Um sonho para a liberdade

Ele só sonhava e sonhava. Acordava por descuido, por obrigação. Era sempre acordado pelo despertador ou por alguém. Gostava muito de sonhar.

Mas as obrigações não podiam ser – e não eram – esquecidas. O soldado Thomas Franz Dürer estava pronto às seis da manhã. Com uniforme simples, mas limpo, bem passado, botas engraxadas, impecável. Barba feita e os seus cabelos lisos e loiros bem cortados. Antes de pegar a sua arma e seu quepe, olhava sempre para o símbolo que havia em seu braço esquerdo, destacando no uniforme o poder e a submissão. Para alguns outros, o símbolo destacava o medo e a impotência diante de um alguém com uma mente pensante. A schutzstaffel (SS) era uma organização ligada ao partido nazista e a Hitler, e em 1941, passou a comandar os campos de concentração.

Era alemão. Alemão puro. Dürer era puro, de sangue azul, perfeito para a seleção que a SS fazia dos seus soldados. Tinha de ser, obviamente. Afinal, o Fürer queria, além de proteção, o extermínio de outros grupos étnicos minoritários.

- Juden, um zu sterben! (Que morram os judeus!)

Ademais, o mais importante era a lealdade. Hitler queria lealdade. Do povo alemão, da SS, dos seus ministros, da Alemanha. Mas se Himmler, que era chefe principal da SS, fora acusado de traição, por que todos os soldados haveriam de ser leais? die Loyalität!

Nos intervalos que tinha para pensar em tudo o que acontecia ao seu redor, Franz Dürer tragava o cigarro com todo o prazer que podia, e via na fumaça palavras soltas querendo se encaixar à sua mente.

- Como pode haver tantas mortes? Não consigo mais ver pessoas morrerem somente por não seguirem o Fürer. Esses outros imbecis daqui não têm coração. Os filhos da puta não economizam bala! Droga, se eu fizer alguma coisa, vou ser caçado e morto. Sou alemão e puro, mas não vou assistir às mortes gratuitas até o fim do mundo, até o fim dessa merda toda.

Subitamente, o soldado aspirante a traidor jogou o cigarro ao chão e o apagou, dando uma última, rápida e brusca baforada com intenção de afastar a fumaça num segundo. Assustou-se por ver outros soldados que estavam mais a frente se organizando e temendo a iminente presença pesada do Fürer.

Em fila, os soldados levavam à frente os braços direito, enrijecidos, e soltavam um grito firme e conciso, feito um coro bem ensaiado, ao verem Hitler passar.

- Heil Hitler! (Salve Hitler!)

- Heil! Deutschland über alles! (Alemanha acima de tudo!)

Após aquela presença rápida e tenebrosa, Franz Dürer continuou com seu pensamento de “fuga”.

- É inviável fugir, é impossível. Eu tenho que arranjar um jeito de sair daqui.

Estava sendo sobrevivente de um desastre mental. E se pudesse, vomitaria a solução. Eis que num instante, a mesma chegou. É bem verdade que Thomas Franz Dürer era alemão, de sangue azul, soldado da SS. Era um homem bonito, militar típico, alto e sério. Alemão. Mas quem disse que o amor, a paixão pelas coisas não atinge os alemães? Atinge. Todo humano pode amar. A música era sua paixão, era o que fazia bem a ele. À época, o mundo vivia barulhos de explosivos e projéteis; gritos agudos de dor por balas e outras agressões. Era guerra! Já que não tinha tanto contato com as outras poucas pessoas que falava, adorava a música como um amor incondicional. Talvez fosse uma questão de alma. die Musik!

- Posso tocar na banda da SS! É um jeito de fingir minha lealdade e não ser morto. É um jeito de fugir pra um lugar longe daqui. Es könnte funktionieren. Hat nach rechts gehen! (Pode dar certo. Tem que dar certo!)

Era um plano inicial. Era um plano de liberdade. Um plano de vida. Plano? Só Adolf Hitler fazia planos, grandes planos. Liberdade? Na Alemanha nazista e em plena Segunda Guerra? Complicado demais para um soldado. Mas por que não tentar? Os sonhos são feitos para que o homem possa acreditar nos seus planos e caminhar, seguir sempre os seus objetivos.

(...)

- Bom, estudei um pouco mais de música no colégio, senhor! Creio que posso integrar a banda da SS.

- É mesmo, soldado? Se acha bom o bastante para integrar a banda que se apresenta para o grande Führer?

- Senhor, estou pronto para fazer qualquer coisa que faça bem ao Führer!

Dizia com um tom trêmulo de voz, um timbre insistindo em ser firme, mas desafinando no momento de citar o Führer. Falsa lealdade! Falso soldado! Geist falsch (mente falsa).

- Está bem, soldado. Será integrante da banda da SS, pois alguns outros integrantes sofreram um ataque e morreram. Precisamos de alguns homens para tocar no discurso que o Führer vai fazer por ter conseguido invadir, com sucesso, a Iugoslávia e a Grécia.

- Obrigado, senhor! Darei o melhor de mim para o Führer!

- Sem problemas, soldado Dürer. Se não o fizer, pagará com a sua vida...

Após as últimas palavras, o tenente buscou, paciente e incerto, seu isqueiro e o maço de cigarros pelos bolsos do uniforme. Esperou a continência do soldado e sentou-se, acendendo com prazer seu cigarro. Um olhar arregalado para o tenente Müller, e uma continência firme, aliviada. Agora, o soldado, de certa forma, estava livre daquele cenário sombrio, de morte, submissão e impunidade.

Julho de 1941. O Führer Adolf Hitler prepara um discurso para apresentar sobre a conquista da Iugoslávia e da Grécia. Alguns alemães tão radicais, racistas e xenofóbicos quanto Hitler vibravam com todos aqueles preparativos para o discurso do líder. Complexo paradoxo: herói-vilão. Um herói para um povo e vilão para o mundo.

A banda se preparava para a “cerimônia” e os soldados estavam devidamente ensaiados. Desde a invasão e conquista, em abril de 1941, a banda passou a ensaiar alguma coisa mais requintada para a apresentação do Führer. Thomas estava pronto. Pronto para a liberdade.

Já tinha fugido do que não queria ver, mas estava insatisfeito. Queria mais! Estava baixo, queria deixar aquela vida de lado. Thomas, quem você pensa que é para trair o Führer? É um soldado, só mais um soldado. E pertence à Alemanha. Pertence ao Führer.

As sinfonias tinham que ser belas, exatas como a matemática. Ao líder, só se oferecia lealdade e perfeição.

Estavam todos prontos, ansiosos e impacientes, como um noivo - que espera ao altar, e quase sempre com aquela imagem de sua amada fugindo ou não comparecendo – uma noiva. (...) Cena de cinema!

Aguardavam a chegada de Adolf Hitler ao salão, para que o mesmo proferisse seu discurso e ouvisse a salva de palmas tão importante, unidas aos gritos de “Heil Hitler!”. Quanto narcisismo, não? Hitler via a imagem dos seus mirabolantes planos de guerra refletida nos rostos e vozes alemães.

A banda estava pronta, preparada. Thomas estava nervoso, tenso e infeliz. Infeliz! E uma coisa era certa: ele sonhava! Tinha esperança de que tudo aquilo iria acabar em breve. Não podia morrer sem ver a vitória da paz. Ele sonhava...

Plan b: die flucht.

A banda começou a tocar e não havia mais o que fazer. Fuga! Thomas fugiu minutos antes de a cerimônia começar, deixando para trás seu paletó com aquele símbolo maldito e seu instrumento, o saxofone. Levava consigo somente a coragem. Sabia que era a hora abandonar também aquela vida velha, morta. Tudo isso porque era um homem livre. Queria ser um homem livre. E sonhava...

No caminho, antes de sair, no corredor do salão, deparou-se com o sargento da banda, Mario Metzelder. Um sargento experiente, já mais velho, quase com sessenta anos. Espantado ao ver o soldado sem o instrumento e o uniforme, e no lugar onde não devia estar, o sargento perguntou:

- Aonde pensa que vai, soldado Dürer? Não devia estar aqui!

O olhar do soldado foi de encontro ao do sargento, encarando-o com um pouco de temor, mas lutando para se manter à mesma altura.

- Sou como o senhor, sargento, e amo a música! Não vou mais ficar aqui! Vou fugir!

A voz do soldado era trêmula, e saía num sussurro a fim de não despertar atenção de outrem.

Compreensível, o experiente sargento olhou para baixo, concedendo permissão ao soldado com um simples gesto positivo com a cabeça.

- Soldado Dürer... Se é assim que quer, se é mesmo esse o seu sonho... vá. Espero que não te achem logo, pois será considerado um traidor. Ama a música? Vá ao Emerald Bar. Lá tem o que você procura.

Com um leve sorriso, o soldado, com o mesmo gesto do sargento, concordou com o mesmo e aceitou a dica.

Foi correndo, foi na hora, foi resgatar o seu amor.

O Emerald Bar era um bar de uma família norte-americana que tinha parentes alemães, e levava diversão e música às pessoas. À época, jazz. Era o ritmo que estava em alguns lugares dos Estados Unidos.

Naquela noite, havia poucas pessoas no bar, pouco movimento. Mas o jazz era um som lindo, que alegrava as pessoas daquele lugar. Elas esqueciam que viviam num cenário de guerra, e dançavam, cantarolavam, umas querendo cansar as outras.

Franz Dürer entrou e ficou pasmado. Era um homem livre atrás do seu amor, a música.

De camiseta branca, calças do uniforme e sapatos sociais, o soldado caminhou dançando, parecendo estar em transe, até o palco. Embalado no som da banda que tocava ao vivo, subiu ao palco e pediu, somente com gestos, o saxofone do integrante da Jazz-y Band e sentiu-se num êxtase.

Isso tudo porque sonhava, porque era um homem livre e tinha um amor que nunca o decepcionava. No ritmo de jazz, a felicidade era indescritível. Nada mais importava naquele momento...

- Franz, acorda, já são seis e meia, vai se atrasar para a reunião no escritório, meu amor.

- Mas já? Que droga..! Não pode imaginar, Bárbara! Tive um sonho estranho, mas bacana. Meu falecido avô Mario também estava no sonho.

- Ah é? E como foi?

- Sonhei que estava em 1941, que eu era um soldado e fugi da SS para tocar jazz lá no Emerald Bar.

- Hahaha, que loucura...!

- É, foi um sonho para a liberdade.