Terapia

Acomodou-se na poltrona, respirou fundo e fechou os olhos.

“Sonhei que o encontrava, passeando pelo novo centro comercial; estava acompanhado de um garoto e não demonstrou surpresa quando me viu – apenas me apresentou ao menino, e seus olhos azuis me lembraram alguém... Acordei chorando. Não consegui lembrar o nome da criança...”

Cruzou tornozelos, enfiou a mão esquerda por trás do pescoço e nela descansou a cabeça; com o indicador direito, traçou o contorno da estampa caxemira no brocado cor de ouro velho do estofado.

“Por que isso, agora? Ele tem a vida que escolheu. Casou. Não teve filhos. Descasou. E não sabe nada além do que precisa saber. Eu nunca contarei... É meu segredo. Meu. Só meu!”

O silêncio invadiu a sala. Levantou a cabeça e o torso, inspirou com força e soltou o ar devagar; repetiu a técnica mais uma vez, e outra, e mais uma... Recostou-se novamente.

“Ele estava igualzinho a quando nos despedimos: mesma roupa, o cabelo comprido demais, o cheiro... E o jeito simpático e meio distante, como se nada tivesse muita importância. Foi por isso que o deixei: pela consciência de ser desimportante. Acho que pessoas solitárias tornam-se – como se diz? – blasês... Os pais morreram cedo, não tem irmãos, uns raros amigos (‘colegas de trabalho’, ele sempre me corrigia); por parente, só um tio-avô senil, que visitava toda semana, até que o pobre morreu. ‘Gostaria de ir-me assim’, disse. ‘Dormindo?’, perguntei, constrangida. ‘Sozinho’, respondeu calmamente. Ele costumava dizer, entre sério e brincando: ‘Minha vida é um areal’. Solidão vicia...”

Remexeu-se na poltrona, encolheu as pernas até encostar o queixo nos joelhos, depois alongou os membros, e alternadamente, fez os pés circularem em torno do próprio eixo, forçando-os com delicadeza, como se tateassem uma pirâmide cônica a partir do ápice. Perdeu-se no exercício por poucos minutos e reencontrou o fio do pensamento ao desviar os olhos para os grumos de luminosidade que se embrenhavam pelas brechas da cortina.

“Eu nunca havia sentido ódio por ninguém. Esperei e esperei; dois meses e nenhum telefonema, recado, contato... Naquela manhã eu havia me arrastado da cama ao banheiro e vomitado sei lá o que, porque o enjôo era sempre mais forte que a fome; no fim da aula uma colega me informou que ele estava de namoro com uma novata e parecia bem apaixonado; foi o dia em que me forcei a continuar a viver e seguir amando o que me restara. O semestre estava no fim, tranquei o curso e voltei para casa sem trabalho e sem dinheiro, mas plena de esperança.”

Sorriu suavemente, virou-se de lado, juntou as mãos e simulou um travesseiro para a face direita, e ficou observando a dança das luzes.

“Mamãe foi uma bênção: não reclamou, não julgou, apenas pedia ‘Conte a ele. Conte!"; eu me recusei, sempre. Ele não tinha mais direito a nada... nada... nunca mais!”

As lágrimas correram quase livres.

“Minha esperança morreu. Eu morri, também, mas isso é assunto meu. Ele não merece saber... Além do mais, de que adiantaria?”

Encolheu-se na poltrona, enrolando-se sobre si mesma como num útero dourado e aquietou-se.

“A criança do sonho poderia ser a minha... Seria bom? Mas, nesse caso, o que ele estava fazendo no meu sonho? Logo ele, que escolheu não fazer parte dos meus sonhos!”

Colocou os pés no chão e pressionou o rosto com força; inspirou fundo e cruzou os braços.

“Porque sonhei com ele? Isso é ilógico! Não o quero nos meus sonhos, agora! Não gosto do que é ilógico, não entendo coisas assim. Tenho dificuldade em aceitar o que não entendo, por isso venho para cá.”

Levantou-se e andou pela sala, os passos curtos, bruscos.

“Minha esperança morreu. Também não entendo isso, nem esse sol teimando, teimando!... Aqui deveria ser escuro, sempre!”

Parou à frente do espelho e pelo reflexo viu a sala de pé direito alto, com móveis poucos e em madeira de lei avermelhada, e o relógio antigo, de coluna, onde a mãe a ensinara a ler as horas. Com um golpe espatifou o cristal e ficou olhando os pedaços a quase esquecerem a sala, bebendo uns raios de sol e umas gotas de sangue, sugando a dor.

“Minha vida também é um deserto.”

A poltrona dourada, larga e macia continuou no lugar de sempre, rescendendo a sol oblíquo.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 30/07/2012
Reeditado em 13/03/2014
Código do texto: T3805431
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