QUANDO O PASSADO NÃO PASSA

QUANDO O PASSADO NÃO PASSA

Haviam decorrido mais de quarenta anos e na tarde de 15 de janeiro de 2010, o dr. Augusto Silva Souto encontrava a devida coragem para ir até a casa em que residira. Eram 15h40 e uma garoa fina molhava a calçada e osculava as folhas de um frondoso tamarineiro que ficava na praça, bem em frente ao casarão.

Ele ainda não estava totalmente convencido, mas continuava caminhando com passos apertados, como se algo o compelisse, em direção à rua 28 de Setembro, onde ficava a propriedade que herdara. O coração parecia querer escapar, um suor álgido cobria-lhe a face e misturava-se com os pingos de chuva. Ele trazia no bolso as chaves que o colocariam frente a frente com um passado que estava cada vez mais vivo.

Nesse casarão, tivera uma infância feliz. Por ser filho único, foi criado com todo mimo e proteção. Seus pais, o sr. Arthur e dona Celestina Souto, o criaram para ser o médico da família, e desde pequeno esse ideia lhe foi alimentada com fortes sugestões persuasivas.

Aos 11 anos, teve a clara ideia do que queria ser ao ter aula de Educação Física com o professor Epaminondas Cunha. Tudo aquilo, para ele, era mágico. E ele se empenhava com gosto e prazer nessas aulas. O que mais o cativava eram as aulas de natação.

Certa feita, já cursava a segunda série do ensino médio, quando declinou sua vontade para dona Celestina. Recebeu como negativa a reafirmação da vontade do seu genitor, que era a de ver-lhe cursando Medicina na Universidade Federal da cidade, que era bastante conceituada em todo o País. Não teve coragem de contrariá-la, de expor suas ideias, e silenciou!

Dois anos mais tarde, engessava no curso de Medicina, para alegria e contentamento dos seus genitores, que não cabiam-se em si de contentes, e não notavam o estado de apatia em que ele se encontrava.

No início, o curso fora bastante penoso, mas depois foi tomando certo gosto, principalmente quando, já no terceiro semestre viera a conhecer a senhorita Carla Fontes, filha de um neurocirurgião renomado e com a qual, anos mais tarde, depois de ambos terem colado grau, trocariam as alianças.

Ela seguiu os passos do pai. Especializara em pneumonia e era bastante compenetrado de que um bom médico, antes de tudo, tinha que olhar para os menos favorecidos. E exercia sua profissão com bastante responsabilidade, sem, contudo, nunca ter esquecido das aulas de natação. Tiveram dois filhos, Ana e Felipe Souza.

Continuava exercendo com denodo sua profissão; amava fervorosamente a sua família; olhava com compaixão para aqueles cuja sorte não tinha soprado ventos favoráveis ou não tinham se esforçado o suficiente para vencer as pedras que se apresentam no caminho todos os dias. Fundou no hospital que trabalhava um setor de atendimento às crianças com tuberculose e recebeu apoio de vários colegas que se dispuseram a ajudá-lo no que fosse preciso. Levava, assim, uma vida pacata, e a cada dia amava mais a sua consorte. Era pai exemplar, participava da vida de seus filhos atuando de forma efetiva.

Certa tarde, quando chegou em casa depois de uma jornada diária no hospital, encontrou seus três funcionários bastante apreensivos. Adentrou no recinto e constatou que seus dois filhos estavam agitados. Perguntou pela esposa e não obteve resposta. Notou que eles se entreolhavam com um certo constrangimento.

Subiu apressado as escadas que levavam ao andar superior, onde ficavam os dormitórios, adentrou em um dos quarto e estava vazio. Onde estaria sua consorte? Seu olhar deteve-se para um envelope que estava sobre a cama. De um salto chegou até ele, abriu-o com mãos trêmulas e com os olhos alagados. Leu: ADEUS.

Tudo girava sob os seus pés. Olhou pela janela e viu as estrelas. Quis falar, mas nem um som sequer conseguiu articular. O coração batia freneticamente. Sentiu um gosto de sangue na boca. Ele não sabia que quando para uma pessoa o amor acaba, para a outra se abre uma cicatriz imensa no peito.

Os dias se passaram. Ele agora exercia as funções de pai e mãe de Ana e Felipe. A dor doía com grande intensidade e lhe machucava. Ele envelhecerá dez anos em um. Mudara-se para uma outra residência um pouco menor, mas também com grande conforto. Seus filhos mereciam. E assim foram levando a vida. Amava cada vez mais Ana, Felipe e os seus pacientes, principalmente as crianças.

Seus filhos não lhe seguiram os passos. O menino enveredara pelo ramo da engenharia elétrica e Ana tinha verdadeira paixão bela biologia marinha. Viu seus filhos formarem suas próprias famílias e seguirem seus destinos, mas os acompanhava torcendo pela sua felicidade.

Hoje, contudo, criara coragem e retornaria àquela casa onde tivera dias felizes, mas também noites angustiantes. Girou a chave e sua cabeça também girou, trazendo-o ao passado. Nunca mais teve qualquer notícia dela. Adentrou com passos vacilantes. Um turbilhão de pensamentos passava pela sua cabeça. Pensou em voltar, mas foi firme e continuou.

Subiu as escadas e sentiu uma emoção ádvena ao adentrar o quarto. Olhou-se num espelho que ainda estava dependurado na parede e viu um estranho, taciturno, alquebrado, encanecido, e por mais que olhava-se e se esforçava-se, não sabia a quem via.

Observou um retrato pregado na parede desbotada e abismou-se com a semelhança. Percebeu que também havia no quarto uma mesa oval, uma cadeira. Notou, triste, que sobre a mesa havia um retrato, uma foto em preto e branco de um casal abraçado. Ela lhe pareceu familiar!

Logo identificou, saudoso, aquele semblante admirável, os olhos graúdos cor de esmeralda que tanto lhe inspiravam. As recordações vieram à tona e de repente um grito lhe saiu do peito. Era de espanto! Não se reconheceu nessa fotografia.

Avivaram-se, assim, as tristes lembranças. As cicatrizes doeram de forma intensa. Sentou-se sobre a cadeira, debruçou-se sobre a mesa e chorou copiosamente.

Olhou o céu pela fresta da janela. As estrelas lá estavam. Cintilavam!

Albérico Silva