Totalmente Nus
A placa indicava:
COMUNIDADE ALMA NUA A 2 KM
- Estamos quase chegando – disse a mulher apontando.
A estrada de terra era margeada, à esquerda, por uma plantação simétrica de eucaliptos que exalavam um cheiro afrodisíaco de sauna e, à direita, por montanhas de um verde impressionante entrecortado por um rio sinuoso.
Edgard ajeitou o pulso e verificou o relógio Franck Muller White Gold Double Mystery Diamond Watch. Sempre após conferir as horas pensava “Puro ouro branco” e sentia concomitantemente com o tique-taque discreto uma pulsação orgulhosa que repercutia no meio sorriso no canto direito da boca. Depois deitou a mão sobre a perna da mulher, acariciando-a.
- Cuidado, Ed! Lembre que estamos indo para um acampamento de nudismo, você não pode chegar lá armado...
- Naturismo! – corrigiu ele.
- Ah, nudismo... naturismo... é tudo a mesma coisa.
- Não é não! Eles explicaram a diferença pra gente.
O “eles” ao qual Edgar Razzo se referia era o casal Hélio e Lúcia Marques que conheceram no fim de semana passado, durante um show de jazz. Como as mesas estavam próximas, surgiu uma conversa sobre a dificuldade de diferenciar jazz de blues e, pouco tempo depois, estavam os Marques explicando aos Razzo as peculiaridades dos dois gêneros musicais. Foi entre um uísque e outro que Hélio e Lúcia tocaram no assunto do naturismo: “Não é só ficar pelado não! É uma filosofia de vida, que visa a preservar a identidade do indivíduo num mundo capitalista que tenta homogeneizar as pessoas...” Embora Edgar e Patrícia não entenderam bem o comentário, acharam chique e acabaram aceitando o convite de conhecer a comunidade naturista Alma Nua. Por que não? Os dois já viajaram por quase todos os lugares-que-se-deve-conhecer-antes-de-morrer e, em matéria de entretenimento, não havia quase nada que não tinham usufruído e que poderia disparar neles aquela ansiedade adrenalínica que nos faz sentir vivos, retirando-nos da monotonia da repetição. Ambos filhos de uma linhagem de políticos-empresários e, se não fosse pela atração instantânea que sentiram quando se conheceram, poder-se-ia dizer que o casamento dos dois foi arranjado à moda do coronelismo antigo.
- Ah, duvido que não fique alguém com alguma excitaçãozinha... – resmungou Patrícia.
Ela roçava com o polegar o anel de diamantes no indicador, gesto que repetia sempre que estava ansiosa.
- Já falamos sobre isso, Pat. Acho até broxante esse negócio de ficar todo tipo de gente nu, velhos e crianças...
- O importante é que a gente não precisa se preocupar com o nosso corpito, Ed.
E eles não precisavam se preocupar mesmo. O corpo dela fora esculpido a lasers e bisturis, eliminando qualquer grau de curva que a tornasse de alguma forma assimétrica. Nos últimos dias se submeteu a dezenas de pares de mãos, drenagens, liftings, peelings e um bronzeamento artificial que criou marcas de biquíni geométricas como que feitas à Photoshop. Ele apenas intensificou as séries com o personal, pois, de resto, tinha orgulho de todas as suas medidas, inclusive daquelas que, mesmo ocultas por grossos tecidos, teimavam em mostrar sua exuberância.
- Veja, chegamos. Olha a portaria ali – apontou Patrícia.
A portaria era modesta, rústica, composta de uma entrada em forma de arco e uma guarita. Como quase tudo no acampamento, eram feitas de madeira de lei. Em frente, fincada em um jardim de grandes bromélias, havia a placa onde se lia “Comunidade Naturista Alma Nua” com um símbolo que lembrava uma folha de videira.
- Bom dia! – cumprimentou uma moça de cabelos tão longos que pareciam cobrir-lhe o corpo inteiro.
- Somos convidados do casal Marques. Hélio e Lúcia Marques.
- Um momento, por favor – disse a mulher. Depois de conferir algo no computador juntamente com um negro alto, musculoso, a recepcionista voltou com uma prancheta nas mãos. – Edgar e Patrícia Razzo?
- Isso mesmo.
- Ok. O estacionamento fica fora do acampamento, logo à sua direita, a uns 50 metros.
Edgard arrancou o carro, resmungando:
- Esquisito! Estacionamento fora do acampamento... Deixar o carro distante...
Sua pickup importada longe dos seus olhos, distante da admiração e, por que não dizer, inveja alheias! Por mais que dissesse, afirmasse e repetisse que tudo o que possuía era para o seu bel prazer, venhamos e convenhamos, como seria o mundo se não tivéssemos o outro, para emitir interjeições que nos deixam orgulhosos das coisas que possuímos? Ele não concordava que “o inferno são os outros” como dizia Sartre, pelo contrário, os outros eram o espelho onde via refletido seu paraíso.
- E ainda por cima, voltar a pé nesta estrada de terra. Esta bota custou 2.500,00 dólares! – exclamou a mulher.
Quando retornaram à portaria, Hélio e Lúcia já os aguardavam.
- Que bom que vocês vieram. Sejam bem-vindos! – disse a mulher estendendo a mão para cumprimentá-los.
- Bom mesmo, bom mesmo – concordou Hélio, completando: – Vamos à recepção. Lá temos que cumprir um breve protocolo. Depois os levaremos ao chalé.
Eles seguiram por um caminho de pedras amplo que, durante o trajeto, se ramificava em outros mais estreitos os quais levavam a pequenas clareiras escondidas entre a vegetação. Nelas, se podiam ver, de relance, alguns bancos e mesas entalhados em imensas toras ou esculpidos em enormes pedras. Os anfitriões seguiam em silêncio e o espaço só era ocupado pelas notas musicas e odoríficas das folhas secas estalando sob os passos, e da sinfonia de sabiás, cigarras e bem-te-vis. A recepção era uma construção campesina, também de madeira, circundada por uma varanda. A única entrada levava a um cômodo modicamente mobiliado com quatro mesas, dois computadores e um arquivo com pintura já bem desgastada pelo uso. À esquerda outra porta dava para uma sala de estar com um imenso jogo de sofás entalhados em grandes troncos de árvores. Diversas almofadas coloridas traziam vida e conforto ao local. Na mesa de centro, um arranjo de sempre-vivas parecia sorrir sofregamente distraindo um outro casal de pais e de filhos que já estavam aguardando. Eles corriam os olhos sobre as paredes decoradas com quatro quadros: de uma mulher nua lendo sobre um gramado, Mujer leyendo de Fernando Botero, Sirens de Boutibonne, um outro de Charles Edward, Study of a Young Man Beside the Sea de Hippolyte Flandrin e Salmacis and Hermaphroditus de Bartholomeus Spranger. Ao fundo, de uma porta encimada pela placa AUDITÓRIO, saiu um homem magro de meia idade, barba, um ruivo intenso quase colorau e uma mulher negra possivelmente da mesma idade, cabelos curtos e olhos de jabuticaba.
- Bom dia, pessoal. Sejam bem-vindos ao nosso acampamento. Esta é Vitória e eu me chamo Augusto. Somos os atuais síndico e vice sindica do acampamento. Vamos assistir a um vídeo curto sobre a filosofia naturista e depois responderemos as dúvidas que por acaso tiverem.
O vídeo começou mostrando a diferença entre naturismo e nudismo. Enquanto este se centrava somente no corpo, tendo como único objetivo ficar pelado e usufruir das consequências disso, sejam elas de origem térmica ou erótica; aquele era uma filosofia de vida que buscava viver em interação com a natureza, como nossos pais edênicos ou simiescos, evitando o máximo possível, durante o momento em que se estivesse numa comunidade naturista, a referência à vida urbana, envolvendo aí a diferenciação monetária que possibilita o contraste de status. O naturismo funcionaria como uma terapia em que o Ser, despido de tudo o que possui, apresentasse e usufruísse apenas a sensação do que ele realmente é, na essência.
Patrícia e Edgar sucumbiam às oscilações de ondas invisíveis de imagens fluidas que surgiram e foram se intensificando a partir do momento em que ouviram a palavra “monetária”. Assim, num processo de atenção flutuante, ouviam retalhos da explicação e, bem mais tarde, num outro dia, quanto foram solicitados a apresentar a um terceiro o que fora apresentado no vídeo, tiveram que preencher vácuos, costurando-os com uma linha cujo ponto era somente o de vista.
- Alguma dúvida? – perguntou o síndico acordando-os do torpor.
- Não – responderam.
- Eu tenho. Quem inventou isso? – indagou o garotinho filho do outro casal?
- Muito bem, homenzinho! – observou Augusto – Boa pergunta! Na realidade, podemos dar duas respostas: uma religiosa cristã e outra “histórico-cientifica” – explicou fazendo o gesto das aspas. E continuou a explanação sem fazer qualquer adaptação comunicativa infantil à idade do menino. – Do ponto de vista religioso, é possível afirmar que o naturismo foi o nosso estado original desejado por Deus, quando, após criar Adão e Eva, os colocou nus no Éden, um jardim de delícias, onde o primeiro casal viveria em interação total com as plantas e animais. “Histórica ou cientificamente” falando (novamente o gesto das aspas) alega-se que, como qualquer animal, sempre fomos seres nus e que tudo o que necessitamos se encontra na natureza. A urbanização materialista-capitalista nada mais seria que um desvirtuamento artificial que nos retirou do nosso estado e ambiente naturais. Fui claro, jovenzinho?
- Não sei – respondeu o garotinho balançando as pernas no ar e acrescentou – Eu não tenho vergonha de ficar sem roupa.
A maioria riu e a mãe do menino ruborizou-se, meneando a cabeça.
Depois disso, o homem ruivo entregou uma folha com as normas e instruções do acampamento, as quais deveriam ser lidas atentamente e depois assinadas.
Normas do Acampamento Naturista ALMA NUA:
1ª) É expressamente proibida a utilização de qualquer roupa, acessórios e calçados no acampamento (somente podem ser utilizados utensílios imprescindíveis à saúde e cobertores, dentro dos chalés);
2º) É expressamente proibida a entrada de veículos dentro do acampamento, salvo por motivo de saúde ou acidente;
3º) É expressamente proibida a utilização de qualquer eletrodoméstico e objetos eletrônicos dentro do acampamento, salvo os necessários, dentro dos chalés, para preservação de alimento ou devido à saúde;
4º) Não será permitido qualquer som além dos emitidos pela natureza, diálogos ou canções com instrumentos musicais, desde que seja entre às 09h30m e 22h30m;
5º) É expressamente proibida a utilização de material pornográfico no acampamento;
6º)É expressamente proibida a prática de relações sexuais em público no acampamento. Serão tomadas todas as medidas legais para os casos comprovados de atentado violento ao pudor;
7º)Nos casos de excitação involuntária masculina, os autores deverão se retirarem aos chalés;
8º)É expressamente proibido o comércio de qualquer tipo dentro acampamento;
9º)É expressamente proibida a divulgação religiosa, política e relacionada a agremiações esportivas ou de negócios sejam humanitárias ou não;
10º)Considerando a ideologia naturista de desenvolvimento e manutenção do Ser em detrimento do ter, sugere-se enfaticamente evitar diálogos que envolvam a exposição de status seja de que tipo for.
Eu____________________________ portador da identidade _______ concordo em seguir plenamente o acima enquanto estiver dentro da comunidade, inclusive, com a plena orientação aos meus dependentes.
Edgard e Patrícia assinaram as instruções mecanicamente, mais pelo amortecimento causado pelo impacto das normas do que pela consciente concordância com o que leram. Depois foram levados ao chalé nº 07, onde foram incentivados a ler mais instruções que estavam afixadas atrás da porta.
Todos os chalés eram iguais no tamanho, na disposição dos cômodos e dos móveis. Uma construção em madeira de 40m², cujo centro ao fundo era ocupado por uma imensa cama de casal. Sobre um dos criados mudos havia um telefone. Ao lado esquerdo da porta, próxima à janela, uma mesa com um arranjo de margaridas e alecrim rodeada de quatro cadeiras. Mais à extremidade, um frigobar e uma pequena bancada. No lado oposto, além do banheiro, havia uma estante para livros e um sofá de dois lugares. A parte da frente era estendida numa varanda com um banco e duas redes.
- Pelo visto, viveremos como Tarzan e Jane – ironizou o homem.
- Conforto zero – completou a mulher.
Os dois desfizeram as mochilas e ficaram nuzinhos em pê, olhando um para o outro seriamente, até que soltaram uma retumbante gargalhada.
- Quem está na chuva é pra se molhar!
E lá se foram eles encontrar com Hélio e Lúcia, próximo ao chafariz, no centro do acampamento. Ao contrário da maioria que ia a uma comunidade naturista pela primeira vez, os dois não se envergonharam nem um pouco, não se preocuparam com os possíveis olhares oblíquos, investigadores ou audaciosos. Pareciam dois nativos de uma ilha deserta, caminhando desde sempre, presunçosos de suas curvas côncavas e convexas, dos pelos sedosos, bem cortados e distribuídos, da altura, peso e comprimentos, dos lábios grandes e bem torneados, dos membros... Um macho e uma fêmea, magníficos exemplares da espécie homo sapiens. Ele, um uomo, branco marmóreo, olhos azuis acinzentados, cabelos negros brilhantes e um rosto italiano emoldurado por uma barba feita, andava elegantemente, calmo, levando seus um metro e oitenta e cinco de corpo olímpico. Ela, loira quase Brigite Bardô, cabelos longos e boca sempre semiaberta como se fosse pronunciar alguma palavra com sua voz de algodão. Acostumados que estavam a imaginarem as pessoas invisivelmente os despindo, andavam orgulhosamente como se sempre estivessem nus. Foram despertados daquela descontração leve e altiva somente quando Lúcia mencionou:
- Parece que estão à vontade, hein? Só um detalhezinho: Pat, não leve a mal, mas poderia tirar o anel? Como vocês leram, só podemos ficar com as alianças.
O anel??? Não é possível que iriam implicar com um anelzinho de ouro e uma pedra de diamantes. Ouro e diamante não eram elementos da natureza? Por que proibi-los? Ela esfregou a joia com o polegar nervosamente e falou:
- Num minuto deixo lá no chalé e volto.
Quase correndo, chegou rapidamente ao chalé. Quando tirou o anel, teve a sensação de que estava amputando um dedo. Dormia e tomava banho com ele. O anel tinha virado uma extensão de seu corpo, uma expressão do seu eu diamantado. Sem ele, começou realmente a se sentir nua, como Eva depois da mordida no fruto proibido. Olhou-se rapidamente no espelho ovalado próximo ao banheiro. Era uma mulher bela, os bicos dos seios nivelados, fincados em duas abóbadas firmes. Mostrou a mão para o reflexo. A pequena marca mais clara no dedo parecia ser toda ela, sensível ao vento, pequena porção de pele desacostumada a estar descoberta. O gesto do dedo levantado parecia zombar de seu corpo no mundo concreto. - Por que o meu constrangimento? – Deixou o espelho sem resposta e retornou com passos rápidos e ofegantes ao encontro no chafariz.
Percebeu a fisionomia fechada do marido. Seria por causa do esquecimento dela?
- Desculpem-me, esqueci mesmo.
- Não há problema, Patrícia, às vezes isso acontece comigo também – Confortou-a Lúcia.
- Tudo bem, Ed? Parece que você ficou com raiva.
Ele esboçou uma fisionomia de que tentava se conter mais não conseguiu:
- Não é isso, Pat. Olha, vocês me desculpem mais eu vou falar – disse ele dirigindo-se à Patrícia - quando você saiu para pegar o anel, eu falei que foi um presente de aniversário de casamento e, assim, despretensiosamente, mencionei o preço da joia. Então o Hélio me censurou: perguntou novamente se não tínhamos lido o 10º artigo das normas que reza sobre a exposição de status. Eu expliquei que a frase saiu naturalmente, que eu não queria aparecer quando disse que havia custado mais de 50.000 dólares...
- E nós explicamos educadamente que compreendemos, que temos certeza que realmente ele não queria aparecer, mas que é necessário lembrarmos constantemente as regras para que a pessoa desenvolva o hábito de apresentar-se por meio de valores subjetivos, próprios da essência do sujeito e não das coisas que foram agregadas a ele e o fazem confuso entre o ter e o ser. Não foi uma censura, Edgar – interrompeu Hélio esclarecendo.
- Sim, nós queremos apenas o Edgar e a Patrícia aqui, entenderam? Nos desculpem se parecemos rudes, mas, creiam, não é o caso. Depois vocês verão como é bom apenas Ser – acrescentou Ana e depois concluiu – Pense, Ed! O que você daria a Pat, se todos no mundo fossem naturistas?
Edgard não respondeu. Deu a mão à esposa que parecia envergonhada:
- Tudo bem, tudo bem. Quem pede as desculpas somos nós, não é Pat. Vamos então?
Os quatro pegaram uma trilha que descia em direção a um barulho de queda d’água, ao longe. O Marques faziam as vezes de guia, explicando curiosidades sobre ecologia, naturismo e engajamento, mas as palavras e frases chegavam aos ouvidos dos Razzo e evaporavam antes de concluídas de tão ensimesmados que estavam: “... sementes... desse tipo de árvore... mais distante o pomar... inclusive rúcula silvestre... do tratamento de água... ajudamos assim os que criam gado de leite na região... filoso...” Edgard lutava contra a pergunta que Lúcia fizera: “O que você daria a Pat, se o mundo fosse um imenso planeta de naturismo?” Ele procurava respostas para preencher o vazio que surgiu no seu peito e mexia como um gigantesco verme. Mas quanto mas investigava a si mesmo, mais vazio encontrava, como um homem brasileiro analfabeto a quem se faz uma pergunta em aramaico. Mas que ele encontraria a resposta encontraria Ou achavam os Naturistas que a única coisa que os Razzo tinham era dinheiro? Patrícia friccionava o indicador com o polegar, o dedo já vermelho e ardente. Embora fosse verão, seus pelos louros arrepiavam em penugem de febre. Estava ruborizada. Era como se as árvores, os pássaros, as pedras todos reparassem nas marcas retilíneas do biquíni e erguessem o dedo, em chiste, falando em uníssono “É artificial! É artificial! É artificial”...
A cachoeira decepcionava pelo tamanho mais impressionava pela beleza. A queda terminava no centro de um lago em forma de coração, cujas margens eram ornadas por samambaias gigantes e orquídeas.
-... e esse tipo de planta juntamente com o equilíbrio da natureza impede a proliferação de pernilongos aqui. Acreditam???
A interrogação e o semblante de questionamento de Hélio tiraram novamente os Razzo de sua introspecção opaca em que se sentiam, como se estivessem procurando por um endereço numa cidade invadida por uma neblina densa, entre ruas e construções que eram sombras cujas formas oscilavam.
Já atentos para o mundo exterior, o casal notou a beleza do local e a presença de outras pessoas. Algumas conversavam assentadas numa rocha tão nua quanto os corpos sobre ela, lembrando uma pintura. Uma mulher desavergonhadamente gorda lia um livro deitada, apoiando-se sobre os cotovelos, o rostinho redondo e delicado sobre as mãos, as pernas também afunilando-se em pés de bibelô, o joelho direito levantando e abaixando no embalo da leitura; duas meninas e um menino garimpavam seixos preciosos na margem rasa. Três adolescentes, no meio do poço cristalino, divertiam-se mergulhando e passando sob os tuneis de pernas juvenis. Dois casais dialogavam, um senhor e uma senhora sexagenários, magros, pele já bem enrugada, cabelos brancos, mas, pelo gesto e pelo vigor da articulação das palavras, pareciam esbanjar saúde e convicção. O outro casal teria uns quarenta anos, ambos morenos de olhos verde-oliva. A mulher estava grávida.
- Amigos, gostaria de apresentar-lhes Patrícia e Edgar. Estão conhecendo o acampamento hoje – Interrompeu-os Hélio.
- Prazer – disseram todos quase em uníssono se apresentando.
- Não querem nos fazer companhia, nutrindo de um pouco de vitamina D? – perguntou Henrique, o mais velho.
O tema da conversa dos quatro eram os baús empoeirados no obscuro inconsciente, dentro dos quais escondíamos nossos códices e tabus mais secretos. Tábuas de uma lei gravada não em pedra, mas em letras anímicas, as quais nenhum código genético desvendou e possivelmente jamais chegará a fazê-lo.
- Pois eu digo: sou podre – afirmou um pouco mais alto e veemente Marta, a gestante.
– Tudo bem, sou adepta do naturismo, faço meditação e ioga, leio alguns livros que não chegam a ser classificados de autoajuda só por causa do PHD dos autores e das dezenas de citações no final. Mas, por mais que me esforce, sinto-me como um vulcão, que a qualquer momento pode entrar em erupção.
- Mas a natureza é assim, Marta – interrompeu Letícia – ainda mais com nós mulheres, que somos realmente vulcânicas e expelimos rubras lavas todo mês.
- O importante é ter consciência disso e procurar viver o bom e o ruim com o maior significado possível. O mal ao léu é que é pior – observou Adônis.
- Depende – disse Lúcia – os psicopatas fazem o mau com plena consciência e nem por isso o mau deles é melhor.
- Lúcia, significado é uma junção de consciência e emoção. Nos psicopatas, falta a sensibilidade – acrescentou Adônis, juntando as duas mãos. – Vejam! Eu também sou bem mesquinho. Se vejo um mendigo desnutrido e doente na rua, afasto-me. O que me impediria de levá-lo para casa, oferecer-lhe banho e comida? O nojo? O medo? O clichê que “uma andorinha só não faz verão”?
- Já que fez a pergunta, responda você mesmo, Adônis! – inquiriu Marta.
- Não sei, Marta. Da minha ego trip, somente retornei com um alforje cheio de interrogações e possibilidades. Pouquíssimas respostas. Na minha opinião, todos nós temos sabores e odores. O problema é quando nossa podridão chega a afetar o nariz do outro. Nesse caso, temos que procurar desenvolver a capacidade de perceber o que está acontecendo para lidar com a situação da melhor forma possível.
- O problema é que a nossa melhor forma possível às vezes não é a melhor forma possível do outro – disse Marilene, a gordinha do livro, fechando-o e juntando-se à turma.
A fisionomia dos Razzo parecia ter sido maquiada à grossa camada de base. Os olhos piscavam em demonstração clara de insistente tentativa de entender algo. Henrique, percebendo, virou-se para eles e perguntou:
- O que vocês acham?
Edgard hesitou. Patrícia titubeou algumas sílabas que só ficaram na simulação. O marido, enfim, respondeu:
- Sabem o que é, bem, eu e a Pat somos administradores. Somos inclusive pós-graduados, mas não entendemos nada de psicologia ou filosofia que parece ser o teor da conversa aí.
- Não importa, amigo, a nossa formação profissional – procurou esclarecer Adônis –, afinal já existíamos antes da Universidade não é mesmo? Podem participar da conversa à vontade.
- É que pegamos o bonde andando...
- Estávamos falando sobre a dificuldade de descobrirmos quem realmente somos e encararmos essa fisionomia com todas as suas cicatrizes e até mesmo feridas em plena hemorragia. E, é claro, as sutis belezas que possui qualquer ser humano – mencionou Henrique colocando a palma da mão em frente ao rosto.
Cicatrizes? Feridas? Sangue? O corpo dos Razzo era incólume. Estátuas talhadas pela genética que começou em Roma e chegou à descendência italiana no Brasil.
Marilene, movimentando verticalmente os dedinhos na reentrância entre os fartos seios, encarou fixamente com os olhos miúdos e perguntou:
- E vocês? Como lidam com suas anomalias subterrâneas?
A pergunta pareceu atingi-los como uma facada, ou melhor, uma enxadada no peito, trincando o mármore branco e expondo a terra de que eram feitos. Era como se alguém, abruptamente, tomasse consciência de algo absurdo que sempre aconteceu, mas não era percebido, como se deixassem despreocupados o vaso sanitário, mas com um sutil nojo do que deixaram no fundo da louça alvíssima e, de repente, atinassem que produziam e carregavam, boa parte do dia, aquela coisa repugnante e fétida. Talvez porque a gordinha usava metáforas que mudavam a perspectiva de ver a questão. “Anomalias Suberrâneas”??? Não podia usar simplesmente “problemas”? A metáfora era tão forte que parecia causar um terremoto num solo compacto nunca antes explorado.
Edgard não sabia, mas adivinhava que a Patrícia bem como ele estava mesmo é com vontade se levantar e sair dali e mandar a todos para o raio que os partissem. Pareciam pajés discutindo sobre maldições de espírito da natureza. Literalmente ele e a esposa se meteram num programa de índio. Antes eles haviam imaginado o acampamento como um local aconchegante onde continuariam sua conversa sobre jazz e blues e depois a estenderiam sobre as conquistas que fizeram, o concerto que assistiram em Viena, na Áustria, no teatro onde Bethovem se apresentou, a fábrica de instrumentos musicais que possuíam, a maior da América Latina, o lucro líquido, as estratégias para lidar com a crise na Grécia que se estenderam pela Europa e chegava ao Brasil... Mas não! Foram parar num local que parecia parado no neolítico, cujas pessoas vinham com aquela conversa filosófica que não os levaria a lugar algum. Qual a contribuição da filosofia e da literatura para a porcentagem do PIB de um país?
Como eles não respondessem, a leitora gordinha continuou:
- Na minha opinião, viver com o máximo de plenitude, ainda mais coletivamente, é um desafio. É como construir castelos de areia à beira mar e impedir que a arrebentação os destrua em noite de maré alta. Construímos um mundo idealizado com as palavras como se ele fosse real, como se o vernáculo representasse com precisão os fatos e as coisas. Besteira! São meros castelos de letras que se arruínam com a primeira onda de concretude improvisada pelas múltiplas possibilidades do imprevisto. A Revolução francesa reverbera em cada um de nós e põe nosso pescoço na guilhotina diariamente, sejamos nobres ou plebeus.
- Então não há saída? – tornou Lúcia.
- Para mim o que está perto de ser uma saída é a nudez. Obviamente estou falando de um substantivo mais abrangente – esclareceu olhando para o casal Razzo. – Por isso sou adepta do naturismo. Ando nua em pêlo, com meus peitos balançando como uma velha índia tapajó e minhas dobras repletas de ousadia. Não quero roupas escuras que me emagreçam nem listas que diminuam minha silhueta. Quero a demonstração mais obscena de mim, mas explícita que filme erótico, pois não há ação que distraia a razão, apenas meu corpo no estado mais cru possível.
- Nossa! Acho que você está com a autoestima em baixa! – Declarou Patrícia surpreendo Edgard e atraindo a atenção para si. – Você tem que gostar mais de você.
- Possivelmente não fui clara. É justamente isso que a nudez me possibilita, gostar mais de mim. Mas quem é esse mim? Um pronome pessoal do caso oblíquo? Ou um ser resultado de uma sopa primordial de letras, logos de um dicionário que clama por ser lido? Nessa existência do corpo àquilo que chamam alma, espírito ou aparelho psíquico. Quem sou eu? Livro-me dos meus trajes que nada mais são que máscaras. Embelezam-me ou camuflam? Exponho-me qual esfinge propondo a mim mesma o grande enigma.
- Não entendi o que as palavras têm a ver com isso – comentou Edgard.
- As palavras são a roupa da psique. Quando você diz “Sou sincero”, não está nada mais nada menos que vestindo sua Persona para executar um papel social ou personagem no grande teatro que é o mundo. Não nega que essa palavra é derivada do Latim e se refere a uma máscara feita para resoar com a voz do ator (per sonare significa "soar através de"), possibilitando que fosse bem ouvida pelos espectadores, bem como para dar ao ator a aparência que o papel exigia. Continuamos fazendo usando a mesma estratégia: usamos as palavras para levar aos ouvidos dos outros uma personagem que acreditamos existir. Mas pare para analisar-se com coragem, faça como se fosse um exército de um homem só que enfrenta uma tropa inimiga e verá que na frente de batalha, entre estandartes e espadas, está um soldado rival com o seu rosto. Alie-se a ele, retirem a armadura e examinem todas as insígnias, discernindo emblemas de estigmas.
Apesar de acariciado pelos raios mornos de um sol dourado de outono, Edgard sentiu frio. Os membros superiores e inferiores com os pêlos eriçados, e, ao contrário, o membro central encolhido. Estava assentado na rocha apoiando-se nas mãos atrás das costas. Num gesto, abraçou as pernas aquecendo-se e escondendo aquele que há pouco lhe era motivo de orgulho. Um calor surgia-lhe na região do umbigo, cratera arqueológica humana e irradiava pelo peito, esparramando pelo pescoço e crânio. Ele então se percebeu nu e febril.
Patrícia esfregava obsessivamente o dedo médio, que ardia e já estava a ponto de sangrar. Como Eva, ela mordera o fruto primeiro que o marido, quando teve que abandonar seu anel de diamantes. Abismada, sentia-se à beira de um precipício ou talvez de um princípio cujo desconhecimento da novidade a tornava quase catatônica.
O que aconteceu depois, se tivesse de ser narrado pelo casal Razzo se resumiria no trecho: “subimos ao refeitório, fizemos um lanche, dissemos que estávamos cansados, fomos para o chalé, dizendo que não apareceríamos para o almoço, mas que com certeza estaríamos presentes à noite para o bate-papo com bebida e tira-gosto”, pois entraram novamente num estado de introversão profundo, contudo sem imagens, como se fossem fugitivos da antiga Alemanha Oriental que se deparassem com o muro da vergonha e diante do obstáculo instransponível ficassem parados, abstraídos, quase mesclando-se ao concreto limítrofe.
No chalé, retornaram do estado absorto com o comentário de Patrícia:
- Que coisa, não?!
- O quê?
- Isso!
- Pois é...
- Estou exausta!
- Eu também, melhor dormir.
Aninhados no edredom que trouxeram, feito à base de fios egípcios e recheado com plumas esterilizadas do gogó do ganso siberiano, a parte mais nobre do animal, os Razzo caíram em sono profundo.
Os dois sonharam:
Ele que era uma múmia milenar que estava sendo analisada por um grupo de cientistas renomados.Ao se desenrolarem as tiras de linho fino e o rolo de papiro com encantamentos do Livro dos Mortos, e se deparar com a pele, couro formado pela ação dos séculos, e furá-la, nada se encontrava dentro, a não ser um ar que se esvaia como uma flatulência com cheiro de mofo. Ela sonhava que era uma arara azul capturada por indígenas e estava sendo escaldada num caldeirão de barro. Suas penas eram retiradas uma a uma até que sobrou aquela coisa ridícula, com asas inúteis, meros apêndices de um corpo rugoso que não pode voar. Patrícia acordou com o barulho de Edgar lavando o rosto no banheiro.
- Nossa, tive um pesadelo estranho! Acordei ensopado – disse ele.
- Eu também – acrescentou ela.
- Será que era mesmo hortelã o que misturaram naquele suco de abacaxi?
- Não chega a tanto, né, Ed? Querido, já são oito e meia. Dormimos o dia inteiro!
- Então, vamos ao bate-papo ou não, Pat?
- Acho melhor irmos. Não saímos nada à francesa lá de baixo.
E foram. Tomaram um banho rápido e foram. Porém, quase já na metade do caminho, perceberam que estavam vestidos de pijamas e tiveram que voltar ao chalé para se despirem. A temperatura estava amena, mas, à medida que desciam em direção ao quiosque onde seria o encontro, começaram a ter arrepios. Talvez porque, durante o dia, pode-se ver quem nos vê; mas à noite, só temos a incógnita de silhuetas obscuras e penumbrosas. Além do mais, a Lua brilhava, gorda, um amarelo obsceno, deitada em filamentos de almofadas cinzento-douradas, parecendo um grande rosto que lia a Terra. Patrícia teve vergonha da Lua. Seriam as estrelas minúsculas pupilas de espectadores satíricos? Edgard que sempre fora considerado desembaraçado caminhava timidamente. Uma árvore parecia apontar com o galho rijo para o seu pênis murcho, acanhado, sobre o sacro enrugado com bolas desniveladas. O órgão encolhera-se sem causa térmica. O casal Razzo se sentia nu, com todo o poder de nudez e exposição que o monossílabo tônico expressa.
O que chamavam de quiosque parecia uma grande choupana aberta, com uma ampla cobertura de palha. Bem no centro, uma imensa mesa rústica baixa, de madeira, disforme, com contornos irregulares como pseudópodes sobre a qual jazia uma estatueta de pedra sabão de um homem nu que esculpia a si mesmo; o trabalho de construir-se já estava quase concluído, faltando apenas do joelho para baixo. A mesa central era rodeada por várias outras menores, com conjuntos de assentos forrados com almofadas.
Toda a mobília estava ocupada, talvez por umas quarenta pessoas. Num dos conjuntos selvagens de sofás, estavam todos os da cachoeira, além do síndico e da subsíndica, deitada com a cabeça nas pernas da gordinha.
- E aí, relaxaram bem? – perguntou Augusto.
- Dormimos – Respondeu Edgard com um sorriso artificial
- Esta é minha companheira, Vitória, acho que vocês já a conheceram quando chegaram – Apresentou Marilene a negra dos olhos de jabuticaba.
- Sim conhecemos – respondeu Patrícia.
Um grupo de adolescentes cantava baixinho e até bem afinado, assentados no degrau do quiosque, acompanhados por um violonista loiro, de cabelos dread, como cordas pendendo do topo da cabeça. Os olhos miúdos eram molduras de dois círculos de mel, assim como emoldurava o rosto longo uma barba fina dourada:
Todos permaneciam em silêncio acompanhando o embalo do coro quase uníssono de voz juvenil. As fisionomias contemplativas assistindo a lembranças do que foi, do que poderia ter sido...
- Será que, na nossa idade, não se arrependerão de nada? – quebrou a introspecção coletiva Adônis.
- Arrepender pelo mal que fizemos a alguém ainda vai, mas de resto, para quê? Ninguém sabe até onde nos levariam as escolhas diferentes que faríamos – comentou Vitória, a vice-síndica.
Talvez tranquilizados pela música, os Razzo estavam mais à vontade, embora a sensação de nudez que não havia os afetado, quando chegaram ao acampamento, agora continuava incomodando um pouco. E, nessa pequena paz experimentada, surgiu uma sutil raiva não explicada, como de um insulto inaudito e esse sentimento paradoxal possibilitou um pouco de ousadia, pois a raiva, bem como toda emoção tem lá suas utilidades.
- Pois eu não me arrependo de nada. Arrependeria se dentre as dezenas de lugares do mundo aonde fomos, não conhecesse Paris – falou Patrícia enfaticamente.
- Sabe – interagiu Vitória – uma vez me peguei pensando em quanta coisa poderia ter feito na minha juventude, afinal já sou uma mulher com 50 anos. Pensei justamente nisso: se eu tivesse feito isso ou aquilo já poderia ter conhecido a França. Mas é interessante como a gente reconstrói um provável passado idealizando as possibilidades, ignorando as infinitas outras probabilidades que acompanhariam esse novo cenário. Por exemplo, talvez eu estaria no vôo 447 da Air France do Rio de Janeiro para Paris, que caiu no Oceano Atlântico em 1° de junho de 2009...
- Que reflexão interessante! – acrescentou Henrique.
- Realmente! Essa viagem filosófica foi melhor que a Paris, meu amor – Disse Marilene abaixando-se de dando um beijos nos lábios carnundos de Vitória. – De Paris você traria fotografias e suvernirs, mas dessa viagem interna você trouxe uma jóia que a faz mais linda ainda minha pérola negra.
- Estranho como conhecemos tanto dos mapas externos, de ruas e rotas e seus destinos e não sabemos quase nada de nós mesmos, dos inícios das estradas que nos trouxeram até aqui nem das belíssimas grutas que escondemos nas nossas entranhas – refletiu Hélio.
- E dos morceguinhos que moram nelas também, né querido? – tornou Lúcia sorrindo.
- E vocês? O que trazem para nós de suas viagens interiores? – questionou despretenciosamente Adônis aos Razzo.
Patrícia alisou as duas pernas com que se aquecendo, Edgard coçou a cabeça.
- Olha, não temos tempo para essas viagens. Trabalhamos tanto. O que nos sobra é para entretenimento. – explicou Edgard.
- Sim, somos donos da M&S – Music and songs, a maior fábrica de instrumentos musicais da América Latina. São mais de mil empregados. Fazer gestão de um número assim de pessoas num mundo globalizado não é fácil. – completou Patrícia.
- Por isso nós os convidamos para vir aqui, Patrícia, para tirar um tempo para vocês. Para descansar, nem que seja um pouco, dessa pressão do “ter” que suprime tanto o nosso Ser. Não que queiramos ser hipócritas fingindo que não há necessidade do mundo capitalista. Apenas queremos com o Naturismo trazer algo das nossas origens que nos possam trazer benefícios para a alma, espírito, personalidade ou seja lá que palavra queira usar – comentou Hélio enquanto saboreava um gole de vinho.
- Veja que presente maravilhoso nos deu Vitória com a viagem não feita dela. – observou Lúcia.
Enquanto Patrícia esfregava as duas mãos ansiosamente, Edgard contraiu o rosto e aumentou a força e a velocidade com que coçava a cabeça. Subitamente ele se levantou e disse nervoso, interrompendo a canção dos jovens que olharam admirados:
- Olha, quer saber, isso aqui não é para nós. Nos desculpem Hélio e Lúcia, mas cometemos um equívoco. Entendemos mal a conversa no restaurante. Tanto a Pat como eu estamos exaustos desse negócio. Acho melhor irmos embora.
- Tudo bem, Edgard, mas o que especificamente os incomodou tanto? – retornou Hélio.
Nesse momento, Patrícia também já estava de pé.
- Vocês nos deixaram hiper à vontade, não tem nada a ver com vocês – disse ela concordando com a estratégia do marido – É coisa nossa mesmo.
- Sim, mas o quê? – insistiu Hélio.
- Sei lá, a conversa, as normas... a gente não pode falar nada, entende? Lembram hoje cedo do anel da Pat? Acho que isso nos bloqueou, não sei... Acho que não é o nosso perfil o naturismo.
- E qual seria o perfil de vocês? – inquiriu Marilene.
- Desculpem, é melhor irmos embora. Sinceramente? Estou de saco cheio dessa filosofia hippie-pós-moderna, que para mim, nada mais é do que uma desculpa pela incompetência por ser pobre! – disse Edgard quase gritando – e acrescentou: - Como fazemos para sair daqui:
- Do mesmo jeito que entraram. Peguem suas coisas no Chalé, vão à portaria e peguem a chave do carro. – explicou Henrique tranquilamente.
- Então... então... vamos, Pat.
Os dois fizeram que fossem dizer alguma coisa, se despedir, mas menearam coincidentemente juntos a cabeça e foram embora.
Durante o retorno para a cobertura onde moravam, Patrícia roia as unhas da mão direita enquanto com a outra roçava o anel de diamantes. Edgard concentrava-se intensamente na estrada vazia, segurando o volante com tamanha força que as veias do pescoço se avolumavam, como se estivesse numa corrida de fórmula um.
Quando chegaram à cidade, ele saiu da introspecção gélida e propôs:
- Pat, o que acha de irmos ao Chef de Cuisine comer um Boeuf Bourguignon e depois um Creme Brulée.
- Maravilhosa idéia, Ed. Mas primeiro vamos passar no ap. Saímos tão depressa daquele fim de mundo que estou toda desarrumada.
Já no Chef de Cuisine, os Razzo, assentados à mesa, saboreavam um espumante e a entrada: um Carpaccio servido num prato raso. Estranhamente, os dois, mesmo observando os clientes com trajes elegantes e suntuosos, os garçons com roupas bem cortadas e desenhadas, o uniforme do maitre impecável e bem passado, mesmo com toda aquele agasalho e adorno dos mais variáveis tipos, espessuras, texturas, cortes e designs; eles viam as pessoas e a si próprios como se estivessem com disfarces, escondendo uma nudez que era mais profunda que a pele.
Num insight, descobriram que, por mais que se cobrissem, estavam todos totalmente nus.
2º) É expressamente proibida a entrada de veículos dentro do acampamento, salvo por motivo de saúde ou acidente;
3º) É expressamente proibida a utilização de qualquer eletrodoméstico e objetos eletrônicos dentro do acampamento, salvo os necessários, dentro dos chalés, para preservação de alimento ou devido à saúde;
4º) Não será permitido qualquer som além dos emitidos pela natureza, diálogos ou canções com instrumentos musicais, desde que seja entre às 09h30m e 22h30m;
5º) É expressamente proibida a utilização de material pornográfico no acampamento;
6º)É expressamente proibida a prática de relações sexuais em público no acampamento. Serão tomadas todas as medidas legais para os casos comprovados de atentado violento ao pudor;
7º)Nos casos de excitação involuntária masculina, os autores deverão se retirarem aos chalés;
8º)É expressamente proibido o comércio de qualquer tipo dentro acampamento;
9º)É expressamente proibida a divulgação religiosa, política e relacionada a agremiações esportivas ou de negócios sejam humanitárias ou não;
10º)Considerando a ideologia naturista de desenvolvimento e manutenção do Ser em detrimento do ter, sugere-se enfaticamente evitar diálogos que envolvam a exposição de status seja de que tipo for.
Eu____________________________ portador da identidade _______ concordo em seguir plenamente o acima enquanto estiver dentro da comunidade, inclusive, com a plena orientação aos meus dependentes.
Edgard e Patrícia assinaram as instruções mecanicamente, mais pelo amortecimento causado pelo impacto das normas do que pela consciente concordância com o que leram. Depois foram levados ao chalé nº 07, onde foram incentivados a ler mais instruções que estavam afixadas atrás da porta.
Todos os chalés eram iguais no tamanho, na disposição dos cômodos e dos móveis. Uma construção em madeira de 40m², cujo centro ao fundo era ocupado por uma imensa cama de casal. Sobre um dos criados mudos havia um telefone. Ao lado esquerdo da porta, próxima à janela, uma mesa com um arranjo de margaridas e alecrim rodeada de quatro cadeiras. Mais à extremidade, um frigobar e uma pequena bancada. No lado oposto, além do banheiro, havia uma estante para livros e um sofá de dois lugares. A parte da frente era estendida numa varanda com um banco e duas redes.
- Pelo visto, viveremos como Tarzan e Jane – ironizou o homem.
- Conforto zero – completou a mulher.
Os dois desfizeram as mochilas e ficaram nuzinhos em pê, olhando um para o outro seriamente, até que soltaram uma retumbante gargalhada.
- Quem está na chuva é pra se molhar!
E lá se foram eles encontrar com Hélio e Lúcia, próximo ao chafariz, no centro do acampamento. Ao contrário da maioria que ia a uma comunidade naturista pela primeira vez, os dois não se envergonharam nem um pouco, não se preocuparam com os possíveis olhares oblíquos, investigadores ou audaciosos. Pareciam dois nativos de uma ilha deserta, caminhando desde sempre, presunçosos de suas curvas côncavas e convexas, dos pelos sedosos, bem cortados e distribuídos, da altura, peso e comprimentos, dos lábios grandes e bem torneados, dos membros... Um macho e uma fêmea, magníficos exemplares da espécie homo sapiens. Ele, um uomo, branco marmóreo, olhos azuis acinzentados, cabelos negros brilhantes e um rosto italiano emoldurado por uma barba feita, andava elegantemente, calmo, levando seus um metro e oitenta e cinco de corpo olímpico. Ela, loira quase Brigite Bardô, cabelos longos e boca sempre semiaberta como se fosse pronunciar alguma palavra com sua voz de algodão. Acostumados que estavam a imaginarem as pessoas invisivelmente os despindo, andavam orgulhosamente como se sempre estivessem nus. Foram despertados daquela descontração leve e altiva somente quando Lúcia mencionou:
- Parece que estão à vontade, hein? Só um detalhezinho: Pat, não leve a mal, mas poderia tirar o anel? Como vocês leram, só podemos ficar com as alianças.
O anel??? Não é possível que iriam implicar com um anelzinho de ouro e uma pedra de diamantes. Ouro e diamante não eram elementos da natureza? Por que proibi-los? Ela esfregou a joia com o polegar nervosamente e falou:
- Num minuto deixo lá no chalé e volto.
Quase correndo, chegou rapidamente ao chalé. Quando tirou o anel, teve a sensação de que estava amputando um dedo. Dormia e tomava banho com ele. O anel tinha virado uma extensão de seu corpo, uma expressão do seu eu diamantado. Sem ele, começou realmente a se sentir nua, como Eva depois da mordida no fruto proibido. Olhou-se rapidamente no espelho ovalado próximo ao banheiro. Era uma mulher bela, os bicos dos seios nivelados, fincados em duas abóbadas firmes. Mostrou a mão para o reflexo. A pequena marca mais clara no dedo parecia ser toda ela, sensível ao vento, pequena porção de pele desacostumada a estar descoberta. O gesto do dedo levantado parecia zombar de seu corpo no mundo concreto. - Por que o meu constrangimento? – Deixou o espelho sem resposta e retornou com passos rápidos e ofegantes ao encontro no chafariz.
Percebeu a fisionomia fechada do marido. Seria por causa do esquecimento dela?
- Desculpem-me, esqueci mesmo.
- Não há problema, Patrícia, às vezes isso acontece comigo também – Confortou-a Lúcia.
- Tudo bem, Ed? Parece que você ficou com raiva.
Ele esboçou uma fisionomia de que tentava se conter mais não conseguiu:
- Não é isso, Pat. Olha, vocês me desculpem mais eu vou falar – disse ele dirigindo-se à Patrícia - quando você saiu para pegar o anel, eu falei que foi um presente de aniversário de casamento e, assim, despretensiosamente, mencionei o preço da joia. Então o Hélio me censurou: perguntou novamente se não tínhamos lido o 10º artigo das normas que reza sobre a exposição de status. Eu expliquei que a frase saiu naturalmente, que eu não queria aparecer quando disse que havia custado mais de 50.000 dólares...
- E nós explicamos educadamente que compreendemos, que temos certeza que realmente ele não queria aparecer, mas que é necessário lembrarmos constantemente as regras para que a pessoa desenvolva o hábito de apresentar-se por meio de valores subjetivos, próprios da essência do sujeito e não das coisas que foram agregadas a ele e o fazem confuso entre o ter e o ser. Não foi uma censura, Edgar – interrompeu Hélio esclarecendo.
- Sim, nós queremos apenas o Edgar e a Patrícia aqui, entenderam? Nos desculpem se parecemos rudes, mas, creiam, não é o caso. Depois vocês verão como é bom apenas Ser – acrescentou Ana e depois concluiu – Pense, Ed! O que você daria a Pat, se todos no mundo fossem naturistas?
Edgard não respondeu. Deu a mão à esposa que parecia envergonhada:
- Tudo bem, tudo bem. Quem pede as desculpas somos nós, não é Pat. Vamos então?
Os quatro pegaram uma trilha que descia em direção a um barulho de queda d’água, ao longe. O Marques faziam as vezes de guia, explicando curiosidades sobre ecologia, naturismo e engajamento, mas as palavras e frases chegavam aos ouvidos dos Razzo e evaporavam antes de concluídas de tão ensimesmados que estavam: “... sementes... desse tipo de árvore... mais distante o pomar... inclusive rúcula silvestre... do tratamento de água... ajudamos assim os que criam gado de leite na região... filoso...” Edgard lutava contra a pergunta que Lúcia fizera: “O que você daria a Pat, se o mundo fosse um imenso planeta de naturismo?” Ele procurava respostas para preencher o vazio que surgiu no seu peito e mexia como um gigantesco verme. Mas quanto mas investigava a si mesmo, mais vazio encontrava, como um homem brasileiro analfabeto a quem se faz uma pergunta em aramaico. Mas que ele encontraria a resposta encontraria Ou achavam os Naturistas que a única coisa que os Razzo tinham era dinheiro? Patrícia friccionava o indicador com o polegar, o dedo já vermelho e ardente. Embora fosse verão, seus pelos louros arrepiavam em penugem de febre. Estava ruborizada. Era como se as árvores, os pássaros, as pedras todos reparassem nas marcas retilíneas do biquíni e erguessem o dedo, em chiste, falando em uníssono “É artificial! É artificial! É artificial”...
A cachoeira decepcionava pelo tamanho mais impressionava pela beleza. A queda terminava no centro de um lago em forma de coração, cujas margens eram ornadas por samambaias gigantes e orquídeas.
-... e esse tipo de planta juntamente com o equilíbrio da natureza impede a proliferação de pernilongos aqui. Acreditam???
A interrogação e o semblante de questionamento de Hélio tiraram novamente os Razzo de sua introspecção opaca em que se sentiam, como se estivessem procurando por um endereço numa cidade invadida por uma neblina densa, entre ruas e construções que eram sombras cujas formas oscilavam.
Já atentos para o mundo exterior, o casal notou a beleza do local e a presença de outras pessoas. Algumas conversavam assentadas numa rocha tão nua quanto os corpos sobre ela, lembrando uma pintura. Uma mulher desavergonhadamente gorda lia um livro deitada, apoiando-se sobre os cotovelos, o rostinho redondo e delicado sobre as mãos, as pernas também afunilando-se em pés de bibelô, o joelho direito levantando e abaixando no embalo da leitura; duas meninas e um menino garimpavam seixos preciosos na margem rasa. Três adolescentes, no meio do poço cristalino, divertiam-se mergulhando e passando sob os tuneis de pernas juvenis. Dois casais dialogavam, um senhor e uma senhora sexagenários, magros, pele já bem enrugada, cabelos brancos, mas, pelo gesto e pelo vigor da articulação das palavras, pareciam esbanjar saúde e convicção. O outro casal teria uns quarenta anos, ambos morenos de olhos verde-oliva. A mulher estava grávida.
- Amigos, gostaria de apresentar-lhes Patrícia e Edgar. Estão conhecendo o acampamento hoje – Interrompeu-os Hélio.
- Prazer – disseram todos quase em uníssono se apresentando.
- Não querem nos fazer companhia, nutrindo de um pouco de vitamina D? – perguntou Henrique, o mais velho.
O tema da conversa dos quatro eram os baús empoeirados no obscuro inconsciente, dentro dos quais escondíamos nossos códices e tabus mais secretos. Tábuas de uma lei gravada não em pedra, mas em letras anímicas, as quais nenhum código genético desvendou e possivelmente jamais chegará a fazê-lo.
- Pois eu digo: sou podre – afirmou um pouco mais alto e veemente Marta, a gestante.
– Tudo bem, sou adepta do naturismo, faço meditação e ioga, leio alguns livros que não chegam a ser classificados de autoajuda só por causa do PHD dos autores e das dezenas de citações no final. Mas, por mais que me esforce, sinto-me como um vulcão, que a qualquer momento pode entrar em erupção.
- Mas a natureza é assim, Marta – interrompeu Letícia – ainda mais com nós mulheres, que somos realmente vulcânicas e expelimos rubras lavas todo mês.
- O importante é ter consciência disso e procurar viver o bom e o ruim com o maior significado possível. O mal ao léu é que é pior – observou Adônis.
- Depende – disse Lúcia – os psicopatas fazem o mau com plena consciência e nem por isso o mau deles é melhor.
- Lúcia, significado é uma junção de consciência e emoção. Nos psicopatas, falta a sensibilidade – acrescentou Adônis, juntando as duas mãos. – Vejam! Eu também sou bem mesquinho. Se vejo um mendigo desnutrido e doente na rua, afasto-me. O que me impediria de levá-lo para casa, oferecer-lhe banho e comida? O nojo? O medo? O clichê que “uma andorinha só não faz verão”?
- Já que fez a pergunta, responda você mesmo, Adônis! – inquiriu Marta.
- Não sei, Marta. Da minha ego trip, somente retornei com um alforje cheio de interrogações e possibilidades. Pouquíssimas respostas. Na minha opinião, todos nós temos sabores e odores. O problema é quando nossa podridão chega a afetar o nariz do outro. Nesse caso, temos que procurar desenvolver a capacidade de perceber o que está acontecendo para lidar com a situação da melhor forma possível.
- O problema é que a nossa melhor forma possível às vezes não é a melhor forma possível do outro – disse Marilene, a gordinha do livro, fechando-o e juntando-se à turma.
A fisionomia dos Razzo parecia ter sido maquiada à grossa camada de base. Os olhos piscavam em demonstração clara de insistente tentativa de entender algo. Henrique, percebendo, virou-se para eles e perguntou:
- O que vocês acham?
Edgard hesitou. Patrícia titubeou algumas sílabas que só ficaram na simulação. O marido, enfim, respondeu:
- Sabem o que é, bem, eu e a Pat somos administradores. Somos inclusive pós-graduados, mas não entendemos nada de psicologia ou filosofia que parece ser o teor da conversa aí.
- Não importa, amigo, a nossa formação profissional – procurou esclarecer Adônis –, afinal já existíamos antes da Universidade não é mesmo? Podem participar da conversa à vontade.
- É que pegamos o bonde andando...
- Estávamos falando sobre a dificuldade de descobrirmos quem realmente somos e encararmos essa fisionomia com todas as suas cicatrizes e até mesmo feridas em plena hemorragia. E, é claro, as sutis belezas que possui qualquer ser humano – mencionou Henrique colocando a palma da mão em frente ao rosto.
Cicatrizes? Feridas? Sangue? O corpo dos Razzo era incólume. Estátuas talhadas pela genética que começou em Roma e chegou à descendência italiana no Brasil.
Marilene, movimentando verticalmente os dedinhos na reentrância entre os fartos seios, encarou fixamente com os olhos miúdos e perguntou:
- E vocês? Como lidam com suas anomalias subterrâneas?
A pergunta pareceu atingi-los como uma facada, ou melhor, uma enxadada no peito, trincando o mármore branco e expondo a terra de que eram feitos. Era como se alguém, abruptamente, tomasse consciência de algo absurdo que sempre aconteceu, mas não era percebido, como se deixassem despreocupados o vaso sanitário, mas com um sutil nojo do que deixaram no fundo da louça alvíssima e, de repente, atinassem que produziam e carregavam, boa parte do dia, aquela coisa repugnante e fétida. Talvez porque a gordinha usava metáforas que mudavam a perspectiva de ver a questão. “Anomalias Suberrâneas”??? Não podia usar simplesmente “problemas”? A metáfora era tão forte que parecia causar um terremoto num solo compacto nunca antes explorado.
Edgard não sabia, mas adivinhava que a Patrícia bem como ele estava mesmo é com vontade se levantar e sair dali e mandar a todos para o raio que os partissem. Pareciam pajés discutindo sobre maldições de espírito da natureza. Literalmente ele e a esposa se meteram num programa de índio. Antes eles haviam imaginado o acampamento como um local aconchegante onde continuariam sua conversa sobre jazz e blues e depois a estenderiam sobre as conquistas que fizeram, o concerto que assistiram em Viena, na Áustria, no teatro onde Bethovem se apresentou, a fábrica de instrumentos musicais que possuíam, a maior da América Latina, o lucro líquido, as estratégias para lidar com a crise na Grécia que se estenderam pela Europa e chegava ao Brasil... Mas não! Foram parar num local que parecia parado no neolítico, cujas pessoas vinham com aquela conversa filosófica que não os levaria a lugar algum. Qual a contribuição da filosofia e da literatura para a porcentagem do PIB de um país?
Como eles não respondessem, a leitora gordinha continuou:
- Na minha opinião, viver com o máximo de plenitude, ainda mais coletivamente, é um desafio. É como construir castelos de areia à beira mar e impedir que a arrebentação os destrua em noite de maré alta. Construímos um mundo idealizado com as palavras como se ele fosse real, como se o vernáculo representasse com precisão os fatos e as coisas. Besteira! São meros castelos de letras que se arruínam com a primeira onda de concretude improvisada pelas múltiplas possibilidades do imprevisto. A Revolução francesa reverbera em cada um de nós e põe nosso pescoço na guilhotina diariamente, sejamos nobres ou plebeus.
- Então não há saída? – tornou Lúcia.
- Para mim o que está perto de ser uma saída é a nudez. Obviamente estou falando de um substantivo mais abrangente – esclareceu olhando para o casal Razzo. – Por isso sou adepta do naturismo. Ando nua em pêlo, com meus peitos balançando como uma velha índia tapajó e minhas dobras repletas de ousadia. Não quero roupas escuras que me emagreçam nem listas que diminuam minha silhueta. Quero a demonstração mais obscena de mim, mas explícita que filme erótico, pois não há ação que distraia a razão, apenas meu corpo no estado mais cru possível.
- Nossa! Acho que você está com a autoestima em baixa! – Declarou Patrícia surpreendo Edgard e atraindo a atenção para si. – Você tem que gostar mais de você.
- Possivelmente não fui clara. É justamente isso que a nudez me possibilita, gostar mais de mim. Mas quem é esse mim? Um pronome pessoal do caso oblíquo? Ou um ser resultado de uma sopa primordial de letras, logos de um dicionário que clama por ser lido? Nessa existência do corpo àquilo que chamam alma, espírito ou aparelho psíquico. Quem sou eu? Livro-me dos meus trajes que nada mais são que máscaras. Embelezam-me ou camuflam? Exponho-me qual esfinge propondo a mim mesma o grande enigma.
- Não entendi o que as palavras têm a ver com isso – comentou Edgard.
- As palavras são a roupa da psique. Quando você diz “Sou sincero”, não está nada mais nada menos que vestindo sua Persona para executar um papel social ou personagem no grande teatro que é o mundo. Não nega que essa palavra é derivada do Latim e se refere a uma máscara feita para resoar com a voz do ator (per sonare significa "soar através de"), possibilitando que fosse bem ouvida pelos espectadores, bem como para dar ao ator a aparência que o papel exigia. Continuamos fazendo usando a mesma estratégia: usamos as palavras para levar aos ouvidos dos outros uma personagem que acreditamos existir. Mas pare para analisar-se com coragem, faça como se fosse um exército de um homem só que enfrenta uma tropa inimiga e verá que na frente de batalha, entre estandartes e espadas, está um soldado rival com o seu rosto. Alie-se a ele, retirem a armadura e examinem todas as insígnias, discernindo emblemas de estigmas.
Apesar de acariciado pelos raios mornos de um sol dourado de outono, Edgard sentiu frio. Os membros superiores e inferiores com os pêlos eriçados, e, ao contrário, o membro central encolhido. Estava assentado na rocha apoiando-se nas mãos atrás das costas. Num gesto, abraçou as pernas aquecendo-se e escondendo aquele que há pouco lhe era motivo de orgulho. Um calor surgia-lhe na região do umbigo, cratera arqueológica humana e irradiava pelo peito, esparramando pelo pescoço e crânio. Ele então se percebeu nu e febril.
Patrícia esfregava obsessivamente o dedo médio, que ardia e já estava a ponto de sangrar. Como Eva, ela mordera o fruto primeiro que o marido, quando teve que abandonar seu anel de diamantes. Abismada, sentia-se à beira de um precipício ou talvez de um princípio cujo desconhecimento da novidade a tornava quase catatônica.
O que aconteceu depois, se tivesse de ser narrado pelo casal Razzo se resumiria no trecho: “subimos ao refeitório, fizemos um lanche, dissemos que estávamos cansados, fomos para o chalé, dizendo que não apareceríamos para o almoço, mas que com certeza estaríamos presentes à noite para o bate-papo com bebida e tira-gosto”, pois entraram novamente num estado de introversão profundo, contudo sem imagens, como se fossem fugitivos da antiga Alemanha Oriental que se deparassem com o muro da vergonha e diante do obstáculo instransponível ficassem parados, abstraídos, quase mesclando-se ao concreto limítrofe.
No chalé, retornaram do estado absorto com o comentário de Patrícia:
- Que coisa, não?!
- O quê?
- Isso!
- Pois é...
- Estou exausta!
- Eu também, melhor dormir.
Aninhados no edredom que trouxeram, feito à base de fios egípcios e recheado com plumas esterilizadas do gogó do ganso siberiano, a parte mais nobre do animal, os Razzo caíram em sono profundo.
Os dois sonharam:
Ele que era uma múmia milenar que estava sendo analisada por um grupo de cientistas renomados.Ao se desenrolarem as tiras de linho fino e o rolo de papiro com encantamentos do Livro dos Mortos, e se deparar com a pele, couro formado pela ação dos séculos, e furá-la, nada se encontrava dentro, a não ser um ar que se esvaia como uma flatulência com cheiro de mofo. Ela sonhava que era uma arara azul capturada por indígenas e estava sendo escaldada num caldeirão de barro. Suas penas eram retiradas uma a uma até que sobrou aquela coisa ridícula, com asas inúteis, meros apêndices de um corpo rugoso que não pode voar. Patrícia acordou com o barulho de Edgar lavando o rosto no banheiro.
- Nossa, tive um pesadelo estranho! Acordei ensopado – disse ele.
- Eu também – acrescentou ela.
- Será que era mesmo hortelã o que misturaram naquele suco de abacaxi?
- Não chega a tanto, né, Ed? Querido, já são oito e meia. Dormimos o dia inteiro!
- Então, vamos ao bate-papo ou não, Pat?
- Acho melhor irmos. Não saímos nada à francesa lá de baixo.
E foram. Tomaram um banho rápido e foram. Porém, quase já na metade do caminho, perceberam que estavam vestidos de pijamas e tiveram que voltar ao chalé para se despirem. A temperatura estava amena, mas, à medida que desciam em direção ao quiosque onde seria o encontro, começaram a ter arrepios. Talvez porque, durante o dia, pode-se ver quem nos vê; mas à noite, só temos a incógnita de silhuetas obscuras e penumbrosas. Além do mais, a Lua brilhava, gorda, um amarelo obsceno, deitada em filamentos de almofadas cinzento-douradas, parecendo um grande rosto que lia a Terra. Patrícia teve vergonha da Lua. Seriam as estrelas minúsculas pupilas de espectadores satíricos? Edgard que sempre fora considerado desembaraçado caminhava timidamente. Uma árvore parecia apontar com o galho rijo para o seu pênis murcho, acanhado, sobre o sacro enrugado com bolas desniveladas. O órgão encolhera-se sem causa térmica. O casal Razzo se sentia nu, com todo o poder de nudez e exposição que o monossílabo tônico expressa.
O que chamavam de quiosque parecia uma grande choupana aberta, com uma ampla cobertura de palha. Bem no centro, uma imensa mesa rústica baixa, de madeira, disforme, com contornos irregulares como pseudópodes sobre a qual jazia uma estatueta de pedra sabão de um homem nu que esculpia a si mesmo; o trabalho de construir-se já estava quase concluído, faltando apenas do joelho para baixo. A mesa central era rodeada por várias outras menores, com conjuntos de assentos forrados com almofadas.
Toda a mobília estava ocupada, talvez por umas quarenta pessoas. Num dos conjuntos selvagens de sofás, estavam todos os da cachoeira, além do síndico e da subsíndica, deitada com a cabeça nas pernas da gordinha.
- E aí, relaxaram bem? – perguntou Augusto.
- Dormimos – Respondeu Edgard com um sorriso artificial
- Esta é minha companheira, Vitória, acho que vocês já a conheceram quando chegaram – Apresentou Marilene a negra dos olhos de jabuticaba.
- Sim conhecemos – respondeu Patrícia.
Um grupo de adolescentes cantava baixinho e até bem afinado, assentados no degrau do quiosque, acompanhados por um violonista loiro, de cabelos dread, como cordas pendendo do topo da cabeça. Os olhos miúdos eram molduras de dois círculos de mel, assim como emoldurava o rosto longo uma barba fina dourada:
“Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!…”
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!…”
Todos permaneciam em silêncio acompanhando o embalo do coro quase uníssono de voz juvenil. As fisionomias contemplativas assistindo a lembranças do que foi, do que poderia ter sido...
- Será que, na nossa idade, não se arrependerão de nada? – quebrou a introspecção coletiva Adônis.
- Arrepender pelo mal que fizemos a alguém ainda vai, mas de resto, para quê? Ninguém sabe até onde nos levariam as escolhas diferentes que faríamos – comentou Vitória, a vice-síndica.
Talvez tranquilizados pela música, os Razzo estavam mais à vontade, embora a sensação de nudez que não havia os afetado, quando chegaram ao acampamento, agora continuava incomodando um pouco. E, nessa pequena paz experimentada, surgiu uma sutil raiva não explicada, como de um insulto inaudito e esse sentimento paradoxal possibilitou um pouco de ousadia, pois a raiva, bem como toda emoção tem lá suas utilidades.
- Pois eu não me arrependo de nada. Arrependeria se dentre as dezenas de lugares do mundo aonde fomos, não conhecesse Paris – falou Patrícia enfaticamente.
- Sabe – interagiu Vitória – uma vez me peguei pensando em quanta coisa poderia ter feito na minha juventude, afinal já sou uma mulher com 50 anos. Pensei justamente nisso: se eu tivesse feito isso ou aquilo já poderia ter conhecido a França. Mas é interessante como a gente reconstrói um provável passado idealizando as possibilidades, ignorando as infinitas outras probabilidades que acompanhariam esse novo cenário. Por exemplo, talvez eu estaria no vôo 447 da Air France do Rio de Janeiro para Paris, que caiu no Oceano Atlântico em 1° de junho de 2009...
- Que reflexão interessante! – acrescentou Henrique.
- Realmente! Essa viagem filosófica foi melhor que a Paris, meu amor – Disse Marilene abaixando-se de dando um beijos nos lábios carnundos de Vitória. – De Paris você traria fotografias e suvernirs, mas dessa viagem interna você trouxe uma jóia que a faz mais linda ainda minha pérola negra.
- Estranho como conhecemos tanto dos mapas externos, de ruas e rotas e seus destinos e não sabemos quase nada de nós mesmos, dos inícios das estradas que nos trouxeram até aqui nem das belíssimas grutas que escondemos nas nossas entranhas – refletiu Hélio.
- E dos morceguinhos que moram nelas também, né querido? – tornou Lúcia sorrindo.
- E vocês? O que trazem para nós de suas viagens interiores? – questionou despretenciosamente Adônis aos Razzo.
Patrícia alisou as duas pernas com que se aquecendo, Edgard coçou a cabeça.
- Olha, não temos tempo para essas viagens. Trabalhamos tanto. O que nos sobra é para entretenimento. – explicou Edgard.
- Sim, somos donos da M&S – Music and songs, a maior fábrica de instrumentos musicais da América Latina. São mais de mil empregados. Fazer gestão de um número assim de pessoas num mundo globalizado não é fácil. – completou Patrícia.
- Por isso nós os convidamos para vir aqui, Patrícia, para tirar um tempo para vocês. Para descansar, nem que seja um pouco, dessa pressão do “ter” que suprime tanto o nosso Ser. Não que queiramos ser hipócritas fingindo que não há necessidade do mundo capitalista. Apenas queremos com o Naturismo trazer algo das nossas origens que nos possam trazer benefícios para a alma, espírito, personalidade ou seja lá que palavra queira usar – comentou Hélio enquanto saboreava um gole de vinho.
- Veja que presente maravilhoso nos deu Vitória com a viagem não feita dela. – observou Lúcia.
Enquanto Patrícia esfregava as duas mãos ansiosamente, Edgard contraiu o rosto e aumentou a força e a velocidade com que coçava a cabeça. Subitamente ele se levantou e disse nervoso, interrompendo a canção dos jovens que olharam admirados:
- Olha, quer saber, isso aqui não é para nós. Nos desculpem Hélio e Lúcia, mas cometemos um equívoco. Entendemos mal a conversa no restaurante. Tanto a Pat como eu estamos exaustos desse negócio. Acho melhor irmos embora.
- Tudo bem, Edgard, mas o que especificamente os incomodou tanto? – retornou Hélio.
Nesse momento, Patrícia também já estava de pé.
- Vocês nos deixaram hiper à vontade, não tem nada a ver com vocês – disse ela concordando com a estratégia do marido – É coisa nossa mesmo.
- Sim, mas o quê? – insistiu Hélio.
- Sei lá, a conversa, as normas... a gente não pode falar nada, entende? Lembram hoje cedo do anel da Pat? Acho que isso nos bloqueou, não sei... Acho que não é o nosso perfil o naturismo.
- E qual seria o perfil de vocês? – inquiriu Marilene.
- Desculpem, é melhor irmos embora. Sinceramente? Estou de saco cheio dessa filosofia hippie-pós-moderna, que para mim, nada mais é do que uma desculpa pela incompetência por ser pobre! – disse Edgard quase gritando – e acrescentou: - Como fazemos para sair daqui:
- Do mesmo jeito que entraram. Peguem suas coisas no Chalé, vão à portaria e peguem a chave do carro. – explicou Henrique tranquilamente.
- Então... então... vamos, Pat.
Os dois fizeram que fossem dizer alguma coisa, se despedir, mas menearam coincidentemente juntos a cabeça e foram embora.
Durante o retorno para a cobertura onde moravam, Patrícia roia as unhas da mão direita enquanto com a outra roçava o anel de diamantes. Edgard concentrava-se intensamente na estrada vazia, segurando o volante com tamanha força que as veias do pescoço se avolumavam, como se estivesse numa corrida de fórmula um.
Quando chegaram à cidade, ele saiu da introspecção gélida e propôs:
- Pat, o que acha de irmos ao Chef de Cuisine comer um Boeuf Bourguignon e depois um Creme Brulée.
- Maravilhosa idéia, Ed. Mas primeiro vamos passar no ap. Saímos tão depressa daquele fim de mundo que estou toda desarrumada.
Já no Chef de Cuisine, os Razzo, assentados à mesa, saboreavam um espumante e a entrada: um Carpaccio servido num prato raso. Estranhamente, os dois, mesmo observando os clientes com trajes elegantes e suntuosos, os garçons com roupas bem cortadas e desenhadas, o uniforme do maitre impecável e bem passado, mesmo com toda aquele agasalho e adorno dos mais variáveis tipos, espessuras, texturas, cortes e designs; eles viam as pessoas e a si próprios como se estivessem com disfarces, escondendo uma nudez que era mais profunda que a pele.
Num insight, descobriram que, por mais que se cobrissem, estavam todos totalmente nus.
Crédito das pinturas:
(1) Expulsão do paraíso de Masaccio;
(2) Mujer leyendo de Fernando Botero;
(3) Sirens de Boutibonne;
(4)Salmacis and Hermaphroditus de Bartholomeus Spranger;
(1) Expulsão do paraíso de Masaccio;
(2) Mujer leyendo de Fernando Botero;
(3) Sirens de Boutibonne;
(4)Salmacis and Hermaphroditus de Bartholomeus Spranger;
(5)Study of a Young Man Beside the Sea de Charles Edward.