Premonição

Acidente!

Não tenho descansado nas últimas 72 só por essa palavra: acidente.

Vinha sonhando direto com os mais diferentes tipos de acidentes: carro, moto, ônibus caindo ribanceira abaixo, dentro de rios, enfim... Meu subconsciente era bem criativo. Parecia querer me alertar. Como uma premonição, a qual ignorei e acabei me ferrando.

Victor e eu éramos muito bons amigos. Nunca me destratou por ser gay, pelo contrário, dizia que eu era seu trunfo para arrumar uma namorada. Eu não ligava. Achava aquilo muito legal. Mas, sim, eu nutria um sentimento forte por ele e ele, como eu não guardava nenhum segredo, sabia disso e sempre que podia me torturava desfilando seu corpo magnífico na minha frente, assistindo a filmes em casa sozinhos, comigo deitado em seu colo, com um cafuné delicioso, com vários selinhos que sempre ele me surpreendia e roubava de mim, inclusive em público e também na frente de sua namorada, que logo se tornou noiva e esposa, sendo eu o padrinho mais chorão no dia do casamento.

Nós dois, tínhamos uma loja de atacado e abrimos uma filial em outro estado. Essa filial completava um ano de funcionamento no mesmo dia em que sua mulher estava prestes a ter o primeiro filho. Ele estava louco para ir e voltar até o final do dia para acompanhá-la no dia seguinte na cirurgia.

Ainda me pergunto por que ignorei a premonição...

Após o expediente, o sol ainda brilhava no poente, devido ao horário de verão. Péssimo horário para se dirigir, ainda mais, com pressa. Ele estava no volante, a velocidade era pra mais de 110 Km/h, a viagem levava cerca de 50 minutos. Porém, um de nós não conseguiu chegar.

O laranja bem de frente aos nossos olhos, atrapalhava muito a enxergar o caminho. Ainda mais que vínhamos conversando e ele preocupado com sua esposa, ao mesmo tempo, querendo tirar umas lasquinhas do meu corpo, ríamos e a estrada ia embora do pneu do carro. Só deu tempo de ver aquela mesma curva dos inúmeros sonhos, ouvir uma buzina, um grunhido, um solavanco, um apagão e berros de dor.

Nosso carro estava com os pneus pra cima dentro de um pasto a metros da estrada. Victor estava desacordado, sendo segurado pelo cinto de segurança. Eu não conseguia definir onde estava, minha visão se apagava com frequência, sentia muita dor e me sentia muito fraco.

O vi sair do carro ao mesmo tempo em que ouvi alguém conversando comigo. Victor veio desesperado em minha direção. Naquela hora, eu já sentia todo meu corpo me abandonando e já sabia que tinha sido arremessado pra fora do carro. Minha cabeça já nem doía, parecia toda mole e eu também já nem conseguia me mexer, nem sentia meu corpo mais.

- Aguenta firme... – foi o que ele disse a mim. – Aguenta firme... A ambulância já ta vindo... Não está...? – perguntou pro outro rapaz, talvez alaguem que vira o acidente.

- Não... Aqui não pega celular... – vi seu rosto se transformar e olhar pra mim tentando transparecer que tudo ficaria bem.

- Escuta... Você não pode desistir agora... Você já passou por tanta coisa pior a isso... Lutou tanto contra o preconceito, com sua família, com seus amigos... Já foi roubado, quando pequeno, estuprado... – seus olhos despejavam inúmeras lágrimas.

- Como eu pareço...? - perguntei com dificuldade.

Ele não teve coragem de dizer. Fechou os olhos e engoliu vários soluços. Mas, em um de meus apagões, eu me vira estirado no chão, com uma perna dobrada em um ângulo que só seria possível se estivesse quebrada, todo esfolado, todo roxo, sangrando, um osso aparecendo no braço...

- Você vai ficar bem... – disse ele.

- Victor... Eu sinto muito... – disse deixando uma pequena lágrima sair – Se assim quer o destino, assim ele vai ter. Ele acertou... né... Afinal, você vai ser papai... – comecei a tossir sangue preto.

- Não... Por favor... Não... Eu te amo tanto... – dizia ele chorando e apertando o colarinho da camiseta toda rasgada – Não me deixe...

- Sinto muito, cara...

A dor me consumia por completo, embora eu sentisse apenas minha cabeça. Mas tudo, interno e externamente, me fazia ver estrelas de dor.

- Olha... – tentei continuar – Vá lá pra sua esposa...

- Não... Eu quero você...

- Não... Vá para sua esposa... Cuide do seu filho... Seja um bom pai... E principalmente... Peça desculpas a minha mãe... – minha garganta travou, simplesmente. Um nó daquele tamanho não queria me deixar terminar de falar. Meus olhos se encheram de lágrima – Ta... Fale pra ela que eu a amo muito... E que não queria que ela sofresse por minha causa...

- Shi... – ele colocou o dedo na minha boca.

- Você fala...? – perguntei soluçando.

- Sim, sim... – disse ele beijando minha testa – Mas fica quietinho... A ajuda ta vindo... Óh! Força nessa peruca, cara...

Consegui rir e tudo se apagou.

- Rafa... Rafa... Não, não, não... Rafa... Olha pra mim... – meus olhos olhavam para o nada, sem brilho, sem vida. A dor passara. E ele berrava – RAFA!!! NÃO!!! RAFA!!! – Tentava me trazer de volta, apertando meu peito, respirações boca-a-boca, mas nada – NÃÃOO!! – começou a me beijar. Testa, boca, rosto todo – Não... Volta pra mim... Não me deixa... VOCÊ É MEU PADRINHO...!!

A notícia caiu como uma bomba na cidade. Parentes, amigos e até quem me odiava ficaram com dó de minha morte. Também, talvez, obra do destino, o filho de Victor nascera morto. Victor ficou arrasado. Perder o melhor amigo e ainda seu filho. Por longos seis meses, o que se ouvia era gritos e coisas quebrando em sua casa.

Minha mãe chorava todo o dia. A cidade parecia que entristecera, não tinha mais vida.

Victor sempre chorava quando ia dormir, às vezes, no trabalho se fechava na sala e chorava, no parque, onde gostávamos de ir. Perdera o caminho literalmente. Nem mesmo eu sabia que ele me amava tanto assim. Porque nunca demonstrou de verdade?

Fazia-se essa pergunta toda hora. Até chegar um momento que cansou de se culpar e deu um fim nisso. Mesmo comigo dizendo para não o fazer, nos sonhos, ele o fez. Nada mais, nada menos que sete comprimidos daqueles de dormir que conseguira com um amigo farmacêutico. Nunca mais acordou.

Hoje não posso dizer que vivo com ele, porque ainda não o encontrei. Talvez tenha deixado algo pendente na Terra e busca alguém que o ajude a fazê-la, não sei ao certo. As coisas não são explicadas exatamente aqui. O que sei é que caminho sozinho nessa imensidão negra em caminho da luz que parece estar cada vez mais distante. Sinto ele comigo, às vezes. Sei que vou tê-lo aqui um dia. Tenho esperança...

Afonso Herrera
Enviado por Afonso Herrera em 27/07/2012
Código do texto: T3799182
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