Serafim

Interessante, o Serafim! Não era propriamente o tipo de homem que fazia com que as mulheres se desligassem de outra cena para contemplar sua figura. Todavia, chamava a atenção. Era alto, forte e tinha uns olhos negros que elas diziam que inquietavam de tão penetrantes. Não tinha intenção de casar, no entanto, alugava o coração de Josefine há mais de dez anos. Qualquer um que fosse descrevê-lo, cometeria injustiça sem uma análise mais atenta. Baseando-se apenas no modo como tratava a namorada, certamente lhe acharia cheio de empáfia. Indo às minúcias, veria que não tinha nada de arrogante, tampouco de expansivo; antes, era recatado, carifranzido. Porém, egocêntrico.

O termo alugar me vem pela exatidão com que se encaixa na história. Porque quando se aluga alguma coisa, é para se usar tudo o que essa coisa pode proporcionar por um valor que o proprietário pede em troca. No caso de Serafim, sem dolo ou má intenção, alugava os sonhos da moça, e como locatário, fazia o que achava melhor, imputando-lhes o tempo e a dificuldade que bem entendia. Pensava que bastava ser e estar para ter o direito de tomar para si a companhia que não podia dispensar. Ela, romântica de estrebuchar, recebia em troca a esperança nunca desmentida, de um dia com ele subir ao altar. Sonhava com esse homem a lhe jurar e a cem testemunhas, eterno amor e devoção.

Incompreensível, a Josefine! Linda como uma pérola, que se não hipnotizasse pelas esmeraldas que tinha nos olhos, encantava pelos cabelos que caiam loiros sobre os ombros. Um corpo de se supor moldado em parafina, tais as curvas que negavam o acaso. No entanto, como que a desperdiçar o poder de escolha, era dada a devaneios. Pois, não eram poucos os que por ela arrastariam um caminhão. Preferia empurrar os seus sonhos amontoados num carrinho de supermercado, do que tomar um atalho e escolher outro caminho. Largar tudo nos corredores entre as gôndolas, sair pela porta de frente, atravessar a rua e tomar um sorvete. Desobrigada porque não, até do tormento da fila do caixa.

Um tio da moça, brigadeiro Tobias, até que gostava dele. Porém, não lhe poupava críticas ao seu jeito enrolado. Pensava consigo ou confidenciava aos mais íntimos:

- É foda, o Serafim! Não casa com a minha sobrinha, mas também não sai de cima.

Sempre a se por responsável pela felicidade da moça, um dia engendrou um plano. Faria com que outro homem se achegasse em seu caminho e despertasse o ciúme de Serafim. Contava que o cara, se sentindo ameaçado, decidisse enfim por se casar.

Ainda a pensar em quem, lembrou-se de Leandro Tibiré.

O rapaz, filho de um velho amigo, caso o tiro saísse pela culatra, não era um mal partido. Advogado recém-formado, já ia formando a clientela que aumentava a olhos vistos. Um pouco falastrão, diga-se de passagem, mas que mal havia? Jovem, corpo atlético, olhos azuis de Jesus, bonito enfim, tinha todos os ingredientes que o tornavam interessante. A sua aparição na trama, se não chutasse o calcanhar de Serafim, – primeira intenção - faria ao menos Josefine lançar os olhos em outra direção - segunda.

Quando faltava uma semana para o aniversário dela, Tobias, falou que lhe daria de presente uma grande festa. Fazia parte do seu plano. Disse-lhe que convidasse a quem bem quisesse porque ele também, no direito de anfitrião, chamaria os amigos mais chegados. Queria mostrar a bela dama em que havia se transformado aquela que muitos não viam desde menina.

Naquele sábado, ela estava deslumbrante. Seus apaixonados declarados e os platônicos, lá estavam convidados como amigos. Rasgavam tantos e eloquentes elogios, que a deixaram sem jeito, constrangida pelo olhar de adesivo do Serafim. Um deles, justamente o que não conhecia, não lhe tirava os olhos de tanto admirar. Era Leandro Tibiré, que não resistindo, aproveitou a ocasião em que o namorado saiu de perto e a convidou para dançar.

- Não me lembro de você, nos conhecemos? Perguntou Josefine.

- Não! Sou Leandro, convidado do seu tio. São grandes e velhos amigos, ele e meu pai. Se lhe conhecesse antes, teria outro conceito de beleza. Não estenderia elogios imerecidos às outras moças. Só não falsos porque impróprios. E se não chamo a mim mesmo de mentiroso, é porque encontro adjetivo que melhor se adéqüe: inconsciente. Sim, nunca quis enganar às outras, apenas não sabia que tamanha formosura fosse possível.

- Não exagere! Mesmo assim, obrigada. Fez-me sentir lisonjeada. Respondeu Josefine, disfarçando uma ponta de atração pelo jovem.

Serafim, que voltava após acomodar alguns amigos notou que os dois dançavam colados, dirigindo-se palavras, olhares.

Fosse um dos amigos que de costume tentavam se aproximar da sua namorada, ou outro entre os convivas que nada tinham de especial, seria mais fácil conter o ciúme. Mas, ao notar no desconhecido, uns dons que não reconhecia em si, foi acometido de um sentimento indisfarçável: o de inferioridade.

Cortejada, ela sempre se soubera, o que ele nunca ignorara. Porém, dessa vez era diferente. Leandro não era uma paquera comum. Representava uma ameaça mais séria. Num relance desatou-se a comparar e viu que seu oponente levava vantagem. O poder de envolvimento do rapaz, por si, já explicava a razão. Fato ou inferência a sedução de Josefine, não importava saber, Era preciso antecipar-se à tragédia, tomar uma atitude.

Assim, tomado de ciúmes, no meio da música que dançavam, tomou as mãos de Josefine das mãos de Tibiré, e a levou para frente da mesa enfeitada de renda, onde se punha o enorme bolo de aniversário.

- Parem a música, por favor – bradou, contrariando o seu jeito recatado.

- Quero nesse instante anunciar outro motivo para essa festa. Meus amigos, convidados, tio Tobias; ouçam o que eu tenho a dizer a Josefine. E virando-se para ela, olhou em seus olhos desconcertantemente verdes, e quase implorou:

- Meu amor; minha vida! Peço-te que me torne o homem mais feliz desse mundo, aceitando ser a minha mulher, até o fim dos nossos dias.

Com os olhos pregados nos olhos de Serafim, Josefine apenas disse:

- Não!

Tirou os sapatos e saiu correndo seguida por olhares desentendidos. Corria feliz pela rua com o vestido todo branco a esvoaçar ao vento. Largou num canto qualquer do supermercado, o carrinho com tudo o que havia comprado durante toda a sua vida. Sentia-se livre de tudo. Despachou a fantasia e correu linda para ser conquistada por quem se aventurasse a bem tratar seu coração. Não importava mais o que iria pensar o tio e toda aquela gente. Pouco se lixava agora com o destino de Serafim.

Dez anos depois, numa sala decorada com móveis antigos, muitos quadros com paisagens nas paredes e tapetes em aconchego de veludo, estão a discutir a relação, Marlene e Serafim:

- Meu querido, precisamos dar um jeito de viver como um casal normal. Você não se decide e assim desse jeito, não te sinto meu. Toda vez que nos despedimos e voltamos cada uma para sua casa, tenho a impressão de que somos um nó frouxo e que se alguém puxar, antes que se aperte provavelmente se desenlaçe.

- Menina, sou eu, Serafim. Estou aqui com você agora, Não te basta?