CATAVENTOS


Sr. José Augusto Alcântara, pai de seis filhos, casado com dona Estelita Alcântara, vendia cataventos para sustentar a família. Durante a semana, saía com seus cataventos, vendendo pela cidade, pelos parques de diversões, no jardim zoológico. E no final de semana, na orla marítima. Tivera um sonho: queria ser advogado. Porém, desde cedo se viu arrimo de família. Era filho do sr. Tito Alcântara e de dona Justina, que tiveram 16 filhos - e ele era o mais velho. Seus pais tinham uma barraca no mercado, na qual vendiam folhas e ervas. Diziam que elas serviam para tudo. Tinha uma clientela bastante numerosa. A barraca era frequentada principalmente pelas pessoas ligadas às seitas religiosas e outros tantos curiosos, que os procuravam querendo saber para que serviam determinadas folhas. E as adquiriam por um preço justo e proporcional às expectativas. Eles as compravam crentes. Tinham fé e essa fé era irrestrita. Havia uma frequência bastante acentuada de mulheres. As que eram casadas e queriam prender ainda mais os maridos; as amantes, desejosas de se livrar da rival; e outras tantas, que não eram casadas, mas queriam casar. O certo é que sua clientela era bastante diversificada. As sextas-feiras e os sábados eram, como se diz, o carro-chefe. Havia rodas de capoeiras, grupos de pagode, violeiros entoando canções que falam ao coração... Mulheres que comercializavam sua beleza ficavam ali, à cata dos clientes, saias curtas bem justas e decotes generosissímos. Sambavam muito, riam e bebiam com eles. As benditas "folhas podres", que tinham nomes bastante curiosos e peculiares, como "pau de resposta", "levanta defunto", "corno manso", "cacetada", "minha deusa", "prosa e viola", "saideira" e tantos outros. João da Catinga era o primeiro a chegar e o último a sair. Tocava violão com grande maestria e cantava com voz suave e afinada. Esses foram os dias mágicos e memoráveis do antigo do Mercado Modelo, que sucumbiu ante as labaredas que devoraram os sonhos de muitos barraqueiros, muitos pais de família que ficaram sem seu sustento e se viram na rua da amargura. Há quem jure de pés juntos que a "coisa" foi encomendada. O certo é que o fogo lambia e cortava com língua afiada o alento das famílias. O quadro era desolador. Quando os bombeiros chegaram, pouca coisa fizeram, pois o fogo já tinha decretado falência. A barraca de folhas de Tito explodiu. Não houve milagres e as ervas queimavam, exalando um aroma bastante acentuado. José Augusto, na época, estava cursando a segunda série do primeiro grau e teve de deixar os estudos para ajudar a família, pois os pais prostraram-se na cama, sem vontade de viver, em que pese as autoridades apregoarem que eles não ficariam desamparados. Contudo, muitos ficaram e estão assim até hoje, e mesmo o mercado funcionando noutro local, não tem mais aqueles dias áureos, inesquecíveis, que ficaram para a história. Como filho mais velho do casal, se viu na contingência de ajudar aos seus irmãos. E assim o fez, juntamente com sua irmã Augusta, um ano mais moça do que ele. Ela fazia pastéis de carne e galinha e saia para vendê-los. Havia dias que a vendagem era minguada e eles, para não perderem a mercadoria - e porque o estomago reclamava - comiam aqueles pastéis, às vezes a única refeição. Duas de suas irmãs, não aguentando a miséria, resolveram ir vender carícias na orla marítima. Uma delas contraiu tuberculose e deixou o corpo depois de seis meses de grandes sofrimentos e duras privações; a outra continua no batente, desenganada, melancólica, luética, acabada, depois dos oito abortos que fez, e em face da clientela que é bastante escassa, não enxergando que nos dias atuais a concorrência é bastante acirrada. Se vende o corpo e a alma por qualquer pretexto. Seus irmãos mais novos não se criaram. Enveredaram pelos caminhos tortuosos do tóxico e amanheceram certo feita com os corpos crivados de balas num terreno baldio. Ele teve sorte. Encontrou dona Estelita, casou-se com ela e foi a mão na roda, pois ela o ajudara a criar seus irmãos. Hoje, vende cataventos. Ele mesmo os constrói. Sai todos os dias, por volta das 6h, e percorre grandes distâncias. É amado e estimado por muitos que o conhecem. Cada um de seus brinquedos tem uma mensagem de otimismo estampada. Sua esposa é quem escreve, pois sua leitura é pouca. Às vezes, embaixo de verdadeiras canículas, leva no ombro todos aqueles sonhos de criança. Lembra-se de sua infância, até que não foi ruim; lembra de seus irmãos, de como fez para ajudá-los; lembra das irmãs, que preferiram pular fora e encontram lá fora, além das privações, as duras provações, humilhação e descaso. Está hoje com 43 primaveras, mas parece que tem muito mais. É que a vida foi dura, duríssima com ele. O pai se suicidara, em que pese todos os seus esforços. E a mãe, dois anos depois, foi dormir e não acordou mais. Tudo isso colaborou para esse envelhecimento precoce. Contudo, ele se considera um homem feliz. Cria seus filhos com carinho e respeito, é bastante solícito. E nas horas vagas, que são poucas, é um verdadeiro coringa. Faz de tudo para sobreviver, faz de tudo para educar os filhos - todos estudando. Sua esposa é o anjo que Deus enviou. Mesmo com poucos dentes na boca, está sempre sorrindo. É devoto de São Jorge e tem uma paixão incomensurável pelo Bahia, time para o qual torce com fervor. Nunca foi assisti-lo jogar, pois o dinheiro foi sempre curto e ele tinha outras obrigações. Mas torce com fervor. Continua vendendo seus cataventos. Continua torcendo para que o vento também sopre ao seu favor. Continua se enternecendo com o sorriso de uma criança, principalmente quando elas recebem o catavento de suas mãos e o veem girar. Nesses momentos, seu mundo também gira e ele relembra cada situação vivida até ali. As dores, as angústias, as rejeições, as perdas, as alegrias. E se emociona como criança. Não cabe em si de contentamento vendo-as andando felizes com o catavento na mão.

Albérico Silva