VIDA E ESPERANÇA

VIDA E ESPERANÇA

Senhor José Coveiro morava na Rua Augustina Flores, na casa amarelo-escuro, de número 33. As duas janelas e a porta eram gradeadas, e essas grades pintadas de verde-claro. Era uma pequena casa de quatro cômodos e ficava bem em frente a um cajueiro plantado por seu avô Getúlio Flores. Viera com seus genitores do sertão da Bahia, pois a seca imperiosa os expulsou sem nenhuma alternativa. Lembrava-se claramente do esforço atlante que seus pais fizeram, pois essa decisão, apesar de ser a única saída plausível, a de abandonar sua terra natal, foi muito constrangedora para ambos.

Lembra-se de ter notado seu pai com os olhos marejados e tomado de uma emoção peculiar quando o pau-de-arara que os trouxera iniciou a caminhada. Ele estava absorto, olhar perdido no vazio, e a poeira que se levantava à medida que a caravana passava mascarava-lhe as feições. A viagem durou seis dias e seis noites, as crianças chorando, as mulheres grávidas passando mal, os idosos reclamando dos sacolejos na estrada, a comida escassa, a água teve que ser racionada. Tudo isso ficou registrado na sua mente.

Quando chegou ao seu destino final, numa cidade a 180 km da capital, seu pai foi trabalhar numa roça, cujo proprietário, o Sr. Epaminondas, era bastante generoso. Sua mãe lavava roupa de ganho, seu avô que também viera, ajudava-o. Transcorridos mais ou menos uns sete anos, depois de muito sofrimento e muita renúncia, seu pai consegui adquirir a casinha, algumas modificações se fizeram necessárias, principalmente no que tangia ao sanitário, além de outras pequenas reformas, depois de grandes esforços, muita labuta e muito suor derramado.

Dois anos após seu avô viera a falecer em função de uma gripe forte que o acometera, e seis anos depois, seus genitores, num acidente que chocou toda a região, tinham a vida ceifada bruscamente, juntamente com mais 36 romeiros que voltavam de uma romaria na madrugada de 19 de abril, quando o pau-de-arara no qual eles viajavam capotou após descer um despenhadeiro.

Ele contava na época com 17 anos, parou os estudos, cursava a sétima serie numa escola que levava o nome de um político influente da região, para assumir as funções que eram de seu pai no sítio de Sr. Epaminondas. Três anos depois, estava casado com D. Luciana Flores, filha Abel da farmácia. Morava na residência que ele herdara da sua família. Tivera uma única filha, Tonha Flores, que casou-se com 16 anos, com o um dos filhos de Sr. Getúlio papa piaba.

Após contrair núpcias mudaram-se para a capital, e se instalaram numa rica casa, num bairro bastante disputado, e de vez em quando eles iam visitar seus respectivos genitores. José era devoto como seus pais de São Expedido, e quando havia certa urgência numa decisão a ser tomada, sempre invocava o santo da sua predileção com fervorosas preces. Herdara essa alcunha em face de trabalhar desde o nascimento de Tonha, no único cemitério da cidade, Vida e Esperança, o que lhe rendeu grandes amizades.

Era conhecido por todos como José Coveiro, mas seu nome de batismo era José Silva Flores. Bastante solícito, atendia a todos dentro da medida do possível, gostava de jogar dominó nos finais de semana com Túlio das Berinjelas, Augusto dos Preás, e o Sr. Epaminondas de quem ficara amigo. O jogo era regado com aguardente Levanta Defunto, muito famoso da região, e Sr. José encarcava o dedo.

A tarde do dia 26 de junho de 1949 fora, sem sobra de dúvidas, uma das mais penosas e tristes para José, pois tratava-se do sepultamento do amigo e benfeitor de seus pais, Sr. Epaminondas, que morrera de mau súbito na madrugada do dia anterior. Tal acontecimento não só o pegara de surpresa assim como o marcara profundamente, a partir desta data ele isolara-se de todos, não mais jogava o dominó habitual, aposentara a caneca, apenas só era visto no cemitério Esperança onde trabalhava pela tarde, mas assim mesmo pouco falava e o seu semblante entristecido, informava o que se passava no seu íntimo.

Passara-se um mês, contudo a apatia de José Coveiro aumentava cada vez mais, alguns vizinhos escrevam para sua filha na capital, três dias depois ela chegou com o marido, e notou que a situação do pai era aflitiva, José não se alimentava mais como de costume e tinha emagrecido alguns quilos. Sua filha tentou a todo custo para ele se ausentar por uns dias dos seus afazeres e fosse com ela juntamente com D. Flores até a capital para descansar um pouco. Tanto ela fez até que conseguiu com a conivência de sua mãe.

E depois de 45 anos ininterruptos prestando serviços ao cemitério Vida e Esperança e à comunidade local, que estavam apreensivas com o seu estado, Sr. José cedeu às investidas da filha e se ausentou por 20 dias. Fora finalmente para a capital. Ficou deslumbrado o trânsito local, nunca tinha visto tanta gente indo e vindo, apesar da indiferença que as pessoas demonstravam umas com as outras. Tantos carros se misturando com as pessoas, os prédios, as lojas tudo era novidade para ele. E apesar do marasmo que o consumia, ficou extasiado. Contudo passados os primeiros dias, o enlêvo foi se esvaindo, cedendo lugar à tristeza que o estava consumindo aos poucos.

Na tarde de 16 de julho de 1949, José Coveiro como era conhecido na pacata cidade onde ele morava, deixava essa vida após sentir-se mal de repente. O sol estava mornando, quando uma grande romaria se fez pelas ruas da cidade onde ele viveu, dirigia-se para o cemitério Vida e Esperança, e lá ficara até a derradeira homenagem. Tenho dito a verdadeira amizade são laços eternos, e quando duas ou mais pessoas vivem em nome dessa afeição os vínculos contraídos são alicerces para uma vida toda. As argamassas que sustentam os pilares dessa afabilidade moldam para sempre conexões indestrutíveis, e derramam as esperanças que não cessarão nunca.

[...] Algumas horas depois, Epaminondas e José Coveiro confabulavam animadamente, e duas estrelas riscavam o céu juntas, pareciam amigas!

Albérico Silva