UÉ, NÃO SE PODE DAR O BRAÇO A DOIS (TRÊS) MENDIGOS?

RUBEMAR ALVES

Rio de Janeiro. Tudo acontece com minha amiga geminiana.

Nascida no dia de Joana D’Arc, vocês queriam o quê?

ELA trabalhava num escritório no outro lado da cidade, bairro muito falado e nobre, local que todo turista logo quer conhecer, longérrimo da residência, Olaria, subúrbio pobre, um tanto ‘feio’, digamos assim...

Estória velha. Uns quarenta anos passados, talvez.

Acordou atrasada, café apressado, marmita, e lá se foi. Boa fila para o ônibus, metrô ainda como utopia, mas sentou-se e até dormitou ligeiramente. Engarrafamentos “mil” nas ruas internas e depois na grande avenida Brasil que vai do subúrbio mais remoto, antiga zona rural, bem mais para cima, até quase o centro da cidade. Acordava - “Ainda estamos aqui?” -, dormitava outra vez.

Atenta quando se iniciou Copacabana, local do seu emprego.

Mais adiante, pela porta da frente, entraram três cegos de meia idade, mendigos característicos, roupa velhíssima, dois rasgados, o terceiro não (ELA descobriu depois que era o “chefe” – com xis? tadinho... ah, era o caixa!), descabelados, barba avançada, bem mal cheirosos. Um se agarrava no outro, alguém avisou que já havia lugares vazios, o “chefe” agradeceu, mas não sentaram.

Instinto ou sei lá o quê, sabiam estarem perdidos – o horário era o mesmo, porém estranharam as vozes, embora gentis, deste motorista e deste trocador e a ausência do “bom dia” costumeiro. Então, tomaram o ônibus errado!

O “chefe” era apenas piticego (acho que João Guimarães Rosa, escritor mineiro danado para criar palavras, pegou o ‘petit” do idioma francês e.........), enxergava menos que pouquíssimo, ‘rei’ perante os outros, ditado antigo, mas também não se garantia sozinho. Segurando-se na emoção, balbuciou que não tivessem medo porque...

Nem precisou completar a frase. ELA se ofereceu para ajudar. O ponto de pedir esmolas era nos degraus ao lado de um tal Mercadinho Azul, conhecidíssimo, em rua paralela, e o ônibus já chegava na esquina onde ELA saltava todas as manhãs.

“Tem nada, não (pensou). Quem atrasa dez minutos, atrasa trinta... Diferença ‘nenhuma’. Ninguém vai acreditar, mas um dia escrevo ou arranjo quem escreva essa estória.”

Sim, estória sendo escrito e acreditada agora - ih, já no século XXI... o tempo corre! Registros históricos são sempre importantes, leitor concorda?

Um pouco mais adiante, ELA saltou e deu a mão aos cegos, um a um. Desceram para a calçada. E agora? (Por acaso, um deles se chamava José – Drummond morava naquele bairro.) Deu os braços a dois, o “chefe” dispensou, mas ELA fez questão e as quatro pessoas se engataram. Praticamente desfilaram, pois alguns espectadores sorriam, outros nada entendiam e sacudiam a cabeça com aquele quadro no mínimo expressionista. Três esfarrapados e ELA arrumadinha e até maquilada; neste dia até passara baton rosado, muito perfumada a colônia de jasmim. E seguiram rindo e conversaram, fato inédito para o quarteto. Até corrida de cavalos entrou no bate-papo: ELA deste criança ia com o pai ao Jockey Club Brasileiro na Gávea, tempos memoráveis do “Dá-lhe, Rigoni!” - e um deles montara profissionalmente em outra cidade quando bem jovem. Dois eram irmãos e o outro um amigo.

Acomodou-os nos tais degraus, dois pedintes do lado direito, o “chefe” à esquerda, sem atrapalhar o movimento de quem entrasse na galeria comercial ou saísse.

Nada pediram, mas ELA não achou justo nada doar. Separou o dinheiro do ônibus (impossível voltar a pé para casa) e quis dividir dinheirinhos entre eles. Não, não era assim - o “chefe-caixa” recolhia tudo, numa lata guardada em imundo saco de aniagem.

Despediu-se, foi trabalhar.

Vocês viram alguma ação ‘extraordinaríssima’ aqui?

Pois é...

Muito mais trabalho teve em contar a estória para os chefes (só o apátrida judeu apoiou) e os colegas (muitos também viram a cena incomum) do que em usar as máquinas do escritório.

Gente boba o dia inteiro fazendo fantásticas perguntas...

F I M