= A BOINA =

“A BOINA”

Ronaldo Trigueiros Lima

= À grande escritora Nélida Piñon=

-Chegamos...!

Entre meu rapaz, e fique a vontade. Peço que me desculpe por este entrevero... (Dizia repetidamente o velho contador ao funcionário da corretora que o acompanhara de volta a sua residência. )

-Espero não esquecer nada desta vez! Você tem toda razão meu rapaz... Como é mesmo seu nome?

- Pode me chamar de Beto, Senhor!

- Pois é Beto, como ia dizendo, podemos chamar esse incidente de distração compulsiva!... Não tenho como negar o “trabalhão”que eu estou lhe dando!

- Esteja a vontade senhor! Lembre-se que estou a seu serviço!

- Ando mesmo muito esquecido, e quando me dou por

conta, já é tarde. Agora mesmo, especialmente, já estava perto da corretora quando dei por falta do tal documento! O que fazer? Só podia mesmo voltar! É meu rapaz, por mais que eu me concentre, as vezes dá-me um “branco” que me deixa completamente oco. Isso me aborrece e também me deixa constrangido. Mas, fica por conta da idade! O pior é ter que voltar a casa para começar tudo de novo... Não acha? Minha finada mulher sempre dizia... Se você quer se lembrar do que se esqueceu, é só dar um passo para trás... Literalmente! Mas hoje não conta! Afinal não é todo dia que se compra uma casa! Por isso, peço-lhe que tenha paciência comigo... Estou um pouco nervoso, confesso!

- Por certo senhor... Mas, não se preocupe, como já lhe disse, estou aqui para servi-lo!

Seu Aníbal, velho contador aposentado, encontrava-se completamente eufórico, esbanjando um sorriso explícito

de orelha a orelha. Com seus quase oitenta anos, estava

prestes a realizar um sonho por anos perseguido. Para isso, junto com sua finada mulher, poupara por toda uma vida, abdicando de luxos disfarçados, divertimentos inconsequentes, supérfluos do dia a dia, dos companheiros compulsivos e extravagantes, muitos deles vizinhos não abastados, e “beberrões” assimétricos.

-Estou prestes a realizar um sonho de vida! O sonho da casa própria! E tem mais Beto... Vou pagar tudo à vista! Sabe lá o que isso significa?... Talvez você ainda não tenha a exata dimensão deste significado... Também pudera, você é praticamente uma criança. Mas, para mim soa como SEGURANÇA, PROMESSA CUMPRIDA e FELICIDADE! Proponho um brinde ao momento! Vamos lá meu rapaz, fique a vontade... Brindemos, pois!

Vai até a cristaleira, apanha as taças e o licor de jenipapo que tinha sido preparado por sua mulher:

-Tudo bem seu Aníbal, mas não se esqueça que o senhor tem um compromisso inadiável com o gerente do banco, que naturalmente o aguarda para lhe entregar o cheque administrativo... Quanto a mim senhor, recebi ordem para fazer com que o senhor não se demore muito, ok?

- Não se preocupe meu rapaz... É só o tempo de terminar o “brinde”, e pegar minha boina, sacrossantamente escolhida para esta ocasião especial... Apenas isso, e pronto! (afirmou peremptoriamente o aposentado.)

O velho abre o armário, sempre muito arrumado, apanha

uma caixa que se encontrava na parte de cima, onde guardava uma quantidade razoável de boinas. Evidentemente, que cada uma com seu perfil apropriado, cujo uso, estaria de acordo com a ocasião específica.

- É importante que cada escolha esteja na conformidade do momento! Veja bem... Olhando assim de relance, parecem iguais... Mas, se você atentar para os detalhes, alguns até imperceptíveis aos olhos apressados e distraídos, se espantará ao descobrir tantas diferenças!

Assim, na ânsia de encontrar imediatamente, a boina da ocasião, que fazia parte do juramento que fizera a esposa, e, portanto, como se ela própria ali pudesse estar imprescindivelmente no ato da assinatura, seu Aníbal com certo orgulho, destacava a importância de cada uma que retirava da caixa, valorando como num prenúncio, de forma extraordinária, o assessório procurado a cobrir-lhe a cabeça no momento da “compra”. Como se a própria esposa tivesse ali presente.

-Essa aqui, por exemplo, é para os momentos mais tristes... Repare como é sóbria, contida! Já esta outra, ao contrário da primeira, expõe toda sua alegria “do estar de bem” com a vida! Esta já é bem passional... Comprei em Buenos Aires, no bairro da Boca após um “show” de tango...!

Enquanto seu Aníbal ressaltava a importância dos acessórios, de per si, Beto já se preocupava com o tempo gasto para encontrar a tal boina juramentada, e prometida à falecida, para esta ocasião especial. Foi assim, meio sem graça, a contragosto mesmo, que resolveu lembrá-lo do adiantado da hora:

- Lamento interrompê-lo, mas devo lembrá-lo que temos

hora marcada! Como o senhor bem sabe, o gerente do banco o aguarda atenciosamente. Na devemos deixá-lo na espera... Não acha?

- Para mim é de extrema importância que o gerente entenda todo o rito desse momento. Tenho que encontrar a boina.

Que eu me lembre, jamais a retirei dessa caixa! Só pode ser por nervosismo essa demora em encontrá-la!... Devo ter passado várias vezes por ela, sem me dar por conta. Por favor, não me apresse... Isso nada me ajuda... Fico nervoso sabe...!

- Não quero me tornar inconveniente seu Aníbal, mas ficou apalavrado que o cheque administrativo de quinhentos mil reais seria entregue na data de hoje, até o final da tarde. Se demorarmos mais do que devemos, encontraremos o banco fechado! Devo lembrá-lo também, que por uma deferência especial, o senhor passou a frente de um outro cliente na compra da casa... E por favor,só quero ajudá-lo. Depois é imprescindível esse documento que viemos buscar... Não vá esquecê-lo outra vez!

- Eu não posso “fechar” um negócio desse porte sem a presença da minha “esp...” Quero dizer, sem a minha boina! Decididamente, não posso!

-Quer que eu lhe ajude senhor?...

- Agradeço sinceramente meu rapaz, mas não cabe! Perdoe-me, mas é uma questão pessoal . Se quer me ajudar como diz, telefone para corretora, e peça para que o gerente do banco seja avisado sobre a possibilidade do meu pequeno abraso.

-Tudo bem... Mas fique calmo senhor!...

De repente, o velho contador começa a tremer, se auto-agredir, numa crise de choro incontrolável. O rapaz sem saber exatamente o que fazer, e surpreendido pelo ocorrido, pede ajuda aos vizinhos, que nessa altura já tinham se assustado com o choro convulsivo do velho cujo estado se agravava a cada instante. Não demorou muito, nem um pouco mesmo, para que seu Aníbal ficasse com o semblante “rocheado”, a ponto de a vizinhança chamar a ambulância.

Depois de algum tempo, ciente da gravidade, Beto meio sem jeito, sem saber o que fazer, telefona para corretora para colocá-la ciente do acontecido:

-Chefe, é o Beto ... Seu Aníbal acabou de ser levado por uma ambulância! Teve um mal súbito. Uma comoção. Falta de ar! Sei lá... Acho que “enfartou”! Saiu de maca, agarrado a uma boina mofada, e furada por traças! O que eu faço?

-ESQUECE!!! Procure o antigo cliente, aquele que você deu o catálogo ontem pela manhã! Quero estar ciente de tudo, Nem pense em me enrolar viu... Outra coisa, deixe o celular ligado. Estou de olho em você! Agente se vê.

Niterói, 18.07.012

Ronaldo Trigueiros Lima