Um brinde a Pancrácio Mota

Ô gente, sabe de quem eu me lembrei agora? Do Pancrácio Mota, um cara que trabalhou comigo lá na fábrica. Engraçado eu me lembrar dele agora... Acho que é porque no início ele costumava sair com a gente, tomava um chope, batia um papo... Como nós aqui agora. Mas isso foi há muito tempo. Pra vocês terem uma ideia, só que eu me aposentei tem uns cinco anos. Você também, não, Almeida?

Pois é. Ainda me lembro do dia em que ele apareceu lá na fábrica, pedindo emprego. Todo tímido, falando baixo, desviando os olhos. Depois é que foi se tornando mais seguro, mais senhor de si.

Não foi difícil conseguir uma vaga na empresa. Havia muita necessidade de mão-de-obra aquele ano, a fábrica estava em franca expansão. Pois bem: o Pancrácio conseguiu o emprego. Conseguiu, começou a trabalhar e logo se viu que se tratava de um cara muito esforçado. Inteligente, inteligente mesmo, até que ele não era. Mas se esforçava, estava sempre atento e disposto a encarar qualquer tarefa. Com o tempo, e visto também que o serviço na fábrica não era nenhum bicho-de-sete-cabeças, o moço acabou se tornando um funcionário competente. Ganhou confiança em si mesmo, tornou-se mais seguro, passou até a colaborar com o seu chefe imediato na organização do serviço no seu setor.

Eu acompanhei tudo isso de perto porque trabalhava num setor anexo ao dele. Depois é que fui transferido, já quase às vésperas de me aposentar... Ô garçom! Mais uma rodada de chope! Que calor hoje, hein, gente! Mais tarde deve chover... Mas eu ia dizendo que... O que mesmo que eu dizia? Ah, sim: o Pancrácio. Eu via aquele homem trabalhando, se empenhando... e vou dizer uma coisa pra vocês: poucas vezes na vida eu conheci alguém que levasse o seu trabalho tão a sério como o Pancrácio Mota. Com o tempo, ele e a máquina eram quase que uma coisa só. Eram irmãos gêmeos, ele e a máquina. O próprio Pancrácio funcionava como uma máquina. Por exemplo: o seu horário de trabalho era de 7 às 16 horas. Vocês sabem que numa fábrica como aquela os horários são muito rígidos. Pois não é que um belo dia o nosso herói resolveu estabelecer que a partir de então começaria a trabalhar pontualmente às 6:57! E assim foi. Ele chegava cedo e esperava o relógio marcar 6:57. Aí então começava a trabalhar. E todos os seus movimentos, procedimentos e tempo utilizado em cada ação, tudo era milimetricamente calculado e controlado. É mole, gente? Eu pergunto a vocês: aquilo era mesmo um homem ou uma máquina? Afinal, que bicho era aquele?

Mas em razão de tudo isso, aconteceu o que a todos parecia inevitável: Pancrácio foi promovido. Foi promovido e ganhou o comando de um setor importante, onde se produziam peças de delicado acabamento. Todos os seus novos colegas e comandados o receberam calorosamente, e ele tratou logo de impor seus métodos ao grupo.

No início as coisas corriam bem, Pancrácio entusiasmado com o novo cargo e contando com a colaboração da maioria dos funcionários. O danado do homem era tão religioso na sua dedicação às máquinas, na sua amizade com elas, que acabou, sem querer, contaminando vários funcionários, que, empolgados, passaram a cultivar em si mesmos aquele carinho pelas máquinas. No fundo, no fundo, dentro de cada um havia um pancraciozinho pronto a desabrochar. Alguns, mais fiéis àquela espécie de pancraciomania, adquiriram o hábito de chegar pela manhã e beijar a sua máquina, depois ficar acariciando aquela coisa de aço, fria e cinzenta, como se fosse a sua própria namorada. Um dos malucos chegou até a fazer poesia para a máquina. Não ri, não, Ferreira, que isso é sério! Ali, minha gente, tinha de tudo.

Mas olha: um cara que se dava tão bem com as máquinas, com o tempo foi se revelando inábil quando se tratava de solucionar conflitos entre os seus funcionários. Com o aumento do número de trabalhadores sob seu comando, aumentaram também os desentendimentos; surgiram os chamados funcionários-problema. Vocês sabem: quando um grupo aumenta, torna-se mais heterogêneo e aí então as diferenças começam a se chocar. Surgem logo os pequenos enfrentamentos, a princípio somente no terreno das ideias, ou seja, divergência de opiniões, mas que, no caso de falta de maturidade das pessoas envolvidas, podem facilmente chegar ao bate-boca, o que não se pode admitir num ambiente de trabalho.

Pancrácio viu a equipe aumentar, a produção explodiu, os pancraciomaníacos se lançaram ao trabalho com raro entusiasmo; tudo parecia funcionar maravilhosamente bem. Está claro, no entanto, que os novos funcionários que foram chegando para a equipe não podiam ter com a máquina o mesmo relacionamento que tinham os mais antigos, os pancraciomaníacos. Esse já foi um primeiro e forte motivo para que surgissem discussões. O comportamento dos novatos era muito diferente; eles achavam estranha a postura dos outros diante do serviço, do chefe, da empresa... E a recíproca era verdadeira. Pronto: com essa o Pancrácio não contava. Sentiu-se no mato sem cachorro. O jeito foi procurar orientação junto ao gerente de área. Este, preocupado, reuniu-se com os outros gerentes, acompanhado de Pancrácio, que foi aconselhado a identificar os funcionários-problema e tratar caso a caso.

Foi o que fez. Esforçou-se para adquirir essa nova habilidade: conhecer um pouco mais da natureza humana. Identificou os funcionários-problema e começou imediatamente a trabalhar com eles, esperando adequá-los ao esquema de trabalho que ele considerava ideal. Conseguiu com isso alguma melhora, mas de tempos em tempos os problemas voltavam.

Ele desabafava com o Diocleciano, que era um dos funcionários mais antigos daquele setor e que tinha muita paciência para ouvi-lo. Como eu trabalhava bem ali perto (meu setor era contíguo ao dele), eu acabava ouvindo alguns desses desabafos. Compreendia-se claramente que o Pancrácio vivia aflito com a situação. O Diocleciano uma vez lhe disse: ''Olha, Pancrácio, o problema é geral aqui na empresa. Não adianta você querer que todos se submetam ao seu estilo...''. Dias depois o Pancrácio chegava à conclusão de que precisava de uma ajuda mais específica. Procurou um psicólogo e começou a se tratar, pois se convencera de que o problema era com ele.

E eu vou dizer uma coisa pra vocês: essa história de psicólogo às vezes não dá muito certo. Não sei muito bem como a coisa aconteceu, mas o fato é que o homem passou a conviver muito bem com os chamados funcionários-problema e a considerar ruins os bons funcionários! É mole? Não sei o que deu na cabeça dele. Mas o certo é que ele estava muito desorientado.

Certo dia resolveu procurar de novo o gerente de área. Marcou com ele de novo uma entrevista, e ficou naquela expectativa, ansioso, como me disse depois o Diocleciano, aguardando o momento de iniciar a conversa que ele suspeitava decisiva para a sua permanência no cargo. Tudo isso o Diocleciano me contou mais tarde. Pancrácio praticamente não dormiu na noite que antecedeu a conversa com o gerente. Estava disposto a ser o mais honesto possível e até suplicar por ajuda, já que não admitia perder um cargo como aquele.

Quando, na hora marcada, Pancrácio chegou à sala do gerente, teve uma surpresa. Formando um semicírculo no centro do recinto, estavam várias cadeiras ocupadas - imaginem vocês - por todos os gerentes e mais o supervisor geral. Bem em frente ao semicírculo estava uma cadeira vazia, que, a um sinal do seu gerente, Pancrácio ocupou desolado.

''Quê que tá me acontecendo, meu Deus!'' foi o que ele deve ter pensado naquele momento, porque esperava uma entrevista com o seu gerente apenas, e, no entanto, estava ali, cercado por todos aqueles homens de ''gravata e cara feia'', como eu o ouvi dizer mais tarde para o Diocleciano.

O supervisor geral, contudo, pediu que ele ficasse à vontade e expusesse tudo o que o afligia. Pancrácio obedeceu e fez como havia planejado: foi sincero e clamou por ajuda, não se esquecendo de enfatizar a importância, para ele, daquele tipo de trabalho e do quanto ele era competente, do seu amor às máquinas, etc.

Em seguida, Pancrácio foi alvejado por um tiroteio de perguntas estranhas, que ele se esforçou para responder a contento, mas sem êxito, pelo visto. Sem êxito porque... Ô garçom! Traz mais uma rodada de chope e a conta!... Sem êxito porque, ao final daquela sabatina, o supervisor geral disse apenas: ''Muito bem, Pancrácio, depois do almoço você passa no meu gabinete''. E encerrou a reunião.

O Pancrácio deixou aquela reunião cabisbaixo e foi desabafar com o Diocleciano. Pressentia uma decisão desagradável por parte do supervisor. ''Eu tô é ferrado, Diocleciano!''

De fato, não deu outra. Pancrácio compareceu ao gabinete do supervisor, e esse, com meia dúzia de palavras, arrasou o nosso amigo. Pancrácio simplesmente perdeu o cargo de chefia e foi rebaixado a mero operador de máquinas, seu cargo anterior.

Coitado do Pancrácio: perdeu a promoção e virou funcionário-problema.

Não sei, gente. Às vezes eu fico pensando nas coisas que eu já vi e vivi nesta vida, e fico até meio besta. Um homem como aquele acabar do jeito que acabou. Depois de ter perdido a promoção, foi ficando cada vez mais acabrunhado, calado, melancólico. A gente via que aquilo era depressão, e depressão da braba. Daí a pouco começou a faltar ao serviço, justo ele que sempre tinha sido exemplar. Não levou muito tempo e teve de ser demitido. Com pouco, começou a encher a cara, caía e dormia pelas calçadas, feito mendigo, de manhã chegava em casa sujo, esfarrapado, e ainda espancava a mulher...

Bem, um dia, até da bebida ele se cansou. Ficou uma semana sem beber, segundo se comentava. Mas sempre muito calado e quieto. Sentava numa banqueta lá no fundo do quintal e a mulher sempre o surpreendia na mesma posição a qualquer hora do dia. Não comia nem tomava banho.

Resolvi, certa vez, ir visitá-lo, acompanhado do Diocleciano. Quando a gente se aproximava da casa, ouvimos um grito agudo e desesperado. A mulher do Pancrácio apareceu de repente no portão e desceu a rua correndo e clamando por socorro. Aquele desespero denunciava claramente uma tragédia. Corremos lá dentro, eu e o Diocleciano. Atravessamos a casa e fomos ao quintal. As pernas do Pancrácio estavam balançando suavemente a poucos metros do chão. Olhamos pra cima e vimos aquela cara roxa, aqueles olhos esbugalhados, a cabeça tombada e a corda até meio afundada no pescoço...

Mas chega de falar de coisas tristes. Ergamos um brinde ao Pancrácio Mota e mudemos logo de assunto.