A MENINA QUE COMEU A LUA

A MENINA QUE COMEU A LUA

Maria Clara de Assis estava debruçada sobre seus quinze anos, que seriam comemorados com muita pompa.

Mário e Julia Quintana, seus genitores, não mediram esforços. Sua avó, Cláudia, tinha por ela grande respeito, afeição e admiração. O grande baile, que ocorreria no sábado seguinte, em um clube de prestígio, tinha o aval dela.

Dona Cláudia empenhara-se com esmero e dedicação. Ficou responsável pela lista dos convidados e, entre eles, o pároco local, o prefeito e a primeira-dama.

Os primeiros presentes acabavam de chegar naquela tarde ensolarada da quinta-feira. O Sol deitava-se, espreguiçando-se, por detrás dos arbustos, diluindo-se em cores. Os transeuntes voltavam à suas residências após mais um dia de labuta e arrastavam-se cosendo à calçada. Os carros e as motos, com faróis sonolentos, trafegavam em marcha lenta.

A noite surge! Uma brisa mansa viajava entre as folhas das árvores na praça local, onde os namorados batiam o ponto, corriqueiramente. Lá pelas 20h30, sr. Mário Quintana acabara de chegar. Advogado respeitado e conceituado por todos.
Duas horas depois, chegaram alguns parentes: os seus tios, naturais de São Paulo e Minas Gerais.

Todos se reuniram após as refeições, na imensa varanda da residência, o que oportunizou uma grande conversa, sobre eventos diversos. Algumas horas depois, todos se dirigiram para os seus aposentos. As lâmpadas da casa perderam o brilho, o silêncio fez-se imperativo, ouvia-se a respiração do relógio que ficava na parede da sala: tic-tac, tic-tac...

Na sexta-feira, véspera do grande dia, D.Júlia juntamente com duas funcionárias, foram as primeiras a levantar, providenciando o café matinal, um lauto banquete. Alguns minutos depois, radiante e carismática, a aniversariante adentrou no recinto: olhos verdes, esbelta, cabelos longos que lhe emolduravam a beleza. e com uma docilidade nas expressões e na voz que a todos cativava, principalmente a João Flores, seu tio e padrinho que a admirava.

Nessa manhã, Clara não fora à escola; iria mais tarde ao ateliê de Dona Ziza para os últimos retoques no vestido, um azul turquesa bastante trabalhado em rendas, com o qual dançaria a valsa com seu genitor.

Maria Clara se dirigiu a uma sala contígua para experimentar a indumentária. Passaram-se alguns segundos quando se ouviu um baque surdo. Todos acorreram pressurosos e detiveram-se diante da figura pálida como cera. Clara estava distendida sobre o assoalho. Ligaram imediatamente para o seu pai.

Sr. Mário chegou esbaforido, e nesse ínterim Clara recobra os sentidos. A a dor na cabeça a deixava desorientada. O pai levou-a ao centro médico mais próximo, logo de pronto os médicos perceberam a gravidade e aconselharam que ela fosse transferida imediatamente para Salvador.

Dona Cláudia estava inconsolada. Foi preciso dar-lhe um sedativo. Dona Júlia, que acabara de chegar ao centro médico, que já providenciara a transferência, chorava copiosamente. Alguns tios chegaram apreensivos.

A ambulância saiu às pressas. A sirene intimidava e sibilava no ar. Os genitores e a avó seguiram logo atrás, no carro da família. Finalmente a ambulância chegara ao Hospital.

Maria Clara foi atendida por um neurocirurgião, que imediatamente observou que o caso inspirava cuidados. O diagnóstico, após vários exames, incluindo tomografia computadorizada, revelou o aneurisma cerebral. Cláudia, a avó materna, estava desconsolada. Os olhos inchados revelavam a angústia e o sofrimento. Nas mãos, a imagem de Santa Clara de Assis.

O médico tornou ciente que haveria a necessidade de uma intervenção cirúrgica. A apreensão contagiou a todos, que estavam atônitos. As providências iniciais foram tomadas. A cirurgia deveria ocorrer na madrugada.

Alguns parentes voltaram à cidade natal de Clara para que fosse tomada a dolorosa decisão: o cancelamento dos festejos tão esperados. A notícia caiu como uma bomba em toda a cidade. Várias frentes de oração foram formadas por iniciativa do padre Olavo. Em frente à casa da senhorita, uma grande romaria se formou, e ainda atordoados, oravam em voz alta.

No centro cirúrgico, a operação era iniciada por dois especialistas. Na sala contígua, os parentes mais próximos esperavam apreensivos. Dona Cláudia fitava o firmamento, que estava impassivo. A Lua, parecendo uma bola colossal, brilhava, refletindo a luz do Sol. O raiar do novo dia, que deveria ser de alegrias exultantes, era de expectativas dolorosas e de um nervosismo indescritível.

Dona Claudia continuava fitando o firmamento, esperando explicações. A Lua estava ainda mais fulgurante, mais enigmática. Eram 3h30 quando dr. Carlos entrou na sala, rosto macilento, mão nervosa, olhava para todos que ali se encontravam. Dona Carlinha entendeu a mensagem. Olhou para o céu com olhos turvados de desespero. À Lua, faltava um pedaço. A expiação estava consumada!

Passos vacilantes, ela deixara o recinto enquanto os demais, em estado de abatimento profundo, choravam abundantemente. Os genitores precisaram ser amparados e foram sedados. Enquanto isso, D. Cláudia chegava à rua. que estava semideserta. Totalmente esbaforida, cabelos desgrenhados, passos bêbados, uma dor indescritível podia notar-se nas suas feições transfiguradas.

Algumas personagens típicas da noite a observavam. Ela andava sem rumo. Tirou os sapatos e os pés, mal acostumados com aquela aspereza reclamaram. Alguns vestígios de sangramento entre os dedos podiam ser notados. Contudo, ela estava anestesiada. Teve a nítida impressão de ver sua neta querida vestida de azul turquesa, o vestido do baile, e todos os convidados que a saudavam de forma esfuziante. Sorriu, aljofrou de pranto a face alterada dolorosamente.

Os pés amarrotados não queriam mais atender-lhe. Sentou-se na calçada, sorria, imaginou-se dançando a valsa. Novamente viu a netinha querida e lhe estendeu os braços. Beijou-a efusivamente, sorriu, meneou a cabeça em direção ao céu e notou que a Lua faltava um pedaço ainda maior. Sorriu estrepitosamente. Cumpriu-se o carma!

Albérico Silva