Vagava uma sombra em lugar nenhum

Abriu a janela, fechou os olhos e aspirou o ar da manhã. Queria encher os pulmões com um ar puro que não havia mais. De olhos fechados, continuou a se iludir, apesar daquele ardor na garganta. A cálida e colorida luz que sentia através das pálpebras cerradas ainda lhe davam a sensação de que nada mudara em três décadas, de que não havia aquela atmosfera empestada a filtrar os raios do sol de agosto. Podia assim, de olhos fechados, fazer como em criança e antecipar a primavera, imaginar o cheiro de chão molhado pelos primeiros pingos de chuva de um setembro que deixara para trás. Vagarosa e reiteradamente, foi recompondo um quadro cada vez mais nítido na tela que se projetava à frente de seus olhos teimosamente cerrados, um quadro em que ele mesmo se destacava como personagem, correndo lépido, descalço, calças curtas, ouvindo o som tão antigo e tão presente das plantas dos pés batendo no solo úmido e fresco da rua sem calçamento. Via surgirem aqui e ali os casebres de reboco descascado, mostrando os adobes de um marrom fosco e desmaiado. Bananeiras, abacateiros, chaminés fumegantes, vozes longínquas de mulheres chamando por seus filhos, pardais em algazarra, galinhas cacarejando... Todos esses sons e imagens perpassavam pelo menino a correr naquela rua pequena que parecia infinita.

Mas aquela fantasia que não se completava, aquelas imagens que obsessivamente tentavam se consolidar naquele quadro onírico, acabaram por enfastiá-lo. Abriu então os olhos. Tudo era estranho à volta do hotel em que se encontrava. O próprio hotel não existia na última vez em que estivera ali. Logo em frente, uma fábrica despejava grossas fumaças sobre aquele ambiente outrora tão virgem, tão decente. As casas e prédios tinham algo de hostil e sufocante por trás da aparente leveza de suas formas.

Ele tinha o peito oprimido. Engoliu em seco, pendeu a cabeça, olhos novamente cerrados, agora presas de uma desilusão sem remédio. Contudo, ergueu-se e decidiu descer até a calçada.

Foi caminhando e mal sentindo os próprios passos, estranhando a si mesmo e a tudo. Nada mais estava ali, nem mesmo ele. O tempo comera tudo, e agora repousava sereno na indiferença das sóbrias construções.

Quando deu por si, estava em um bar. Pediu um trago, sentou-se de frente para a rua e ficou a olhar para fora. Olhava mas não via. Nada tinha sentido. Onde ficara enterrada a quitandinha de seu Jorge? E o casarão de seu Elias? Sua própria casa, sua infância? E Marieta, onde estaria?

Ela fora, trinta anos antes, uma moça muito esbelta e vivaz, com uns olhos negros brincando sob a franja sempre rente às sobrancelhas; os dentes alvos sempre à mostra e as caretas de criança peralta, os gestos, a energia de movimentos: tudo nela era vida plena, alegria perene em seus vinte anos.

Era essa, portanto, a imagem que agora vinha ocupar o campo onírico novamente evocado por ele, enquanto, olhando para a rua estranha lá fora, deixava-se estar na banqueta giratória do bar, provando de minuto em minuto o uísque com gelo, cuja dose já não sabia se era a terceira ou a quarta.

Por fim ele se cansou e virou-se de costas para a rua. Achou inúteis aquelas fantasias, aquela evocação de imagens antigas. Estava se sentindo vazio. Tudo era inútil. Por que voltara? Que idéia estúrdia aquela de remover cinzas à procura de pétalas que o tempo jamais poderia ter guardado? Essas perguntas, o vazio e a indiferença quase irreverente das garrafas enfileiradas na prateleira à sua frente... Ele agora era um tanto-faz-tanto-fez, um sem-quê-nem-porquê. Sobressaltou-se com a pergunta do balconista: ''Mais uma dose?''

- Sim... isto é, não! Ou melhor, pode ser...

- Sim ou não? insistiu o barman.

- Tanto faz... Está bem, mais uma.

Enquanto o outro foi buscar mais um drinque, voltou ele a fitar as garrafas sombrias na prateleira. De repente já não estava ali. Via-se de novo às voltas com suas fantasias, tentando se prender às imagens fugidias que dançavam nebulosas na tela dúbia de sonho se misturando às garrafas.

Entretanto, momentos depois, girando novamente a banqueta, fitou mais uma vez a rua e ficou atônito: com passos rápidos, acabava de passar alguém que não podia ser outra senão Marieta!

Deixou o bar e saiu afoito, sem nem mesmo se lembrar de pagar a conta. O balconista gritou-lhe da porta e ele, sacando do bolso algumas notas, atirou-as para trás, quase sem olhar, e continuou caminhando com pressa atrás da suposta Marieta que escapava rápido.

Caminhou decidido e foi-se aproximando cada vez mais da mulher. Parecia tratar-se mesmo de Marieta: o mesmo porte, a mesma estatura, o mesmo cabelo meio preso e meio caído sobre os ombros, os mesmos quadris com o mesmo balanço que tantas vezes o encantara. O tempo então não destruíra tudo. Marieta ainda existia. Então ainda era possível refazer seu mundo, rever seus passos, redimensionar o tempo...

Enquanto seguia Marieta, seus olhos permaneciam atentos a todos os seus movimentos, ao ritmo de seus passos e até mesmo às oscilações que sua respiração provocava em seu corpo de formas graciosas. Em certo momento ela volveu casualmente o rosto para um lado e ele então não teve mais dúvidas: Era mesmo Marieta. Incrível! O perfil era o mesmo, a mesma delicadeza, o mesmo frescor de trinta anos atrás! O coração lhe saltava aflito e ele estava trêmulo, enquanto se preparava para abordá-la. Debalde tentava se controlar. Sentia urgência de chamá-la pelo nome, mas ao mesmo tempo temia. Duvidava que pudesse ser reconhecido, pois estava cônscio do quanto envelhecera, enquanto Marieta parecia ter alcançado êxito em driblar o peso dos dias: seguia diante dele como uma jovem vivaz e altaneira.

Contudo, era chegado o instante inadiável. Já estava muito perto dela. E ela já se sabia seguida, pois, aflita, acelerava mais ainda o passo. Ele ergueu duas ou três vezes a mão vacilante para tocá-la, mas recuava temeroso. Contudo, não podia mais esperar. Então exclamou: ''Marieta!''

Ela nem se virou. Apressou-se ainda mais, agora quase corria. Desesperado, ele chamou mais uma, duas, três vezes. Não obtendo resposta, lançou-se temerariamente a sua frente, abriu os braços e disse: ''Marieta, não me reconhece? Sou eu, o Zé Paulo!''

Os olhos dela agora eram duas jabuticabas perfeitamente arredondadas pelo espanto. Zé Paulo viu diante de si os mesmos olhos negros arregalados de antigamente, quando confrontados com alguma novidade. Marieta estava ali, à sua frente, estupefata, e ele precisava sacudi-la, tirá-la daquele encantamento para vê-la explodir de alegria ao reconhecê-lo. Entretanto, franzindo o sobrecenho, ela apenas exclamou: ''Quem é o senhor? Algum maluco?''

Num breve instante, foram os olhos dele que se arregalaram incrédulos, sem entender a reação da moça. Ela quase se riu daquela expressão patética. Mas foi maior o seu temor e ela então fez meia-volta para prosseguir seu caminho. Zé Paulo, entretanto, a segurou pelo braço. Encarou-a com angústia nos olhos e disse:

- O que há com você, Marieta, não me reconhece?

- Ora, vá para o diabo! - ela respondeu, dando-lhe as costas e retomando a caminhada, deixando-o boquiaberto. Afastou-se rápida até desaparecer na esquina.

Por alguns minutos, ele permaneceu parado, tentando entender o que estava acontecendo. Sua cabeça girava, ele não entendia nada. Não seria tudo um sonho, um pesadelo? Aquele lugar seria mesmo aquele lugar? Marieta seria mesmo a Marieta, ele seria mesmo ele?

Começou a caminhar de volta, trôpego, lerdo, sem vontade, pois nem sabia para onde e para quê estava andando. De repente pensou ter ouvido um vago ''psiu'' atrás de si, mas preferiu não acreditar. Prosseguiu no mesmo passo, mas ouviu de novo: ''Psiu! ei, moço, espere!''

Ele se voltou e viu novamente Marieta.

- Marieta, mas você não...

Ela se aproximou com uma foto na mão. Mostrou-lhe-a e ele viu, deslumbrado, o seu próprio retrato ao lado de Marieta, a sua Marieta, que o amarelão da fotografia antiga não conseguia dissimular.

- Eu e você, Marieta! - exclamou emocionado.

- Não, meu senhor: a foto é do senhor com minha mãe - ela respondeu algo sarcástica.

- Mas então você é...

- Isso mesmo: sou filha de Marieta.

- Mas não é possível!

- Não é possível?! Não é possível é alguém imaginar que trinta anos não iriam modificar uma silhueta. Minha mãe não é hoje nem sombra da Marieta desta foto. Está mais velha do que o senhor.

- E onde está ela? Posso vê-la? - indagou ele, ainda desapontado.

- Talvez possa vê-la. Mas antes... Bem, o senhor pode vir até minha casa?

- Claro, vamos lá.

Foram caminhando sem pressa, ele se sentindo mais lúcido, respondendo às inúmeras perguntas que ela lhe fazia. À medida que avançavam, ele percebia a existência de muitos vestígios do passado nas casinhas mais simples que iam surgindo aqui e ali, e isso de algum modo lhe trouxe alento ao espírito. Afinal, talvez houvesse algo mais dele por ali, além da foto amarelada onde se via ao lado de uma Marieta que não mais existia.

Quando chegou à casa da moça, ele buscou em vão resquícios da infância na mobília moderna e nos quadros que pendiam indiferentes nas paredes opacas. A moça afastou a cortina, pedindo-lhe que se sentasse, que ela precisava ir até a escola buscar a menina.

- Ah, você tem uma menina?

- Sim, tem sete anos. A escola é perto, não me demoro.

Ficou ali então, sentado, à espera daquela moça que dali a pouco iria trazer-lhe o material que faltava para completar o tecido roto de seus dias.

Minutos depois ela chegou, trazendo a menina. Daí a pouco tomavam café, e ela comentou:

- Engraçado: já conversamos bastante e eu ainda não lhe disse o meu nome: Chamo-me Marta, e minha filha se chama Júlia.

- Engraçado mesmo. Aliás, eu também não lhe perguntei o nome. Acho que ainda queria que fosse Marieta.

Mais sereno, Zé Paulo estava agora pronto para ouvir a moça.

- Há uma sombra em seus olhos, Marta. Vive com mais alguém, além da filha?

- Não - ela respondeu em tom triste. - O pai de Júlia me abandonou ainda na gravidez. Mas essa é uma história que...

- Não se preocupe, Marta. Não falemos mais disso. Falemos então de sua mãe, da minha Marieta?

- Está bem, disse ela, dando a impressão de certo tédio. A história é um tanto longa, mas vou resumir. Minha mãe, que hoje está com cinqüenta anos, vive infeliz desde os vinte, exatamente a partir do dia em que a polícia veio aqui no bairro e levou preso o rapaz de quem ela gostava. O moço havia cometido um crime, segundo se comentava, mas ela afirmava com toda a convicção que ele era inocente e fora condenado por engano. A verdade é que, depois disso... Ela amava demais o tal moço e esperou por ele anos a fio, pensando que, cumprida a pena, ele voltaria para pedi-la em casamento. Mesmo depois do meu nascimento ela ainda continuava a esperá-lo, e eu cresci ouvindo os seus lamentos. Entretanto, jamais me disse o nome do tal rapaz.

- E ela chegou a viver com o seu pai?

- Não, ela nem chegou a conhecer meu pai.

- Como?!

Marta amparou com as mãos o rosto e começou a soluçar. E entre lágrimas respondeu:

- Ela foi estuprada, seu Zé Paulo, estuprada!

Zé Paulo ergueu-se e foi se sentar junto a ela. Abraçou-a e deixou que chorasse à vontade. Depois, mais calma, ela prosseguiu:

- Após o estupro e a gravidez, meu avô não aceitou mais minha mãe em casa. Por sorte, o padrinho dela, sensibilizado, presenteou-a com esta casinha. Foi aqui que ela me criou, até o dia em que ficou sabendo da minha gravidez. Ela não suportou ver a sua história sendo repetida por mim.

- E onde ela está? Ela não morreu, não é?

- Não, ela está viva. Mas isolou-se totalmente do mundo. Já faz uns oito anos que ela vive só e não aceita contato com ninguém, exceto quando desce até o Bairro para vender os objetos - vasos, balaios, samburás, etc. - que ela mesma fabrica com cipós. Ganha a vida assim, mas não se importa com higiene, nem com a aparência. É difícil, para mim, dizer isso, seu Zé Paulo, mas ela fede. A minha mãe fede! E xinga as pessoas, atira pedras... Tem aparência de bruxa, de monstro, sei lá! Está vivendo numa espécie de gruta, ou cabana feita por ela mesma. É o que dizem. Só posso vê-la de longe, pois sou a pessoa que ela menos quer ver. O dia em que me aproximei dela na rua - pois ela estava com uma crise de tosse -, ela quis agredir-me com um porrete, dando a impressão de não me reconhecer. Há quem diga que ela já ficou totalmente biruta...

Zé Paulo ouvia a moça e seu peito ardia. Sua cabeça parecia não suportar tantos pensamentos, impressões e lembranças que fervilhavam lá dentro. Não sabia qual atitude tomar, o que dizer. Na verdade, ele era o moço por quem Marieta esperara por tanto tempo, embora ele jamais tivesse imaginado que seu amor por ela pudesse ter sido correspondido. Se o soubesse, com certeza teria voltado a procurá-la, logo após ser solto. Fora preso por engano, de fato. Mas não imaginava que Marieta pudesse pensar assim, na época, e muito menos que ela pudesse aceitá-lo após a vergonha de ter sido preso. Agora, dizia a si mesmo que, se pudesse voltar atrás, fugiria com Marieta, esqueceria o mundo, iria viver com ela para sempre, ter filhos, ser feliz. Mas agora...

Marta continuava falando e Zé Paulo foi se sentindo cada vez mais pressionado pelo desejo doentio de rever Marieta. De repente, interrompeu a fala da moça:

- Sabe, Marta, acabo de tomar uma decisão: quero ver Marieta.

- Não vale a pena, seu Zé Paulo. Há quem diga que...

- Não importa, quero vê-la. Sou aquele por quem ela esperou por tanto tempo. Realmente fui condenado por engano, e tudo teria sido diferente se eu tivesse voltado. Eu até mesmo a teria convencido a aceitar a sua gravidez. Viveríamos juntos, seríamos uma família...

Marta então voltou a soluçar. Quando se acalmou, olhou-o decidida e disse:

- Está bem, seu Zé. Procure minha mãe e tente trazê-la de volta. Mas sei que isso é praticamente impossível.

Indicou-lhe com detalhes o trajeto e despediram-se rapidamente, com a reiterada promessa, feita por ele, de que voltaria com Marieta.

Antes de procurar o caminho indicado, passou no hotel, apanhou a bagagem, pagou a diária e saiu finalmente à procura de Marieta.

Foi seguindo as ruas cada vez mais desertas, percebendo a gradativa substituição dos sons urbanos pelos rurais, a paisagem bucólica aos poucos se impondo e dando-lhe alento misturado com um temor angustiante. A vegetação, os passarinhos alegres, trilhas estreitas iniciando a subida. Antigas cercas de velhos currais abandonados. Os arbustos, um fio azulado de fumaça... E por fim a cabana, galinhas cacarejando num cercadinho de varetas e restos de telas de arame, cheiro de carne assada.

O coração de Zé Paulo dava pinotes no peito ofegante. Reteve os passos para imaginar mais uma vez a silhueta bela e fresca da Marieta jovem daqueles tempos. Diziam no Bairro que Marieta, apesar dos cinqüenta, agora aparentava uns oitenta ou mais. Respirou fundo várias vezes. Caminhou mais um pouco e passou a se ocultar atrás dos arbustos, saltando de um para o outro, para não ser visto.

Aproximou-se bastante da cabana e viu...

...Viu o fogão improvisado com pedras e chapa de latão. Viu o frango que, assado ou não, espalhava forte odor pelos ares. Depois viu uma coisa que parecia gente, de cócoras, cabelos eriçados, horrendos, roupas esfarrapadas... Esgueirou-se por entre os arbustos, foi-se aproximando. A coisa que parecia gente era mesmo uma mulher. Velha, muito velha. Comia uma coxa de frango muito mal passada, aquele caldo nojento escorrendo pelos cantos da boca desdentada. No chão, o sangue ainda vermelho do bicho, sujando os pés descalços.

Zé Paulo respirou fundo e aproximou-se. A três metros de Marieta já era possível sentir náuseas, tamanho o fedor que exalava aquele corpo coberto de trapos sebosos. Ficou a observá-la por instantes, horrorizado mas contido. Viu aquelas unhas enormes, imundas; a pele enegrecida e cascuda, os cabelos

emplastados pela sujeira dos dias que ia grudando em gorduras novas e antigas. Mas sabia ser ela. Reconhecia, apesar de tudo, algum nadinha da antiga Marieta naquele perfil monstruoso que se distraía mordendo o osso de frango. Naqueles fugazes segundos ainda teve forças para sonhar um pouco. Declararia seu amor e salvaria Marieta. Ela limpa, bem vestida, bem-amada... Viveriam juntos os quatro, lá embaixo, no Bairro. Oitenta anos que nada! Limpa, arrumadinha, bem nutrida, voltaria a aparentar até menos de cinqüenta...

Naquele enleio provocado pela fantasia, distraiu-se e tropeçou num pedaço de tronco semi-oculto pelo capim. Imediatamente, Marieta pôs-se de pé, facão em punho, ameaçadora. Zé Paulo então viu aquele rosto medonho, aquele monstro desdentado com olhos tétricos, e se apoiou instintivamente no pequeno tronco do arbusto, mergulhando parte do corpo na folhagem. Ainda reagiu, agora talvez apenas por questão de sobrevivência:

- Marieta, sou eu, o Zé Paulo! - Mas já se desesperara. Queria era estar longe dali.

- Sai daqui, ladrão! - berrou a louca, a monstruosidade desdentada. - Sai daqui, o frango é meu! Sai! Sai! Vagabundo! O frango é meu!

*****

Uma hora depois, ele vagava por ruas estranhas, num bairro ou cidade ou planeta que não conhecia. Os restos de um Zé Paulo trespassado pela lança impiedosa do destino, que antes o cozinhara com pouca lenha para agora fisgá-lo de vez, inesperado, medonho.

Aos berros, tresloucado, ia o farrapo humano soltando imprecações, blasfêmias, obscenidades... Xingava os transeuntes, os carros... tudo. Vozes o perseguiam. Sombras, fantasmas. Temia mas não tremia. Queria era vingança. E todos tinham de pagar. Ora, onde já se viu! Transformarem Marieta naquele monstro! Alguém pegar assim seu sonho e transmutá-lo bruscamente num dantesco pesadelo! Ah, teriam de pagar por isso!

E tomem palavrões, e gestos quixotescos, e discurso no meio da rua, e olhos vidrados, e suor, e baba...

Parou o carro da polícia. Saltaram os dois homens uniformizados. Levaram o Zé Paulo.

*****

Por alguns anos, ele ainda resistiu, ora discursando, ora apalpando sombras pelos amplos pátios do hospital psiquiátrico. E muitas vezes Marieta - linda, sorridente, perfumada - sentava-se sobre o muro alto e cinza, para dizer-lhe coisas amenas. Ele sobrevivia.

Uma noite sentiu-se leve, muito leve. Flutuava. Pisava em nuvens. Não sentia o corpo. Só percebia um luz muito branca e uma doçura inefável. O peso do corpo e todos os outros pesos subitamente esquecidos. Descansou lânguido nos braços do além.