Cheiro impregnado.

Sabia que você ainda sorri igual como no dia em que me atropelou? Um pouco nervoso, com os lábios tremendo pela possibilidade de eu ter quebrado algum osso, um pouco satisfeito por eu estar viva e um pouco forçado por nunca saber como reagir aos meus golpes de olhares.

Às vezes é doloroso lembrar como tudo aconteceu rápido entre nós dois e outras vezes, engraçado. Dói porque eu não tive tempo para parar e sonhar, perceber que era amor antes daquele beijo roubado e imaginar como seria, moldando alguns diálogos antes de dormir. Tudo só foi e veio. Você veio e eu fui, deixei-me ser levada e aos poucos fomos indo juntos, traçando alguns pontos de estradas. E é engraçado porque eu te conheci no meio da avenida paulista, você de terno e gravata atrasado para uma reunião com o seu chefe e eu, suja de tinta têmpera com um vestido justo que carregava todas as cores do arco-íris na frente, lutando por idéias que hoje nem sei mais quais eram. Eu sei que nós não deveríamos estar aqui hoje, um na frente do outro, esperando a garçonete nos atender, cheios de possibilidades de retornos e ainda cheios de amores mas, eu preciso estar aqui hoje. Preciso tentar pegar na sua mão enquanto você ri do corte do cabelo da garota da mesa ao lado, preciso ver o tom dos seus olhos que eu nunca consigo tocar no pensamento, preciso ser desse meu jeito, esse jeito que só é meu quando estou perto de ti. Sei também que você mudou, seus planos mudaram e o que nos liga não é mais o amor. Eu sei de tantas coisas e é difícil acreditar nelas por mais reais e visíveis que elas sejam.

Quando o dia termina, eu me lembro de fechar a casa, e no pequeno tempo que existe entre pegar as chaves no chaveiro e levar até o buraco estreito da fechadura, me lembro de você. Pois a tarefa de fechar a casa era sua e você era medroso, atordoado por ter aos sete anos uma arma na sua cabeça enquanto sua mãe era assaltada. Quando me deito na cama, fecho os olhos e ainda sinto seu cheiro impregnado no travesseiro. Já lavei muitas vezes. Tudo bem, tudo bem, eu esfrego de leve. Tenho medo de perder o único rastro seu que ainda não se foi. Quando olho para o relógio me lembro do seu trabalho, era o que nos sustentava. O renomado engenheiro civil casado com a revolucionista fracassada, ainda escuto os sopros de discorda vindos dos corredores da casa da sua família. Eu penso tanto em você e sempre. Não, isto não é ruim, é gostoso lembrar porque foi gostoso o que vivemos.

Dois garçons me ignoraram, sete mesas foram atendidas, o jornal acabou e a novela das nove está no segundo capítulo. Deve ser a hora de começar, das cortinas se abrirem e isso que pensei se tornar realidade.

- Eu vou pedir dois cafés, exagere no açúcar se quiser só não me olhe com aquele olhar. Até o porteiro desse lugar sabe que você está com sede de algo mais forte. E com aquele olhar meio-molhado de saudade, meio-frio de insegurança e meio-feliz de recompensa é até capaz de me convencer e eu ceder. Se você beber, vai ficar engraçado, se ficar engraçado, eu vou rir, se eu rir, vou lembrar que eu não te conheço e se eu lembrar, pode ser tão esquisito tentar te conhecer.

- Que?

Karoline Escouto
Enviado por Karoline Escouto em 23/07/2012
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