A PEDRA NO MEIO DO CAMINHO FOI...UM BOLO
RUBEMAR ALVES
DRUMMOND que me desculpe em licença poética, mas “a pedra no meio do meu caminho” foi... um bolo.
Fui parado na rua para uma destas entrevistas-relâmpago da televisão em que mal temos tempo de responder. A comunicadora se aproximou bastante cautelosa e profissional, tendo nas mãos um quindim, pequeno cacho de uvas miúdas e um vasilhame tampado. Mandou que EU escolhesse a sobremesa. Se era “pegadinha”, evitei cair; afinal, o que ELA estava me escondendo?
“Sobremesa: hummm... Deixe-me ver, isto é, pensar...”
A moça, nem baixinha nem altinha, corpinho magro talvez em eterno regime, sorriu, me cedeu alguns minutos e saiu na caça rápida a mais um entrevistado.
Havia um tempo em que EU adorava comer bolo gelado com recheio de abacaxi e creme de leite azedo, no estilo franco-suíço, pelo menos assim escrito no cardápio, explicando as origens. Bom, melhor dizendo, agora um bolo ‘paulista-europeu’.
Não sou mulherengo tipo franco atirador a quem nenhuma escapa, mas aprecio bastante essa inquestionável dádiva do Paraíso, a misteriosa mulher, enigmática pois jamais saberemos que caminho ELA é capaz se escolher. Em particular EU me acho sempre fora de rota, num atalho quase oculto.
Bom aspecto, alto, forte, grande, mas não um grandalhão desajeitado. Pela sua ‘alturinha’ de pequeno frasco, a companheira de trabalho me apelidara GIGANTE e só me chamava assim. Na verdade, EU estava iniciando uma fase de conquista e, dizem, o peixe morre pela boca. Então, passei a convidar esta amiga “especial”, extremamente gulosa e nada preocupada com a balança, para almoçar comigo onde serviam esta sobremesa deliciosa.
Num dia de meio feriado religioso, ficamos depois sentados conversando na pracinha durante horas ao longo da tarde.
Entrava na igreja um casamento, ELA jogou de repente a bolsa em cima de mim e, junto com outras moças, correu para espiar. Poderia ser uma indireta, não me abalei muito, só fiquei um tanto atrapalhado com uma tipicamente bolsa feminina - uma alça redonda de plástico transparente, couro vermelho e “mil” correntinhas douradas - sobre os meus joelhos. Ao redor, nos bancos de pedra, outros machos espantados segurando semelhantes apetrechos, em divertida e inequívoca sem gracice. Voltou tra zendo uma imagenzinha colorida de minúsculo Santo Antônio, uns quatro centímetros, que o padre abençoara na hora e a noiva atirou sobre as jovens que a rodearam. Fiquei na ‘minha’, como se diz, quieto.
Não sou tímido – sou discreto e reservado, tenho pensamentos filosóficos, digamos assim...
(Quanto custa uma aliança de ouro? E por que exatamente... de ouro? Não serve destas que aparecem como brinde no copo de iogurte ou no pacote de talharim no mês de maio? E com que cara EU iria aparecer no trabalho usando ‘aquilo’? Os antigos escravos nas senzalas não usavam tal objeto pelas suas senhoras brancas, que se saiba, mesmo quando a cama era muitas vezes partilhada com discreção na casa grande...)
Sem mais nem menos, recitou pequena parte de um poema do VINÍCIUS e me perguntou se “beleza é fundamental”.
Na minha frente passou como num filme a imagem da minha casa charmosinha, arrumada ou desarrumada a meu gosto, com os meus livros (principalmente os meus livros!), a minha televisão, o meu computador, a minha nova máquina de fazer café, o banheiro perfumado, tudo nos lugares certos... em contraste com panelas vazias, geladeira ‘magra’ até do essencial, mantimentos acabando, gaveta isenta das minhas camisas limpas e passadas, cama desarrumada a manhã inteira nos meus dias de caos e preguiça. A resolver se eu estava a fim de uma namorada ou uma administradora para o lar, exigindo magnífico ordenado, me impondo horários e deveres, direito nenhum... Respondi que...
“... se o poeta diz, não posso contrariar.” Pensei, calado, “regime também é fundamental”. Apenas sorri.
EU não me declarava, sentados lado a lado, sem nos tocarmos, ELA talvez achando que a iniciativa cabe ao homem, não saíamos desta conversa parada e inútil.
De repente, ELA se confessou, nesta exata ordem, por acaso alfabética (até memorizei) “apaixonada, louca e obcecada”. Por segundos, vacilei entre beijá-la imediatamente - e tapar-lhe a boca impedindo melhores revelações e talvez oferecimento? - e continuar escutando... Disse que não agüentava mais numa paixão calada, mas devoradora... que ELE a fazia sofrer muito: quieto, silencioso, deixava-se tocar primeiro suave (sim, às vezes ELA colocava a mão no meu braço, quando mais empolgada no meio de alguma conversa) e depois v orazmente (se mais empolgada ainda, me beliscava – meu gemido não era de prazer), ELA tendo mais tarde arrependidas crises pela incontrolável e ousada “antropofagia” (já me senti devorado pela fêmea, como certos insetos machos imediatamente após o seco). Tentou corrigir, disse que a palavra não era bem esta, mas servia para que EU entendesse o que ELA sentia ao final dos nossos almoços
Estático estava, estático fiquei.
A lourinha branquela ficou muito vermelha de repente, lágrimas nos olhos, tirou da bolsa um embrulhinho em papel prateado, vi ainda um restinho da sobremesa. ELA me olhou firme, depois um pouco trêmula e simplesmente beijou o pedaço de bolo. Devorou em seguida, os lábios u tanto melosos do creme branco.
Um eco nos meus ouvidos: “... apaixonada, louca e obcecada...” – ELA dissera poucos minutos antes.
Mas tudo isso por mim? Não. Imaginem só, ser trocado por um bolo!
Esqueci que mulher geralmente se expressa por metáforas.
Foi-se a minha possível declaração de amor. Se o objeto de desejo era humano, ELA nunca demonstrou nada. Se fui idiota em não me declarar antes disso, realmente não sei até hoje. Nunca mais convidei para almoçarmos juntos. Estou sempre na mão única do amor? Existe a mulher ideal? E como se faz para conservar uma só sem cair na tentação de próximas outras?
Mais tarde, pesquisei, colei no lado da minha geladeira cópia impressa de RECEITA DE MULHER, longuíssimo poema do “professor” VINÍCIUS DE MORAES (sete ou oito casamentos) - letra bem miudinha ao computador para que EU próprio tivesse dificuldade na mentira imediata.
Ah, sim, me perdi em divagações e já ia esquecendo.
A pesquisadora retornou, “moço-é-pra-responder-correndinho-aqui-e-agora”, último entrevistado daquela manhã, fui rapidamente filmado. Lembrei uma estória antiga em que a personagem literária oferece ao primo um cacho de...
“... uvas! Estou em eterno regime (improvisei). Prefiro fruta como sobremesa.”
Equipamento da tevê arrumado no carro de reportagem, a moça me agradeceu com um presentinho. Ganhei a sobremesa oculta, incluindo o vasilhame. Estado de choque ao abrir:
um ‘fatião’ de bolo com calda fria, abacaxi e creme de leite.
F I M