O Admirável novo Gênesis (Primeira Parte)

O noticiário da manhã, ouvido por Joshua, avisava sobre uma tempestade que vinha à Georgia. Ele via a moça do tempo através da fumaça, que subia de sua caneca cheia de café. Joshua e seu irmão Ethan moravam juntos, ambos eram donos de uma pequena livraria em Dublin, e todas as manhas, antes de sair para o trabalho, viam o jornal juntos. Já não chovia em Dublin há alguns meses, então essa suposta tempestade que vinha, era na verdade um alívio para eles. Ambos gostavam da chuva; fazia-os lembrar da época de inocência de sua infância.

“Vamos Joshua, vamos nos atrasar” era uma frase rotineira para ambos. Ethan não parecia se incomodar de falar todos os dias, provavelmente por fazer parte da rotina que ele tanto gostara. Aquela manhã em particular fazia muito sol, o que os fazia questionar se era mais uma daquelas previsões erradas da moça do tempo. Era uma moça muito bonita, que agradava os olhos até dos dois irmãos. O que ela tinha de beleza, faltava de cabeça; não era muito inteligente, mas conseguia ler bem e chamar a atenção das pessoas. Porém o que chamava realmente atenção dos irmãos, além do tempo juntos, era a curiosidade peculiar sobre o tempo. Ambos realmente apreciavam saber do tempo. Pode-se dizer que era isso que os prendiam à parte do tempo no noticiário, pois ambos não tinham desejo por mulheres.

No caminho da livraria, sempre passavam por uma praça com muitas árvores. Gostavam da vista, e da estátua gasta de um anjo que cobria sua face com as mãos. Era irônico a estatua não querer ver um dos pontos mais bonitos da cidade. Dizem que os anjos são assexuados, mas esse tinha uma aparência bem feminina. Todos os dias cumprimentavam o senhor Walker, um velhinho pacato que chegava junto deles, mas parava na praça para se sentar em um dos bancos, sempre com sua boina na cabeça e algo para comer nas mãos. A embalagem da comida era do restaurante local, de donos cristãos. Restaurante herdado por Emma. Emma e Jose Thompson eram jovens e casaram cedo, provavelmente haviam se conhecido pela igreja. Faziam uma ótima comida. Os irmãos Turner eram convidados pelo Walker todos os dias para almoçar ou tomar um café lá, mas sabiam que não seriam muito bem recebidos. “Quem sabe amanhã” era outra frase que fazia parte da rotina dos irmãos, mas o velho Walker nunca desistia de perguntar.

Walker era um veterano da Segunda Guerra Mundial, e morava sozinho após a morte de sua mulher. Seus filhos tentaram o colocar em uma casa de repouso, mas ele não queria se desfazer da casa que comprara junto de sua falecida esposa. Queria também continuar visitando a bela praça, e cumprimentando os Turner, que passaram a ser seus bons amigos. Às vezes nos finais de semana, os três passavam longas horas da tarde conversando sobre as histórias de vida que o Walker sempre tinha. Não importava quantas vezes eles já haviam conversado, sempre tinha uma história nova para contar. Algumas histórias da guerra, e outras sobre seus filhos e mulher ou amigos antigos.

Sempre que passavam em frente ao restaurante, Emma, que costumava varrer a calçada naquele horário, os encarava como aberrações e se retirava para dentro, como se fugisse de uma visão extremamente incomoda. Seu restaurante, para a infelicidade dos Thompson, ficava bem na frente da livraria. Constantemente advertiam os clientes, e moradores locais sobre as abominações que os irmãos deviam cometer. Comentavam sobre incesto, e pecados diversos. A maioria das pessoas não ligava para os Turner, ou para os comentários dos Thompson. Continuavam frequentando o restaurante pela boa comida, e a livraria para comprar seus livros. Apesar das acusações de serem anticristos, pelo casal, os irmãos cresceram em um lar cristão, e acumulavam umas crenças da mesma.

Enquanto Joshua abria a loja, Ethan acendia seu cigarro e se apoiava na parede. Olhava para os carros que passavam devagar. Podia-se ver, agora, uma comoção vinda do restaurante. Ouviam-se alguns movimentos que derrubavam copos, e uma voz masculina que falava alto. Os irmãos se entreolham enquanto Ethan termina de dar a primeira tragada.

- Deveria ir lá ver o que está acontecendo?

-Não sei se sua presença lá iria causar mais confusão ou de fato irá ajudar em algo. – Joshua diz rindo – Vá lá, eu vou terminar de abrir a livraria e preparar as coisas.

Ethan não parecia muito feliz e confiante do que iria fazer, mas começa a atravessar a rua. A porta do restaurante é aberta, enquanto Ethan atravessava. Jose sai, ajoelha no chão desesperado e começa a gritar algo sobre um novo dilúvio, e que Deus havia falado diretamente com ele. Os olhos de Jose brilhavam de emoção, enquanto gritava a todos os ventos que as pessoas deveriam se preparar. Preparar-se para o tormento e o caos que vinha sem descanso, representando a ira de Deus sobre as pessoas. Ao ver que Ethan se aproximava, ele começa a se levantar e apontar.

- Estão vendo? Deus me disse que esses irmãos Turner são justamente o tipo de gente que o deixou tão furioso! – As mãos de Jose tremiam enquanto falava. Mostrava seu ódio e indignação como se fossem de seu próprio Deus vingativo – Tudo por causa dos tipos como você.

Ethan, horrorizado, começa a retornar à livraria. O jeito que Thompson o olhava demonstrava puro desprezo e raiva. Era como se olhasse para um demônio ou criatura hedionda, mas Ethan, acostumado, somente o ignora. Emma, menos alterada, segura seu marido e o leva para dentro do restaurante. A confusão já acumulava alguns espectadores curiosos, como pedestres e donos de lojas vizinhas. Alguns o apoiavam, e outros permaneciam calados e assustados. “Volte aqui, aberração!”, gritou um idoso no meio do grupo. Emma tentava tranquilizar as pessoas, pedia desculpas pela confusão, e os convidava para entrar e tomar uma xícara de café.

Ethan entra na livraria, e fecha a porta soltando um suspiro. Joshua via a confusão pela pequena janela na lateral, perto da porta, e perguntava a seu irmão o porquê de tanto ódio de algumas pessoas.

- Não sei ao certo, mas acho que usam a religião deles como um motivo de justificar o ódio por algo que não compreendem. Nem culpo os outros, a maioria nem se importa com nossa presença aqui, e são bem amigáveis. Talvez os Thompson tenham algum problema oculto para isso.

- Acho que é apenas ignorância mesmo. – Joshua tenta um tom de descontração em sua voz – Eles sempre foram meio loucos.

Seu irmão concorda dando uma risada de canto da boca. Os dois se olham e decidem encerrar o assunto ao virar a plaquinha de “fechado”, para “aberto”. Quase instantaneamente, o sininho toca junto da porta que se abria. Elizabeth Light, uma moça muito bonita e nova na cidade, entra com um rosto que tentava disfarçar a preocupação. Ela segurava um pequeno arranjo de flores, que acabara de comprar na floricultura ao lado. Era uma jovem de seus vinte e poucos anos, e acabara de se mudar para a vizinhança. Morava sozinha, pois fugira de seus pais abusivos que aproveitavam de sua beleza para eventos contra sua vontade. Ela nunca explicara ao certo o que se tratava esses eventos. Nem aos irmãos. Beth era uma mulher que parecia usar sua timidez para esconder algo em sua mente. Não se abria muito para ninguém ali, e os seus olhos pareciam não ter tanta vida como outrora. Eles se cumprimentam rapidamente, enquanto ela se dirigia para um banco no canto da livraria. Ela costumava ir ler ali. Metódica, educada, isolada.

Sem nem notar de onde começara o assunto, os irmãos discutiam sobre suas finanças. Havia momentos em que brigavam muito por isso, e outros de absoluta paz e pura paixão por seus livros. Nem sequer poderiam considerar novidade. As brigas eram comuns. Porém elas diminuíram com a chegada de Beth, que era mais que uma simples amiga. De algum modo que eles nem se atreviam a tentar entender, ela apareceu como um anjo que tapava seus olhos ao mundo, para escutar a beleza que se escondia por detrás de tudo. Ela escutava a melodia do mundo. Escutava a melodia do mundo dos livros que se emergia.

Nos momentos de dificuldade, os irmãos pegavam algumas coisas de amigos. Pegavam o que se podia. Fizeram dessa interação algo amais. Um laço de reciprocidade entre amigos. Vizinhos. Essa parte da troca de favores, pelo lado dos irmãos, se tratava de alguns livros enviados com descontos.

- Não combinamos nada.

- Qual a data da encomenda você colocou? – Ethan retruca a afirmação anterior. – Combinamos a data. Foi dia primeiro. Era para ter chegado ao destino hoje. Você ao menos se lembrou de colocar os livros certos?

- “O céu”, “A terra em que pisamos” e “Trevas”.

- Não, Joshua. O livro “Trevas” era na segunda encomenda. – O estresse o faz lembrar-se de outro assunto já conversado diversas vezes - Já desistiu do que havia prometido?

- Eu não mudei de ideia. Mas isso não tem nada a ver!

- Seria realmente mais produtivo para a gente. Para a loja. – Ethan começa a escrever em folhas avulsas de papel, endereços e nomes de livros, enquanto ignora a resposta de seu irmão. – O tempo de diversão não acabou, mas precisamos terminar de construir as coisas da casa. O abrigo, o sótão e terminar a cozinha. É nossa prioridade, você sabe disso.

Light já sentia a tensão que vinha entre a discussão que havia começado. Logo se levanta de sua cadeira, caminha em direção aos dois irmãos, pega o livro “Trevas” do balcão, e prontamente se oferece para leva-lo à sua vizinha. Ela explica que havia conversado com sua vizinha sobre o livro, e essa nova encomenda era para ela.

Já no final da tarde, Light sai para casa com o livro da encomenda enquanto Ethan fechava a loja, e Joshua se despedia dela. O dia havia passado muito rápido, e não ouviram mais noticias naquele tempo sobre o suposto surto dos Thompson. A curiosidade, no entanto, povoava a cabeça dos dois, mas somente uma frase foi dita durante todo o percurso para casa: “amanhã, bem cedo, irei acordar e terminar ao menos a construção do abrigo”. Chegam a casa sem demora, logo se banham e se aconchegam na sala de estar. Ambos jantavam no sofá, enquanto assistiam um dos filmes antigos e famosos de Clint Eastwood. Passava a cena onde Clint mordia um pedaço da sobra de papel do cigarro, em A Fistful of dollars, um dos filmes favoritos de Walker.

- No final de semana passado, Walker me contou sobre algo interessante que vira nos seus tempos de guerra. – Joshua falava no intervalo de tempo quando engolia a comida, e pegava uma nova garfada do frango – Sobre um jovem que desapareceu em um dos saltos.

- Um jovem desapareceu? Provavelmente morreu na queda causada por mau treinamento ou funcionamento do paraquedas.

- Ele foi o primeiro a saltar, então é possível. Mas aí que está o intrigante. Nunca acharam o corpo dele. E pior, um dos seus amigos jura que o viu sumir no ar.

- Sumir? Tipo evaporar? – A risada disfarçada de tosse mostrava o nível de veracidade que Ethan atribuía à história. – Acho que Walker está começando a ficar maluco.

- É, ou talvez o garoto que comentou só estivesse mentalmente afetado pela tensão do ambiente. Mas o fato é que essa história ficou relativamente famosa. Pela sua maioria tratada como “o que a tensão da guerra pode causar”, como diziam os superiores aos jovens que entravam.

- Walker acreditava realmente na história, disse ele? Vai ver ele era o garoto que viu seu amigo virar fumaça.

- Talvez. O que Walker disse foi algo como: O paraquedas parecia estar sendo aspirado para baixo, e a velocidade aumentava até o individuo sumir completamente.

- Isso parece papo de doido.

Passado três horas desde a conversa, Joshua já havia ido para a cama, enquanto Ethan mantinha uma dificuldade de permanecer acordado. Seus olhos pesados abriam e fechavam. Abriam e fechavam. O cigarro entre seus dedos encostava de leve contra o sofá, mas o seu estado impedia-lhe de perceber. Quando finalmente se entrega ao abismo dos sonhos.

Ethan estava em uma trilha de areia que dava em uma praia. Havia alguns tocos de madeira fincados onde existia mato que contornava a areia. O vento era forte e bagunçava seus cabelos. Era de dia, mas as nuvens cinzentas bloqueavam quase toda a passagem de luz. O mar agitado causava ondas que colidiam contra as pedras altas, que percorriam a costa. No horizonte, podiam-se ver alguns objetos decolando para os céus. Em uma das pedras havia um paraquedas preso e balançando ao vento. Da beira do mar, levantava uma silhueta. Turner corre em direção à pessoa, mas chegando próximo dele, nota algo que o surpreende. O homem vestia um uniforme militar, e parecia bastante confiante do que fazia. Ele larga seu capacete na areia, e caminha em direção a Ethan. O capacete ia lentamente sendo soterrado pela areia arrastada pelo vento. A palavra “futuro”, registrada na peça com tinta vermelha, ia ficando menos evidentes. O jovem militar, de aparentes vinte anos, se apresenta a ele usando o nome “Jack”. Apesar do aparente nome falso, a integridade do cenário já lhe parecia demasiadamente pitoresca. O simples nome pérfido não surtia muito efeito ou preocupação.

- Quem é você, Jack?

- Sou Jack hoje. Fui Jack ontem. Serei Jack amanhã. O tempo é algo fascinante, até mesmo em uma compreensão linear – A falta de resposta de Ethan faz com que ele continue – Posso não ser Jack hoje, e ser Jack amanhã. É relativo. Mas uma coisa você pode ter certeza, Ethan. Eu já fui Jack ao menos uma vez.

Turner parecia muito confuso. Demonstrava isso na expressão de seu rosto. Tentando não dar muita continuidade ao enigma de Jack, ele tenta uma aproximação mais direta, com a pergunta que já parecia ser esperada.

- E o Jack que uma vez existiu? Qual era a sua intenção?

- Esse Jack é um mensageiro. Apenas um mensageiro.

- E qual a sua mensagem?

Jack entrega uma folha de papel dobrado em suas mãos, e consegue dizer uma frase que ecoa na mente de Ethan antes de acordar com a fumaça do cigarro, que queimara uma pequena parte do sofá. “O próximo encontro lhe trará a segunda parte da mensagem”.

Naquele dia, a rotina dos irmãos se repetia, e com exceção das explicações sobre a parte queimada do sofá, mais nenhuma palavra sobre o assunto foi dita. Nada sobre Jack, nada sobre uma suposta carta em seus sonhos, e principalmente, nada sobre a frase que ditava um próximo encontro que ecoara em sua mente todo o dia. Não parecia ser um simples sonho, tudo foi sentido e detalhado demais. Ele realmente vivenciou aquele momento. Ao menos, era o que Ethan sentia. O noticiário da noite, uma das poucas partes do dia que realmente chamara sua atenção naquele dia, falava sobre um assassino a solta em Nova Iorque. Um assassino que matava sua vítima em uma quitinete aleatória pela cidade, mas que era completamente esterilizado e arrumado antes do ato. Com exceção do sangue da vítima, e de seu corpo sem vida, tudo era impecável. Lençóis novos que não faziam parte do padrão dos outros quartos. Até mesmo um conjunto de pequenos tapetes e toalhas. O dialogo dos irmãos sobre a notícia não se aprofundara muito. Ethan estava com a cabeça em outro lugar.

Mais tarde naquela noite, Ethan se encontra deitado em sua cama esperando pacientemente o sono chegar. O cenário preto e branco produzido pelo escuro de seu quarto, e a luz branca que passava pela sua janela, causa uma atmosfera melancólica e focada. Após algumas horas de uma profunda concentração e fixação no ventilador que rodava, ele cai no sono lentamente.

Jack e Turner caminham por um metrô ermo de paredes com tom amarelo giz de cera. O cheiro era de uma madrugada chuvosa. O céu escuro, a noite fria, e o metrô deserto climatizavam o lugar. Eles passam pela catraca e sobem a escada rolante que ainda estava funcionando. Um belo homem asiático, jovem e com roupas negras os esperavam bem na saída da escada.

- Esse é o Senhor Shang.

- Ele é a segunda parte da minha mensagem?

- Me responda uma coisa, Ethan. A humanidade é digna de continuar sua existência nesse planeta?

- Não sei, penso que sim – A pergunta realmente havia o surpreendido. Ele não sabia qual era a relação do Senhor Shang e sua indagação. – Acho que sim. De todo modo, gostaria de continuar vivendo.

Shang cumprimenta Ethan educadamente, com um aperto de mão despreocupado.

- Hoje iremos fazer um tour de uma noite na vida do nosso convidado. Senhor shang, por favor, se nos permitir.

O gesto positivo de Shang imediatamente faz com que a parede logo atrás se abra como cortinas. A grande tela de cinema que surgira, reproduzia uma filmagem em terceira pessoa de uma mulher asiática, na cidade de Nova Iorque. Ela caminhava pela cidade, comprava materiais de limpeza, e mais a noite jantava em um restaurante lotado, especializado em comida chinesa.

Ela finalmente chega à estação de metrô em que estavam. Dessa vez bem recheada de pessoas. Andava por elas, e como uma cidadã comum, passava despercebida. A mulher anda pelas ruas escuras até chegar a um conjunto de quitinetes. A chave da quitinete, de numero cinco, estava de baixo de uma pequena planta no chão.

- Sou uma pessoa preguiçosa – Diz o Senhor Shang, se inclinando ao ouvido de Ethan. – Adoro meu trabalho, mas sou preguiçoso. Gosto que ajeitem as coisas para mim.

Shang fala com Turner como se fosse o diretor do filme que faz alguns comentários aos espectadores. A mulher limpa tudo, arruma as coisas fora do lugar, e vai embora logo em seguida, deixando a chave no mesmo lugar.

- Por isso, às vezes, homens como eu contratam um sócio.

Uma hora depois, o Senhor Shang chega à quitinete com uma bela moça bêbada. A imagem do filme foca na porta que se fechava, e permanece fixa ali por longos minutos. O homem sai sozinho do quarto enquanto acendia um cigarro. Com passos tranquilos, ele desce as escadas e para no ponto de ônibus. A velocidade do filme é acelerada e a imagem focada em seu cigarro aceso, que ia diminuindo à medida que se queimava. O ônibus finalmente chega a seu ponto.