhado com a minha própria imagem refletida no espelho, só que minha cara estava toda enrugada - eu era um menino, mas subitamente envelhecido. Só muitas manhãs depois é que fui me lembrar desse sonho. E quando contei ao velho, esperando uma interpretação óbvia (que o menino enrugado era ele próprio, que haveria de me receber naquele vale, etc. e tal), o espertinho limitou-se a sorrir e começou a me falar de rugas, velhice, essas coisas. Na manhã seguinte, mais filósofo, ele me veio com essa: ''Rugas, meu filho, não são mais que cemitérios de sonhos. ''

- Cemitérios de sonhos? - estranhei.

- Sim. Os nossos sonhos às vezes são como flores tenras, coloridas, perfumadas, que um dia murcham, secam, vão diminuindo, enquanto uma ruguinha vai se formando em nosso rosto. Quando a ruguinha está pronta, o defuntinho de sonho vem e se aloja lá no fundinho dela.

- Mas isso é muito triste.

- Sim, mas isso só acontece com os sonhos que não se realizam, fique tranquilo. E algumas vezes não realizamos um sonho por simples falta de coragem, de iniciativa. Então as rugas vão surgindo. Outras vezes, corremos atrás do sonho errado e, nesse caso... haja rugas!

Aquela história de rugas, cemitério de sonhos, flores murchando... Aquilo pairou em meu espírito por muitos e muitos anos.

*

Segui a longa trilha estreita com o mesmo deslumbramento de sempre, apesar da pressa em estar com o velho aquela manhã. Nada vencia o fascínio que aquela geografia exercia sobre mim. Alcançando, porém, a curva que deixava ver o casebre lá embaixo, desci afoito, deixando-me deslizar aqui e ali sobre a gramínea úmida, algumas vezes me desequilibrando e caindo, rolando morro abaixo, mas chegando, me aproximando do velho lá embaixo. Eu tinha dez anos, aquilo era festa. Quando desci, já fui logo gritando de longe, enquanto ainda atravessava o córrego, de tênis e tudo:

- Tive um sonho, seu Chico! Um sonho e tanto!

Seu Chico veio vindo lá de dentro, uma caneca na mão, sempre fleumático o velho Chico. Me olhou sorrindo, com aquela expressão de vovô pra netinho, e me pediu que sentasse antes de falar. Sentei, mas, ainda ofegante, fui narrando o sonho:

- Uma menina, seu Chico, linda a menina, e as borboletas, a música... Era um lugar como este aqui, um vale. Mas tudo muito luminoso, alegre. E as borboletas, tantas...

O velho ouviu-me impassível como sempre. Tentei detalhar, ser claro, mas o meu entusiasmo... Eu tinha dez anos, e a menina... a menina era linda.

- Vá, meu filho – ele me disse, após ouvir-me; vá, que o verbo ir é o verbo dos jovens. Vá, vá encontrar o seu sonho.

- Como assim, seu Chico?

- Ora, você não disse que é num vale, que tudo acontece num vale como este? Pois siga em frente, há muita coisa daqui pra cima; você nunca passou daqui, não é mesmo? Vá subindo, seguindo o curso d'água ao contrário. Lá em cima deve estar seu sonho.

Despedimo-nos. Eu saí dali pensando nas rugas, nos sonhos sepultados pelo velho. Hoje, relembrando aquela manhã, percebo o quanto precisei me procurar e me esconder nas dobras do sonho para permanecer nesta sobrevida que me permite jogar de novo a luz das reminiscências sobre aquele vale...

A menina. Tinha a menina, tinha o vale, tinha a música etérea vinda do espaço indistinto, infinito, cósmico. E tinha as borboletas com seu bailar angélico. Era o meu sonho. Eu contara tudo ao velho, em minúcias, embora aos atropelos:

"- Quando o relógio fez priiiiiiim! no quarto do Pai e da Mãe, a menina, no meu sonho, tinha acabado de me abrir os braços, sem deixar de dançar no meio de um monte de borboletas."

''- E você veio direto pra cá?''

''- Claro. Fingi que não queria nada, tomei café devagar, escovei os dentes, troquei de roupa, peguei uma revistinha do Tio Patinhas, fiquei folheando, despistando a Mãe. Quando ela distraiu, larguei a revistinha, calcei o tênis e dei no pé. Tinha de falar com o senhor. ''

*

Fui caminhando contra a corrente, ora pisando n'água, ora andando ao lado do riachinho, pisando no mato ralo, no chão pedregoso. O sol foi ficando forte, aquecendo as pedrinhas, queimando os meus pés descalços. Pisava n'água, pisava em terra - água, terra, água, terra... Olhei o céu: estava azul, sem nuvens. À medida que caminhava, começava a perceber algo estranho no ar. Um cheiro, isso: um cheiro forte, cada vez mais forte, desagradável. Havia pássaros longe... Ou borboletas? Não, pássaros. Muitos pássaros escuros. Eu já andara muito. O calor, o cansaço... Comecei a sentir uma espécie de cegueira, fui ficando meio fora de mim. Continuei caminhando, mas cheguei a um ponto em que já não sabia nem onde estava; não via nada, não ouvia nada. Parei e não sabia se ali havia uma casinha, animais, pessoas... Deitei-me. Adormeci.

Quando acordei, senti o forte odor, ouvi o bater de asas longas. Esfreguei os olhos para ver melhor.

E vi. A poucos metros de mim estava a menina, perto da casinha, de braços abertos, deitada de costas. Os urubus sobrevoavam. E o primeiro deles desceu.